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Tecnologia

O documento único não sai do papel no Brasil porque é complicado demais facilitar nossas vidas

A busca por um modelo fácil de identificação é uma fábula sobre como a burocracia nacional é inimiga de si própria.
Pixbay

É um desafio diário provar quem você é. Não, não é autoajuda, discurso motivacional ou questão filosófica do tipo "conhece-te a ti mesmo". É, na verdade, um desafio para quem precisa portar diferentes números impressos em muitos pedaços de papel com carimbos de vários órgãos oficiais para confirmar a própria identidade todo santo dia — além daqueles domingos em que precisamos lembrar em qual gaveta guardamos o título de eleitor.

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Desde 1997 o Brasil tenta implementar cadastro único de identidade nacional. Depois de duas décadas de espera, com repaginações de projetos (RIC, RCN e o atual DIN) de diferentes siglas partidárias (PSDB, PT e PMDB), foi sancionada, neste ano, a Lei n.º 13.444/2017, que cria a Identificação Civil Nacional (ICN). Segundo a proposta, um documento único reunirá nossas informações civis e biométricas, com chip eletrônico e foto 3x4, na tentativa de facilitar a vida de quem sempre precisou distender as divisórias da carteira para diversos documentos: RG, CPF, CNH, CTPS, PIS etc. Pareceu que a coisa enfim sairia do papel, mas só pareceu.

Assim como em toda a história do projeto, há uma série de conflitos e instâncias burocráticas que se anulam. Presidente do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), o ex-ministro e empresário Guilherme Afif Domingos (PSD) encampou a proposta que patina há 20 anos em Brasília. "Nas últimas décadas, a ideia de uma identidade única, unívoca e inequívoca enfrentou resistência, pois revelava um conflito de interesses entre diferentes instituições: cada uma queria defender as próprias emissões de identificação, o que, querendo ou não, representa uma fonte de renda para as instâncias. Isto é: o indivíduo é um só, mas os poderes são muitos", diz Afif.

Autor do sistema Simples (regime de tributação diferenciado), Afif é um defensor da desburocratização. "Burocracia é como colesterol. Tem o colesterol bom, que lubrifica as artérias, quer dizer, que garante o fluxo e o funcionamento do país. Mas tem o colesterol ruim, que obstrui tudo e atrapalha o desenvolvimento do país", critica. De fato, a burocracia no país é de infartar. Para se ter ideia, estamos na posição 123 de um ranking de 190 países feito pelo Banco Mundial que mede a facilidade de fazer negócios no mundo. O estudo anual Doing Business simula quanto tempo e dinheiro são necessários para abrir uma empresa, obter um alvará de construção, pagar impostos etc. Em São Paulo, o principal centro econômico do país, gasta-se uma média de 2.038 horas por ano para pagamento de impostos. Isso dá mais de 80 dias.

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No dia a dia, trâmites burocráticos se traduzem também em filas imensas, formulários infinitos, documentos e mais documentos ( original e cópia autenticada, por favor), o que provoca custos, demora e frustração. Até a proposta de desburocratizar a identificação nacional não escapou e esbarrou em uma burocracia própria. O que era para ser simples é simplesmente complicado.

No primeiro capítulo da saga sem fim do documento único, em abril de 1997, o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) assinou a Lei n.º 9454, que pretendia instituir o Registro de Identidade Civil (RIC). Na verdade, a ideia primeira da lei era unificar a emissão de RGs no país. Isso porque, como o RG (registro geral) é um documento emitido pelos órgãos oficiais de segurança de cada Estado, não há um cadastro nacional.

O projeto nunca saiu do papel (pelos motivos que milhares de projetos nunca saem do papel no Congresso) e, assim, até hoje é possível tirar identidades diferentes em cada Estado. Isto é: um nome, mas 27 documentos com numerações diferentes – farra para fraudes e outros esquemas ilícitos.

Até a proposta de desburocratizar a identificação nacional não escapou e esbarrou em uma burocracia própria.

Em 2010, quando o RIC parecia mofado em algum armário de Brasília, veio a segunda parte. Num dos últimos atos de seu segundo mandato, no fim de 2010, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) repaginou o RIC. Desta vez, um novo documento deveria substituir o atual RG num prazo de dez anos: um cartão magnético com chip armazenaria impressões digitais e informações básicas (número, data de nascimento, naturalidade, filiação e sexo). Lula e a primeira-dama, Marisa Letícia, até receberam RICs simbólicos, números 001 e 002, durante solenidade no Ministério da Justiça. Mas o projeto caiu no limbo. A Casa da Moeda iria emitir os primeiros 2 milhões de RICs a um custo de R$ 90 milhões. Foram produzidos só 14 mil cartões, e o contrato foi rompido.

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Lula, um dos únicos brasileiros a ter documento único. Crédito: Wikimedia Commons

Em maio de 2015, a presidente Dilma Rousseff (PT) desengavetou a discussão ao lançar o PL 1.775 para instituir o Registro Civil Nacional (RCN), que previa um número único emitido pela Justiça Eleitoral. Além de fotografia, impressão digital e assinatura, o cartão contaria com RG, CPF, título de eleitor, carteira de motorista e até passaporte. À época, a presidente declarou: "Imaginem a extraordinária mudança na vida cotidiana dos brasileiros. Quem não sonha sair de casa carregando apenas um documento, em vez de ser obrigado a andar com vários deles? Quem não gostaria de fechar uma transação comercial, resolver uma pendência financeira, abrir uma conta ou até registrar um imóvel apenas com a apresentação de um documento? É preciso descomplicar a vida das pessoas e tornar a relação das pessoas com o Estado mais simples, mais fácil, mais transparente." (Sim, sonhamos.)

O projeto foi questionado no campo econômico (a estimativa estava na casa de R$ 1 bilhão) e jurídico (a própria atribuição de competência à Justiça Eleitoral). Além disso, foi questionada a segurança jurídica do cidadão, pois o projeto, tal como estava escrito, poderia abrir brechas para a comercialização de dados sigilosos. As discussões emperraram, e a lei não avançou.

Ministro da novata Secretaria da Micro e Pequena Empresa à época, Guilherme Afif Domingos conheceu um projeto de identificação biométrica do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com investimento de R$ 2 bilhões – segundo dados atualizados de abril, há quase 52 milhões de eleitores brasileiros já cadastrados. Afif fez a ponte entre as duas casas, o Executivo e o Judiciário, para aproveitar as informações deste projeto para viabilizar a identidade única.

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O último capítulo da saga aconteceu em maio de 2017, com a sanção da Identificação Civil Nacional que, por sua vez, institui outra sigla: Documento de Identificação Nacional (DIN) que mescla pontos de tentativas anteriores. De acordo com a proposta, o DIN será emitido pela Casa da Moeda (como propôs Lula), a partir de uma base armazenada e administrada pelo Tribunal Superior Eleitoral (como propôs Dilma). Terá três números centrais: CPF, RG e título eleitoral (CNH e passaporte ficaram de fora, pois são documentos apreendidos se um crime é cometido). Temer vetou dois pontos complicados. Primeiro, a gratuidade do novo documento (com o veto, o cidadão precisará pagar até pela primeira via). Segundo, riscou a especificação da pena para quem comercializar dados sigilosos --no texto original, estavam previstas pena de até 4 nos de prisão e multa para quem vendesse informações.

Entretanto, em tempos em que uma selfie basta para confirmar a identificação biométrica nos negócios digitais (Uber e Visa, por exemplo), comprovar nossos números todos num único cartãozinho ainda é uma expectativa futurista. Afif estima que o documento único só deve valer a partir de 2021, prazo estimado para finalizar a base de informações do tribunal.

Segundo o secretário-geral da presidência do TSE, Luciano Fuck, o tribunal iniciou estudos para conferir a compatibilidade de seu banco de dados para expandi-lo para a ICN. "Como todo documento, é natural que seja implementado de forma gradativa. O documento é criado para ajudar as pessoas, não para ser um peso. Na medida em que o documento for se tornando importante, para que a pessoa consiga fazer operações bancárias, se identificar, receber aposentadoria, enfim, exercer seus direitos, a tendência é que a pessoa procure com muito mais intensidade a utilização desse serviço", diz Fuck.

Muitos trâmites no Congresso, discussões, desenvolvimento de tecnologias depois, a aprovação da ICN abre caminho para os próximos passos: pretende-se criar um comitê com integrantes do Executivo, Legislativo e um representante do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), além do próprio TSE. Eles vão definir o modelo do novo documento e, principalmente, o Fundo da Identificação Civil Nacional, que deverá custear o desenvolvimento e, finalmente, a implementação do DIN.

A cada passo, sanção ou solenidade política, a ideia de uma identidade única parece algo ao alcance de um guichê. Mas, para muitos, é mera miragem. Há tanto tempo envolvido na idealização desta proposta, nem Afif está muito otimista. "Não temos muita certeza sobre a implantação do projeto, pois não vejo ninguém, nenhum núcleo operacional atuante para dar sequência ao projeto. No fim, é esperar para ver…".