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Politică

Tudo que sabemos sobre a URSAL

Da União Ibérica à União das Repúblicas Socialistas da América Latina, uma história da integração na América Latina

Eis que, numa palavra de questionamento, o verbo fez-se esperança: quando o deputado federal e candidato à presidência Cabo Daciolo (Patriota) perguntou a um inocente Ciro Gomes (PDT) no debate dos presidenciáveis da rede Bandeirantes na quinta-feira (9) sobre a hipotética “União das Repúblicas Socialistas da América Latina”, não sabia que estava plantando um sonho.

Daciolo, um ferrenho conspiracionista daqueles que enxergam illuminatis e Rotschilds embaixo da cama, começou a pergunta com um erro crasso, atribuindo a Ciro a fundação do Foro de São Paulo – conferência anual das esquerdas do continente americano, o Foro de São Paulo foi fundado em 1990, ano em que Ciro era prefeito de Fortaleza filiado ao pouco esquerdista PSDB. Mas foi a URSAL (que, confesso, confundi em primeiro momento com a balada gay paulistana Ursound) que conquistou a imaginação popular. Considerado um “plano” de dominação comunista pelo paranoico Daciolo, a sigla significaria União das Repúblicas Socialistas da América Latina.

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A conspiração em torno da URSAL não é novidade. O termo foi proposto pela primeira vez em 2001, a título de chacota, em um texto da socióloga Maria Lucia Victor Barbosa. Para rebater as críticas do então pré-candidato à presidência Lula à ALCA, tentativa norte-americana de criar uma área de livre comércio nas Américas, Barbosa cunhou a expressão com um jocoso “Republiquetas” no lugar de “República”.

A questão é que o termo URSAL aparecia pouco mesmo entre os conspiracionistas mais ferrenhos da direita brasileira – e, há de se admitir, nunca sequer foi citado nas atas do Foro de São Paulo. Antes de ser alçado à categoria de “plano” por Daciolo, era usado como metáfora pelo Alex Jones brasileiro Olavo de Carvalho e seus seguidores em suas críticas à integração entre as esquerdas latino-americanas, que enxergam como um perigo iminente à hegemonia capitalista no continente.

Durante a década de 2000, o Foro de São Paulo era um dos principais assuntos do agora defunto site Mídia Sem Máscara, especializado em espalhar conspirações direitistas dignas d’Os Protocolos dos Sábios de Sião na internet brasileira – quem não lembra do veículo chamando a revista Veja de baluarte do comunismo por ter publicado matérias sobre a China não sabe como era engraçado a conspiração moleque, a conspiração arte. A questão é que, nos últimos cinco anos, teorias da conspiração têm ganhado mais espaço no mainstream, aqui e alhures, basta pensar no exemplo da provável trollada que saiu do controle conhecida como QAnon.

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Olavo de Carvalho organizou o pensamento conspiratório em torno do Foro de São Paulo como um Charlie Day tropical. Entre alegações da participação das FARC em eventos e críticas aos apoios a Fidel Castro e Hugo Chávez, o astrólogo disseminou em uma série de artigos, publicados majoritariamente no Mídia Sem Máscara e em seu site pessoal, a impressão de que há um conluio para um golpe iminente do Foro para criar uma América Latina una, de estilo soviético. A publicação da compilação “O Mínimo Que Você Precisa Saber Para Não Ser Um Idiota”, organizada pelo também conspiracionista Felipe Moura Brasil, acabou dando um tom de legitimidade para o que até então era um delírio que ultrapassava as esperanças do mais tresloucado bolivarianista.

Se é de se desconfiar que Daciolo entrou na corrida presidencial para fazer o deputado federal Jair Bolsonaro (PSL-RJ) parecer comedido e razoável em comparação com o ex-bombeiro, é bom lembrar também que teorias a respeitos de cabalas comunistas internacionais não são novidade entre a extrema-direita – o próprio “Protocolo”, forjado a partir de um texto satírico nada antissemita, ganhou o mundo na esteira da Revolução Russa de 1917 e das revoluções europeias que seguiram o final da Primeira Guerra Mundial (como na Alemanha e Hungria), servindo de base para o nazismo.

[EDIT: Bolsonaro pode deixar a URSAL de lado, mas não hesita em incluir o Foro de São Paulo no seu programa de governo, como pode ser visto na página 27 do documento]

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Assista ao nosso documentário "O Mito de Bolsonaro"


No Brasil, porém, o comportamento exagerado de Daciolo gerou reações mais dignas, entre a chacota e a esperança. Enquanto uns sonhavam com uma seleção de futebol com Messi, Suárez e Neymar, outros faziam memes com os Ursinhos Carinhosos. A URSAL virou rapidamente camiseta, moletom e boné, provando que o capitalismo é mais eficiente em ganhar dinheiro do que os comunistas em fazer revolução.

Para além da conspiração, sonhos de integração da América Latina não são novidade. O órgão mais recente a ser criado com essa intenção é a UNASUL, União das Nações Sul-Americanas, fundado em 2008, no auge da “onda rosa” de partidos de centro-esquerda governando o continente. Antes disso o Mercosul foi criado em 1991 e tenta ainda, aos trancos e barrancos, integrar as economias do Cone Sul (Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina, além da suspensa Venezuela).

Porém, bem antes da “América Geral”, essa integração já chegou a ser bem mais real. Entre 1580 e 1640 a União Ibérica, consolidação das coroas de Portugal e Espanha, plantou essa primeira semente, reunindo sob a mesma bandeira, além dos dois países da península, a costa brasileira, e parte dos territórios que formam hoje Argentina, Chile, Equador, Colômbia, Bolívia, Peru, Venezuela, Cuba, Jamaica, México, América Central e até mesmo Estados Unidos (sem contar Filipinas, parte da Holanda, o sul da Itália e uma série de pequenos enclaves na África e Ásia).

A união aconteceu poucos anos após a morte do rei português D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir em 1578 – sem herdeiros, o trono foi ocupado pelo seu tio-avô, D. Henrique, que morreu após três anos. Com o apoio de grande parte da nobreza de Portugal, o rei espanhol Filipe II invadiu o país e juntou as coroas, inaugurando o maior império ultramarino até então, que só seria ultrapassado no século XIX pelos britânicos. A união foi bem por um tempo, com os países cuidando de seus afazeres quase que separadamente, mas começou a degringolar sob o comando de Filipe III, o que levou à Guerra da Restauração, vencida pelos portugueses com o apoio da França.

Mas o sonho da integração latino-americana não morreu aí. Com a invasão da península ibérica em 1808 pelas tropas de Napoleão Bonaparte, começa o processo de independência das colônias portuguesas e espanholas nas Américas. Enquanto o processo foi mais lento na América Central, isolando o México (que declarou sua independência em 1810, mas que só a obteve em 1921), na parte espanhola da América do Sul foi um arraso – entre 1810 e 1822 praticamente não sobrou resistência espanhola no continente.

Divididas em unidades administrativas chamadas vice-reinos pelo governo espanhol (Nova Granada, Rio do Prata, Peru e Nova Espanha), as possessões espanholas foram reproduzindo as divisões já feitas pela Coroa, e fragmentando-se ainda mais. Porém, em um certo momento, chegou-se bem próximo de existir um único país espanhol. A ideia de reunir as repúblicas hispano-americanas sob uma única confederação, uma espécie de Estados Unidos da América do Sul, era um sonho de Simón Bolívar, um dos principais generais a liderar as independências das colônias espanholas. Porém seu ímpeto foi frustrado por José de San Martín, o outro grande libertador da América, que tinha um pensamento monárquico e que negou a Bolívar o sonho após a Conferência de Guayaquil, no Peru – a última cartada de Bolívar, o Congresso do Panamá, em 1826, não rendeu os frutos esperados.

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