The author holding a pair of dumbbells
Fitness

Tentei ficar sarado durante a quarentena

Todo mundo está malhando. Por que não eu?
Chris Bethell
fotos por Chris Bethell
MS
Traduzido por Marina Schnoor

Quando meu editor perguntou se eu queria ficar sarado durante o lockdown, eu já tinha tomado três cervejas e meia garrafa de vinho tinto. Digitei com toda aquela confiança do pileque: “Estou negligenciando meus músculos há um ano (risos), então quero tentar”. Clicar no enviar me fez ficar sóbrio: percebi imediatamente que tinha feito merda.

Muita gente começou a quarentena prometendo entrar em forma, mas elas tinham uma saída: elas podiam simplesmente… não entrar. Não tenho uma rota de fuga – agora é meu trabalho entrar em forma. Não dava pra desistir da matrícula na academia e ir comprar bebida com o reembolso, não dava pra fingir que me machuquei pra sair dessa, não dava pra encontrar um meio termo.

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Essa não é uma questão de conseguir um “corpinho de verão” ou perder peso – é uma questão de passar pelo inferno pra ser feito de piada, tentar ganhar o máximo de músculos possível, e perder o máximo de gordura corporal, num período de tempo limitado, usando só as coisas que já tenho: um conjunto modesto de halteres e a gravidade.

No primeiro dia do desafio, acordo, noto a proteína de manteiga de amendoim e chocolate que comprei 15 pra meia-noite, e considero o ditado “você é o que você come”. Cerveja provavelmente é minha comida favorita. Raramente como carne, mas também só como espinafre refogado com muita manteiga, tipo o James Martin em Saturday Kitchen.

Não vou pra academia há dez meses e não saio pra correr há uns quatro anos. Não dá pra ir andando pro escritório, já que trabalho de casa. A economia da precarização não te dá tempo pra ser fitness. Mas quando minha balança nova chegou e vi que meu índice de massa corporal e porcentagem de gordura apareciam como “levemente obeso”, percebi que devia começar a criar tempo – não apenas por causa dos riscos de saúde de longo prazo (diabete tipo 2, pressão alta, doenças hepáticas e renais, só pra citar alguns) associados a essa frase.

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Tirar fotos para o começo do desafio é horrível. Não por causa do meu fotógrafo, o Chris – ele é gente fina – mas nunca gostei de ficar na frente da câmera. Com cada clique sinto camadas serem arrancadas da minha pele calejada, expondo meu constrangimento. Tentamos mesmo tirar fotos não muito lisonjeiras usando flash e fundo branco, para mostrar minha pança branquela e meus dentes sujos de chocolate em toda sua glória.

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Assim que o Chris vai embora, sinto vontade de me exercitar. Faço cinco flexões e caio deitado de cara no meu tapete de ioga, gemendo.

PRIMEIRA SEMANA

92 quilos, 33,4% de gordura corporal

Coloquei o peso aqui, mas esse não é o foco – ganhar músculos muitas vezes leva a ganhar peso, então não estou muito preocupado com isso. Estou focado na porcentagem de gordura corporal, porque já li que qualquer homem pode ter um tanquinho se sua gordura corporal fica perto de 15%, e quero ver como pareço com um abdômen definido.

Tem algumas coisas que você vai lembrar inexplicavelmente na vida. Você não pensa nisso todo dia, mas lembra dessas coisas pra sempre. Pra mim, uma dessas coisas aconteceu no dia 23 de agosto de 2018: Kim Kardashian anunciou que faz mil agachamentos por dia. Lembro disso porque ontem fiz 200 agachamentos, e hoje quase não consigo andar. Ir até o banheiro está sendo difícil. Imagino a Kim se obrigando a ir ao banheiro tipo o Bambi andando no rio congelado, fazendo careta toda vez que se limpa. Tenho muito respeito por ela.

Na noite seguinte decido experimentar o Brutal HIIT Ladder Workout, pra ver onde está meu preparo físico. Dez minutos depois, meu sangue parece cidra de vinagre. Manco até o final da sessão e deito no chão por algo entre dez minutos e uma hora. Enquanto estou no chão, um e-mail aparece no meu celular: “Agendamos reuniões semanais no Zoom pra você com Zack George, o cara mais sarado do Reino Unido, começando na segunda-feira. Ele vai te a mandar sessões de treino pra seguir”.

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Ter acesso a alguém como o Zack de graça é um luxo, mas não dá pra comprar força de vontade. Então mesmo que ele me mande treinos por e-mail para me ajudar a entrar em forma de maneira responsável, ele não vai me assistir malhando ou conferir o que tem na minha geladeira – e já sei que vou ignorar toda vez que ele sugerir correr. De qualquer maneira, falar com ele significa que estarei um pouco menos no escuro sobre o que fazer na próxima semana.

Por enquanto, fico por conta própria. Tuítes sobre Fitness Blender e Joe Wicks enchem meu feed, enquanto parece que todo mundo está na fase “promessa de ano novo” da quarentena. Sigo várias contas de treino, aí descubro a pessoa que se torna meu novo semideus: Jeff Cavaliere do ATHLEAN-X™ (mais sobre ele depois). Clico num vídeo chamado “Malhação Brutal de Tríceps (FIQUE DOLORIDO EM 6 MINUTOS!)” e reparo no tema comum “brutal” nos títulos, imaginando se essa tentativa de entrar em forma vai me transformar num masoquista pro resto da vida.

Assisto cada vídeo antes de fazer os exercícios, porque geralmente não faço a menor ideia de como fazer nenhum deles (fly invertido com halteres????), o que significa que eles levam duas vezes mais tempo. Também tenho que descobrir que vídeos têm exercícios que você pode fazer em casa. O sofá se mostra muito útil para fazer mergulho, flexão inclinada e outros exercícios que eu nunca tinha ouvido falar.

Seis minutos depois e estou todo dolorido. Viro um shake de proteína com gosto de giz. Fico pensando se posso fazer uns dias de descanso. Também estou arrependido de não ter bebido minhas cervejas antes de começar, porque sei que não posso tomar uma, o que é muito triste, mas não tão triste quanto não tomar uma.

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SEGUNDA SEMANA

92,5 quilos, 30,5% de gordura corporal

Me encontro com meu personal trainer, Zack George, pelo Zoom. Pergunto sobre dor em certo ponto e ele diz: “Se você está com dificuldade pra andar de manhã, podemos fazer um treino mais leve naquele dia”. O que me confortou. Também reparo como ele é definido, e fico com inveja e preocupado ao mesmo tempo.

“Não acho que você vai ganhar muita massa, é difícil”, diz Zack. “A maioria das pessoas precisa de meses pra fazer isso numa academia de verdade. Mas talvez você seja geneticamente abençoado…”

Não sou geneticamente abençoado, e logo perco interesse no que está sendo dito, voltando pra realidade quando ele diz: “Você consegue melhorar sua aparência em um mês”. Ele me passa meu primeiro treino:

50 repetições de cada exercício por vez:

Flexão

Agachamento

Dumbbell snatch 10kg

Kettlebell Swing

Burpee

No total, vou acabar rangendo os dentes em 75 treinos "intensidade Zack" em cinco semanas, além dos 21 que defini eu mesmo.

Um pouco depois, a quarentena no Reino Unido começa realmente e me mudo pra casa da família da minha namorada. É minha primeira visita, e logo percebo que não posso manter meu relacionamento enquanto me alimento como um fisiculturista, vivendo só de arroz integral e atum, e me recusando a beber cerveja. Não posso ficar cheirando suor e fazendo barulhos estranhos de esforço de madrugada. Também não tenho acesso a um chuveiro ou cozinha por 14 dias, já que parece mais seguro ficar de quarentena na sala, então tenho que fazer meus shakes de proteína no banheiro do primeiro andar, onde posso lavar o sovaco. Também não sei como diminuir o aquecimento, o que rende um desafio: recomendo fortemente nunca fazer treino HIIT numa ambiente de “hot yoga”.

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Na primeira manhã na casa, tenho um pequeno ataque de ansiedade. Achei que conseguiria malhar na frente da minha namorada, mas não consigo. Depois de dez burpees, me sinto constrangido enquanto ela me filma para o meu stories do Instagram, então paro sem dar explicação e afundo de cara de mau humor na cama por uns 20 minutos.

Enquanto isso, percebo que a questão é mais que ficar sarado. A questão é aceitar que não gosto do meu corpo e confrontar que quero, realmente, mudar minha aparência. Não porque pareço mal, mas porque deve ter uma razão para eu não gostar de tirar foto, ou ter um leve surto depois de 30 segundo me exercitando na frente de alguém que quero que goste de mim. Enquanto a câmera roda, já estou pensando nas fotos de “depois” do desafio. Mesmo querendo me esforçar ainda mais pra chegar lá, não posso ignorar as dificuldades imediatas de perceber quanto vou ter que trabalhar. Sou humano afinal de contas.

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TERCEIRA SEMANA

91 quilos, 26,4 de gordura corporal

Acordo com o melhor presente de Natal que já ganhei: um bíceps de verdade. Consigo sentir o músculo duro dobrando o braço pra me olhar no espelho. Mais tarde, quando me inclino para sugar oxigênio no meio do treino, minha barriga parece ter uma forma mais oval na vertical, não a pança redonda que costumava ser. Aí tento correr e tenho dor nas costas. Então o dia vira um dia de descanso, tenho direito a um por semana. Passo o dia sentindo meus pequenos bíceps e assistindo vídeos de treino.

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Tenho realmente vontade de ser ativo, mas me conformo com exercitar a mente. Literatura fitness é minha vida agora, e estou petrificado. Depois de mais algumas horas, onde absorvo pérolas de sabedoria – “com base em minutos, o burpee é um dos exercícios mais eficazes para queimar calorias” – minha namorada me interrompe.

“Você está encarando intensamente esse camarão, e CONCORDANDO COM A CABEÇA COM O QUE ELE FALA.” Ela está se referindo ao semideus Jeff Cavaliere do ATHLEAN-X™, e seu vídeo “As 5 Formas Mais Idiotas de Fazer Cardio”, onde ele tira sarro de correr, meu nêmesis.

“Ele tem 5,3% de gordura corporal – não chama ele de camarão!”, respondo.

No final da semana, estou dolorido ao ponto de ser difícil me vestir, mas aprendi a me exercitar mesmo assim (não sei explicar como, só aconteceu, como acho que acontece com “aprender a andar”). A ideia de me exercitar vira parte da minha cesta de compras do dia, não um produto extra que fica caindo da cestinha.

Making a protein shake

QUARTA SEMANA

90 quilos, 23,4% de gordura corporal

Perdi mais de 10% de gordura corporal. Meus braços já têm músculos visíveis “em descanso”, na luz certa. Tem uma leve linha vertical se formando no meio da minha barriga. Quando coloca as mãos no quadril, não sinto pneuzinhos. Mas estou desesperado para conversar com o Zack esta semana – preciso dele como um filhote de urso precisa da mãe.

Meu lanche pós-café da manhã é um smoothie com: proteína de pera em pó, fava isolada, linhaça em pó, couve-de-folhas, arroz integral e mais. Sabe quando você mistura todas as cores de tinta e acaba com um verde meio amarronzado, aquela cor que eles usam nos maços de cigarro pra desencorajar as pessoas de fumar? O smoothie tem essa mesma cor e o mesmo gosto. Mas não ligo. Estou esbanjando saúde.

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Making a protein shake

Tudo meio que está se encaixando. Descobri que o mundo fitness tem muitas siglas e que otimização é tudo, como as conversas do Kevin no The Office. Uma coisa específica que descobri é que treino EMOM funciona muito bem pra mim. Essa é a sigla para Every Minute On The Minute – então digamos que você faz dez burpees em 39 segundos, aí você descansa pelos outros 21, daí faz o próximo exercício. Combina comigo porque quanto mais você se esforça, mais você descansa.

No final da semana, deixo a casa da minha namorada. Sinto que cresci muito lá, mas me sinto mal porque essas semanas foram meio chatas por causa do desafio. Espero que ela me ache mais gostoso agora. Talvez eu compre uma correntinha de prata estilo Connel pra acentuar os músculos, ou vou continuar malhando pra gente poder comer um monte de porcaria da próxima vez que a encontrar. De qualquer maneira, na volta pra casa de trem, percebo como pessoas de sucesso muitas vezes parecem babacas, e isso me faz pensar.

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QUINTA SEMANA

89 quilos, 23,1% de gordura corporal

Estou olhando pela janela é tudo é lindo. Olho a placa de néon do restaurante de kebab e sinto uma brisa morna entrando pela janela. Parece que estou de férias. Isso principalmente porque estou tomando uma cerveja e tem uma pizza no forno. Agora que meu desafio da quarentena acabou, estou pensando no que conquistei e como isso provavelmente é insignificante – um esforço 5 de 10 comparado com as coisas que você vê nas revistas de fitness.

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Notei algumas coisas sobre meu corpo desde que tentei ficar sarado. Por exemplo, quando você ganha bíceps, peitoral e grande dorsal, eles tendem a aparecer. As fibras musculares retêm informação e lembram como contrair. Semanas depois, ainda consigo contrair meu peitoral quando quero, e meus braços parecem firmes quando cruzados. Não estou malhando tanto – talvez umas duas vezes por semana se tenho tempo – mas isso é mais do que eu malhava antes, e os resultados ainda estão aqui.

No final do desafio, perdi um terço da minha gordura corporal – uma mudança bastante radical. Mesmo enquanto minha pizza de comemoração faz meu sutil tanquinho desaparecer, os músculos ali se desenvolveram consideravelmente. Minha postura está mais reta em pé e sentado. Me sinto mais forte, minhas costas doem bem menos e não preciso estralar o pescoço três vezes por dia. Meus músculos das pernas, que sempre foram anormalmente aparentes, estão ainda mais aparentes. Tem mais definição onde minha coxa encontra a parte de trás do joelho, o que é meio estranho, mas curti.

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Fora as mudanças físicas, há outras coisas que percebi. Uma é que muitos aspectos desse desafio seriam melhores para uma pessoa solteira. Na verdade, além de te ajudar a manter alguma noção da realidade, esse desafio combina muito mais com alguém que não está num relacionamento. Ele tira uma parte da sua vida: substituindo tempo de qualidade por cardio e agachamentos, alguns drinques e uma sobremesa por uma garrafinha extra de água. Não dá pra imaginar a Dama e o Vagabundo se beijando com um cookie de proteína, né?

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O desafio me fez sentir confiante o suficiente para postar minha primeira selfie, mas eu não estava preparado para foder com a minha vida temporariamente pra ficar definido e voltar ao normal depois. Sob as circunstâncias atuais, onde tudo já está estranho, manter algum senso de normalidade é mais importante que nunca.

Meu relacionamento com exercícios realmente mudou. Não vou tão longe pra dizer que agora adoro malhar, ou que quero contar cada milímetro de gordura que meu corpo dissolver, mas se noto agora 20 minutos livres no meu dia, penso: “Posso passar esse tempo me movimentando, com ou sem coisas pesadas nas mãos”. Acho que de ter formado um relacionamento melhor com exercícios é um ganho real.

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Nas últimas cinco semana, fiquei totalmente consciente dos meus sentimentos com meu corpo. Às vezes fico ligeiramente neurótico com minha aparência, mas aí lembro que “ficar sarado” é um objetivo ridículo desde o começo. Tenho mais orgulho de ter conseguido ver uma diferença na minha aparência num período específico. Ganhei músculos e isso me faz sentir bem, mesmo que não tenha me feito sentir um ser humano melhor. É a novidade da conquista, como escalar uma montanha, o que recomendo se você está curioso e em forma o suficiente – ganhei algumas dores e uma paisagem bacana no final – mas estou feliz de ter descido para a normalidade.

Acho que não vou manter o regime pesado do Zack depois da quarentena. Mas vou lembrar dele dizendo que treinou a vida inteira, e ele usa a palavra consistência numa conversa umas cinco vezes. Ele tem 29 anos. No mundo dos sarados, tenho só umas quatro semanas de idade.

Segundo a ciência, hábitos são formados em 66 dias, e agora estou no meio caminho desse tempo. Mesmo se diminuir para apenas alguns treinos por semana, serei uma máquina comparado com meu antigo eu. E quando o verão chegar mesmo, quem sabe – talvez eu goste de ver meu reflexo na porta de vidro do pub. Então esse é o pleno: tentar continuar, no meu próprio ritmo, com responsabilidades. Um brinde a isso.

@_rhysthomas / @christopherbethell

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