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Recuperando Memórias no Campo de Refugiados Zaatari

Reunimos algumas fotos e impressões do membros do coletivo holandês NOOR sobre a experiência de tentar recuperar e dar permanência às memórias dos refugiados.
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Por NOOR

Quatro fotógrafos do coletivo de fotojornalismo NOOR, de Amsterdã, passaram a virada do ano no campo de refugiados Zaatari, na Jordânia. Localizado a cerca de 30 quilômetros da fronteira com a Síria, o acampamento teve início em julho de 2012 com apenas 100 famílias. Mas, no começo do ano passado, o lugar já abrigava 120 mil residentes, se tornando o segundo maior campo de refugiados do mundo. Alguns meses antes, no outono de 2013, Robert King, da VICE, documentou a vida ali apenas 72 horas depois de um ataque com gás sarin em Damasco ter feito ainda mais sírios fugirem. Um dos muitos desafios que os residentes de Zaatari enfrentam é a falta de qualquer evidência física de memória. Em muitos casos, os refugiados chegam ao campo apenas com a roupa do corpo, deixando para trás fotos de família e entes queridos. Esses fotógrafos tentaram recuperar essas memórias e dar permanência a elas.

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Entre o Natal e o dia 5 de janeiro de 2014, Nina Berman, Andrea Bruce, Alixandra Fazzina e Stanley Greene – com apoio da Agência de Refugiados da ONU (ACNUR) e da Japan Emergency NGOs (JEN) – transformaram uma enorme tenda num estúdio fotográfico onde os refugiados podiam fazer seus retratos. Eles deviam trazer algum objeto querido para eles ou, caso não tivessem nenhum, uma pessoa amada. Um garoto veio enrolado num cobertor. Um homem trouxe um narguilé. Uma mãe posou com seus cinco filhos. Cerca de 300 retratos foram impressos no local e dados para que as pessoas pudessem guardá-los.

Os quatro fotógrafos também documentaram o cotidiano no acampamento. As imagens resultantes e alguns dos retratos foram impressos em grandes cartazes e colados nos 300 metros do muro coberto de arame farpado que cerca a entrada do campo. O objetivo é fornecer aos refugiados dentro de Zaatari uma maneira de refletir sobre sua própria situação, além de atrair atenção para a crise dos refugiados sírios.

Abaixo temos algumas das fotos selecionadas e a reflexão pessoal de cada fotógrafo sobre sua experiência em Zaatari.

Texto e fotos por Alixandra Fazzina/NOOR:

Observando por entre os aros de um vestido verde-sálvia, Noor, de seis anos, espera pela tia que se apronta para seu casamento num salão de beleza do campo. Sabendo que pode levar anos para que suas comunidades possam voltar a ter uma vida estável na Síria, muitos dos refugiados na Jordânia estão começando uma vida nova aqui, se casando e tendo filhos apesar de todas as dificuldades.

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Usando conjuntos que combinam doados por uma instituição de caridade, as trigêmeas de quatro dias Shereen, Nasreen e Noor estão enfileiradas sobre as pernas da mãe, Zainab, na barraca alugada da família. Tendo fugido há sete meses do conflito no vilarejo Jazim Namar, na zona rural síria, Zainab e seus filhos encontraram refúgio com milhares de outras famílias em Zaatari, o maior campo de refugiados da Jordânia.

"É um milagre dar à luz três bebês aqui em Zaatari", disse Zainab. "Se as trigêmeas tivessem nascido na Síria, elas estariam mortas. Não há mais médicos – ou mesmo leite. As portas e janelas da nossa casa se foram há muito tempo, e os bombardeios destruíram a maioria dos muros. Aqui passamos frio – não temos cobertores ou aquecedores suficientes –, mas a imagem geral é muito melhor."

Depois de sua terceira gravidez múltipla, Zainab já estava tendo de lidar com a parte prática de criar as três meninas no campo. "Fui até o mercado comprar um carrinho de mão, para que, pelo menos, eu pudesse ser independente e mover os bebês por aí, mas o preço está além dos nossos meios. Só vou poder sair com ajuda de amigos e vizinhos."

Num círculo de jovens mulheres, Saja, de cinco anos, dança ao som da música amplificada de um celular durante um casamento sírio em Zaatari. Apesar de as garotas soltarem os cabelos brevemente, apenas algumas músicas são tocadas antes da união entre o noivo e a noiva. Os casamentos no campo de refugiados são discretos nesses tempos de guerra por respeito àqueles que perderam entes queridos.

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Para mim, Zaatari também foi um começo. Câmeras eram vistas com grande suspeita pelos refugiados sírios, que temem ser identificados pelo regime ou usados de maneira inapropriada na mídia; eles veem a fotografia como uma ferramenta que pode trazer desrespeito e não consideram isso uma coisa normal. Eu nunca andava com a minha câmera, algo que aprendi depois de cinco anos no Paquistão, um lugar culturalmente sensível. Trabalhei discretamente, fazendo amigos pelo caminho e compartilhando por um momento a intimidade de pessoas muito fortes.

Texto e fotos por Stanley Greene/NOOR:

Este homem teve de esperar mais de uma semana para entrar no campo com sua esposa e filhos; ele ficou preso num limbo burocrático, porque a esposa era saudita. Só sírios podem entrar como refugiados na Jordânia; então, essa família foi levada para uma área de espera especial próxima do centro de chegada até que se pudesse negociar uma passagem segura para a Arábia Saudita. Milhares de não sírios, incluindo palestinos que viviam na Síria, estão num limbo legal e presos dentro do país, já que os outras nações não estão aceitando refugiados "duplos".

Sempre houve essa ideia de que nós, fotógrafos, estamos sempre preparados para dar algo em troca, para sermos levados para longe dos nossos próprios interesses. E isso nem sempre é fácil: às vezes, passamos muito tempo mostrando o lado ruim das coisas. Tornamo-nos cínicos e perdemos a fé na humanidade. Mas há momentos em que redescobrimos a condição humana. O tempo que passamos nesse projeto nos deu de volta esse sentimento por um instante – nos olhos brilhantes de uma criança sorridente, na risada quando a piada éramos nós, enquanto lutávamos com a câmera tentando destilar a cena. É isso que vou manter comigo – talvez não a foto perdida, mas a memória da imagem. O NOOR sempre tenta iluminar os cantos mais escuros do mundo, porque, no final das contas, é isso que nosso coletivo significa: luz. Às vezes, damos sorte e brilhamos por nós mesmos.

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Texto e fotos por Andrea Bruce/NOOR:

Em Zaatari, crianças dormem em colchões no chão na área de recém-chegados. No primeiro dia de 2014, quando esta foto foi tirada, cerca de 80 pessoas chegaram ao campo buscando refúgio. O grupo daquela manhã afirmou que duas famílias tinham morrido congeladas tentando chegar à fronteira com a Jordânia.

Quando abordamos esse projeto dos retratos pela primeira vez, fiquei um pouco preocupada. Lá estávamos nós, apenas fotógrafos. Podemos contar a história dos refugiados sírios e dar fotos a eles. Mas isso não ajuda diretamente com as casas que eles perderam, os parentes, com a vida que eles conheciam completamente desmantelada. Como esses fotógrafos seriam recebidos?

O que descobrimos foi mágico. Com um pano de fundo preto de estúdio, nós os tirávamos visualmente do campo. Esses simples retratos permitiam que essas pessoas fossem pessoas, davam a elas uma parcela de normalidade e uma chance de serem vistas como algo além de refugiados. Acho que as fotos, que imprimimos e demos àqueles que queriam um retrato, rejuvenesceram um senso de orgulho que é necessário para a sobrevivência diária, especialmente nessa guerra aparentemente sem fim.

Texto e fotos por Nina Berman/NOOR:

Meninos no centro de distribuição de pão no campo de refugiados Zaatari. Todo dia, meio milhão de pedaços de pão pita são distribuídos entre os 100 mil refugiados a partir das seis da manhã.

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Hussein, 33 anos, ex-taxista e estudante na região de Ghouta, na Síria, foi ferido enquanto fugia com a esposa e os filhos de um bombardeio. Ele chegou ao campo Zaatari em outubro de 2013. Ele se descreve como politicamente neutro, mas foi preso por engano depois de um protesto no começo do levante. Ele foi torturado por dois meses até que seu irmão conseguiu pagar a fiança. "A morte é melhor do que ser pego por essa gente", me explicou Hussein. Ele contou que eles o penduravam pelas mãos e o deixavam assim por horas. Eles colocaram sua língua no cano de escapamento de um carro e deram partida. Eles queimaram sua pele com ferro. Os torturados queriam saber por que ele estava protestando, por que ele queria derrubar o regime, mas ele nem sequer estava no protesto. Ele lembrou quando foi solto em março: um dia pacífico, o casamento de sua sobrinha. Ele viu os aviões e saiu da cerimônia para buscar a esposa. As pessoas que estavam no casamento morreram; ele ficou ferido e passou quatro dias no hospital. Hussein fugiu com a família assim que recebeu alta. Ele descreveu os vilarejos como completamente vazios. No caminho para a Jordânia, ele contou que aviões tentaram explodi-los. "A maioria das pessoas só estava esperando a morte", ele me disse.

Vi uma foto do Zaatari tirada de cima. O lugar parece um campo de prisioneiros – imenso e sem personalidade. Depois, vi fotos do muro de segurança, sombrio e esmagador. Pensei que, talvez, a fotografia pudesse trazer um brilho para a paisagem e ajudar as pessoas a se sentirem reconhecidas como sobreviventes, como indivíduos. Inspirei-me em outros fotógrafos que usam o meio fora dos espaços tradicionais, como JR.

A maioria dos fotojornalistas prefere trabalhar sem ter que pedir permissão para fotografar as pessoas. Eles sentem que isso atrapalha o processo ou que pode comprometer a autenticidade da imagem. Tínhamos que pedir permissão aos refugiados, e eu adorava a conversa na qual explicávamos o projeto e víamos as pessoas meditando sobre ele. A maioria gostava da ideia, e ter permissão tornou nossa conexão mais sólida. Claro, nem todo mundo concordou. Este homem estava levantando uma tenda com várias outras pessoas. Ele era claramente a estrela – carismático, incrivelmente otimista, simpático e cheio de vida. Tirei muitas fotos, contei a ele o propósito daquilo e, então, pedi seu consentimento. Ele abriu um grande sorriso, riu e afirmou: "Absolutamente, não!". Então, continuei tirando as fotos e ele não se importou, mas nunca vou mostrá-las por aí.

Tradução: Marina Schnoor