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A Polícia Secreta de Mianmar Não Queria Que Falássemos com os Muçulmanos Perseguidos de Meiktila

A violência entre budistas e islâmicos fez com que milhares de pessoas- principalmente muçulmanas - fossem deslocadas para acampamentos improvisados

Pessoas que foram deslocadas pela violência sectária em Mianmar moram agora num ginásio no “distrito playground”, um dos acampamentos PDI.

Mês passado, Tomas Quintana, ativista pelos direitos humanos da ONU, foi atacado por uma multidão quando tentava visitar um acampamento de muçulmanos deslocados na cidade de Meiktila, na região central de Mianmar. “Meu carro foi cercado por umas 200 pessoas, que começaram a chutar as portas e as janelas enquanto gritavam ofensas”, declarou Quintana.

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No entanto, o governo mianmarense pareceu relativamente despreocupado. Ye Hut, o porta-voz presidencial, disse à mídia que Quintana simplesmente entendeu mal a situação. Parece que a multidão enraivecida era somente um grupo de manifestantes pacíficos que tentavam entregar uma carta a ele. Dias antes, depois de passar por uma quantidade considerável de burocracia, eu e o fotógrafo Andrew Stanbridge conseguimos visitar o acampamento para onde Quintana se dirigia na ocasião do ataque, assim como alguns outros. Acho que não éramos tão bem-vindos quanto o figurão da ONU, já que não fomos recebidos por centenas de pessoas batucando em nosso carro e tentando passar bilhetes pelas janelas.

Os acampamentos de pessoas deslocadas internamente (PDI) em questão têm abrigado 1.600 muçulmanos desde que perderam suas casas nas revoltas budistas em Meiktila no começo deste ano. As violentas manifestações antimuçulmanas começaram depois que uma discussão numa loja de venda de ouro, entre o dono muçulmano e um cliente budista, se espalhou para as ruas. As coisas esquentaram rapidamente: muçulmanos teriam supostamente empurrado um monge de sua moto e ateado fogo nele, budistas retaliaram queimando negócios e casas muçulmanas, e esfaqueando e queimando muçulmanos até a morte. A polícia acompanhou tudo, relutante e incapaz de ajudar.

As estimativas colocam o número de deslocados entre 10 mil e 18 mil pessoas, com pelo menos 43 mortos. De acordo com os oficiais em Meiktila, 4 mil pessoas estão atualmente divididas entre quatro acampamentos PDI — três muçulmanos e um budista.

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Um homem sentado entre os escombros de um dos bairros muçulmanos em Meiktila destruído por budistas revoltosos.

Confrontos entre budistas e muçulmanos têm causado o caos em Mianmar — o país do Sudeste Asiático também conhecido como Birmânia — desde 2012, quando o país começou sua “transição para a democracia e liberdade” depois de um levante contra o governo militar na Revolução Açafrão.

A violência no estado de Rakhine — na costa oeste de Mianmar — teve início no meio de 2012 entre budistas locais e muçulmanos rohingya, uma minoria étnica que muitos budistas mianmarenses recusam a aceitar como cidadãos do país. No entanto, mesmo com uma longa história de tensão entre budistas e muçulmanos em Rakhine, a situação é diferente num lugar como Meiktila. Aqui, a linhagem e a cidadania dos muçulmanos não estão em discussão, e não há histórico real de conflito, fora alguns incidentes menores. Muitos muçulmanos da área afirmam ter vivido aqui em harmonia com os budistas, nunca esperando nenhum surto de brutalidade.

Aung Thein, advogado e líder da comunidade muçulmana, confirmou essas afirmações quando nos encontramos em uma das únicas mesquitas de Meiktila que não foi destruída durante as revoltas. Thein, assim como vários muçulmanos que não quiseram se identificar, nos contaram que antes dos ataques, budistas e muçulmanos mantinham boas relações, fazendo negócio, comendo e frequentando salões de chá juntos. Eles culparam a difusão de um discurso de ódio por inflamar as hostilidades. Muita dessa causticidade tem sido perpetuada pelo monge extremista Ashin Wirathu e seus seguidores do 969, um grupo nacionalista budista formado recentemente.

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Wirathu no quartel-general do movimento 969 no monastério Masoeyein em Mandalay, Mianmar.

Quando fui visitar Wirathu em seu monastério, ele me disse que foram os muçulmanos que começaram os confrontos sectários. Seu povo, os revoltosos, estava somente se defendendo. “A grande maioria do povo muçulmano é agressiva […] eles são a razão por trás desse conflito racial”, ele me disse. “Quando o povo budista de Mianmar sentiu que isso era insuportável, eles contra-atacaram e [fizeram] justiça com as próprias mãos, como justiceiros.”

Apesar disso e de seus frequentes sermões sobre o flagelo dos muçulmanos se infiltrando em Mianmar, Wirathu afirma estar tentando evitar mais desordem agora: “Estou tentando encorajar todas as pessoas a viver em harmonia e paz com as diferentes fés. Estou começando a traçar os planos de como viver em paz e harmonia com os outros povos locais”.

Thein descarta as declarações de Wirathu, afirmando que os sermões dos líderes do 969, panfletos e DVDs com retórica antimuçulmana virulenta foram distribuídos por toda Meiktila. “Depois da violência em Rakhine, descobri que os discursos de ódios estavam se espalhando aqui também e que as autoridades locais não fizeram nada para impedir isso.”

Depois ele explicou como a polícia local agora se recusa a permitir que grupos de muçulmanos se reúnam — “As autoridades estão sempre pressionando, dizendo que isso pode acontecer novamente se não ouvirmos suas ordens” — e que, mesmo com muito do ódio tendo arrefecido, ele ainda não se sente seguro. Ele diz também que as autoridades estão dando desculpas para não permitir que os muçulmanos deslocados voltem para suas casas.

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A tensão na cidade permanece e, claramente, muitos muçulmanos ainda estão no limite. Thein nos contou que pessoas que ainda não foram deslocadas podem estar vivendo próximas dos vizinhos budistas que mataram seus amigos ou familiares. “Há muitas pessoas por aqui que estavam envolvidas nas revoltas. Uma mulher que teve seu marido assassinado sabe quem é o responsável e contou tudo para o governo, mas ninguém fez nada.”

Um relatório da Physicians for Human Rights informou que a perseguição de muçulmanos em Mianmar foi liberada no começo do mês passado. O relatório ainda aponta que há elementos que podem levar a “uma violência potencialmente catastrófica no futuro, incluindo crimes potenciais contra a humanidade e/ou genocídio”.

Um muçulmano PDI, que não quis dizer seu nome por motivos de segurança.

O relatório também afirma que há uma cultura de impunidade no país e que muitos dos responsáveis pelo conflito não foram levados à justiça, incluindo policiais que facilitaram as agressões. “Às vezes, os policiais estavam envolvidos diretamente nos ataques… em outros casos, a polícia assistiu a tudo sem fazer nada para impedir”, diz o relatório.

Quando o relatório foi divulgado no Clube de Correspondentes Estrangeiros em Banguecoque, seu autor, Bill Davis, disse que apesar dos conflitos terem parado por enquanto, a estrutura de violência que permite que eles aconteçam continua. “Que está criando uma cultura de ódio e uma cultura que não se importa com isso”, ele disse.

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Os últimos números mostram que 87 pessoas foram presas e que apenas 38 delas são budistas. “A maioria das pessoas realmente envolvidas no planejamento das revoltas ainda estão livres”, um PDI muçulmano me disse. “Só os seguidores [foram presos], não os líderes.”

Enquanto muitos consideram Wirathu e seus seguidores como os responsáveis por instigar a violência budista, teorias sobre quem realmente está por trás disso não faltam. Alguns veem o caso como algo manipulado por certos elementos do governo, gente que quer arrastar o país de volta para os militares e para longe da democracia. Outros acham que é simplesmente um golpe imobiliário para tirar os muçulmanos de propriedades em Meiktila e abrir a área para projetos de desenvolvimento.

Nos dois casos, a palavra “camarada” é geralmente usada, referindo-se a membros e amigos da antiga junta militar que querem manter o próprio poder ou usar isso para enriquecer, agora que o país está aberto para negócios. “Esses camaradas e o governo querem fazer o país retroceder, então, eles criaram essa violência em Meiktila de maneira muito sistemática”, disse um comerciante que falou conosco na mesquita da cidade.

Um dos bairros muçulmanos destruídos nas revoltas de Meiktila.

Punya Wontha, monge e um dos líderes da Revolução Açafrão, concorda que os camaradas estão por trás da violência. Mas ele vê a desordem como sendo motivada mais pela ganância financeira do que como uma tentativa da junta militar para reganhar poder político. “O problema aqui são os donos de terra e a corrupção” disse ele, antes de apontar outro exemplo de como os muçulmanos estão sendo perseguidos no país. Aparentemente, é comum que os oficiais se recusem a devolver as terras dos muçulmanos deslocados, afirmando que eles não possuem a “documentação” correta. Em muitos casos, a documentação nunca existiu — e a terra que eles se recusam a devolver pode fazer os membros do antigo governo de Mianmar muito ricos.

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“Há ordens para que eles não retornem para casa”, disse Bill Davis sobre a questão. “Os oficiais dizem que eles precisam fornecer documentos para provar que são realmente donos da terra, o que — em primeiro lugar — ninguém em Mianmar possui, porque esse não é o sistema. E segundo, suas foram destruídas, então, mesmo se eles tivessem a documentação, ela teria se perdido.”

Ele admite que não pode confirmar essa teoria e disse que não há provas conclusivas, mas acrescentou: “Muitas dessas propriedades estão próximas da rodovia principal, um local muito valioso para negócios e o comércio. Especialmente com a economia decolando, as pessoas querem essas terras”. Davis também mencionou que situações similares têm acontecido em outras partes do país, com o governo tomando propriedades por meios escusos em outras áreas, como os estados de Kachin e Kayin.

Depois de falarmos com Thein e os homens da mesquita, andamos pela região para ver os estragos causados pelas revoltas. Partes da cidade pareciam ter sido atingidas por um ataque aéreo — uma Alepo com menos franco-atiradores. Catadores procuravam algo que pudesse ser reaproveitado e, num bairro incendiado, pastores de cabras guiavam seus rebanhos através do que antes era a sala de uma casa, pastando por cima de pratos e xícaras quebrados.

Cabras pastam sobre os bairros muçulmanos destruídos nas revoltas budistas.

Logo após o almoço, nosso contato apontou um oficial da polícia secreta comicamente óbvio. O homem nos seguiu enquanto nos dirigíamos para entrevistar alguns PDI num local longe do centro da cidade. Quando estacionamos do lado de fora de uma casa para encontrar mais muçulmanos deslocados, nosso contato convidou o policial para entrar também. Ofereci um acordo a ele: se ele derrotasse o Andrew numa queda de braço (usando as duas mãos), ele podia ficar. Mas se o Andrew ganhasse, ele tinha que ir embora. Depois de dez minutos perambulando desconfortável pela calçada, ele por fim se foi.

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Embora ele parecesse desajeitado, inepto e não representasse muita ameaça para dois jornalistas ocidentais; o mesmo não podia ser dito sobre seu status para nossos entrevistados e nosso contato. Apesar da “Primavera Mianmarense” e da promessa constante do presidente Thein Sein de libertar prisioneiros políticos, muçulmanos e ativistas dos direitos humanos, pessoas do todo o país nos disseram temer as consequências de ser pego falando com estrangeiros pela polícia secreta ou informantes.

Em julho, um ativista rohingya de idade avançada que fazia declarações contra o governo com frequência foi preso sob acusações forjadas, apesar de ter a saúde precária e não ter acesso à atenção médica adequada na cadeia. Outro ativista foi preso algumas semanas mais tarde por compartilhar fotos de uma batida policial num acampamento PDI no estado de Rakhine no Facebook.

O oficial da polícia secreta que nos seguiu até o acampamento PDI.

Todos os homens que encontramos no acampamento PDI nos contaram histórias parecidas sobre suas experiências desde que a violência começou. Eles viviam em paz com os budistas, mas notaram as tensões crescendo lentamente. Um deles, um capitão de polícia aposentado que teve a casa queimada, disse: “Não sei por que isso aconteceu — nossa comunidade não fez nada de errado”. Outro, disse que os budistas em seu quarteirão eram muito próximos dele e que ele já tinha até cozinhado para eles antes. Todos culpam Wirathu pelos ataques e dizem que os militares e o governo são cúmplices. “Antigamente, tínhamos paz, mas os discursos de ódio se espalharam sistematicamente, e — lentamente — chegaram às pessoas”, disse um deles.

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Aqueles com quem falamos disseram que não há mais confiança entre as comunidades e que o governo precisava “fazer uma lei” para garantir sua segurança. Mas, por enquanto, a preocupação principal é sair dos acampamentos PDI.

O ginásio no “distrito playground” do acampamento PDI.

O primeiro acampamento que visitamos se chamava “distrito playground” — um complexo esportivo abandonado, com 600 dos 900 PDI morando num pequeno ginásio.

Eles têm vivido aqui por cinco meses, desde 21 de março. Não há privacidade, não há divisórias entre os lotes no chão do ginásio. Tapetes ou colchões ficam jogados no chão, com as posses e sacolas de roupas das pessoas servindo como perímetro de seus espaços. O chão estava tão lotado que duas pessoas não conseguiam andar lado a lado no caminho entre os tapetes. Um homem disse que dividia seu pedaço de tapete com mais sete parentes.

Ninguém tem ideia do que acontecerá do futuro ou qual será a melhor opção. “Temos que voltar para nossas casas. Não nos sentimos livres aqui”, disse um homem. Outro disse que voltaria amanhã se pudesse.

Outros disseram que não se sentiam seguros nas ruas. “Não temos futuro”, disse uma mulher cuja casa foi incendiada. “Não queremos voltar.”

Diferentemente de nossas outras experiências em acampamentos PDI em outras partes de Mianmar, em Meiktila fomos seguidos por uma comitiva de policiais por toda parte — alguns de uniforme, outros à paisana. Era difícil fazer uma pergunta sem que um policial se metesse na conversa e, quando isso acontecia, não havia como continuar.

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Do lado de fora do ginásio, outras pessoas fizeram abrigos de bambu. Algumas cozinhavam, outras vendiam salgadinhos e vegetais em pequenos mercadinhos improvisados. No campo de futebol próximo, algumas pessoas decidiram usar as arquibancadas de concreto como abrigo.

Policiais do lado de fora do acampamento PDI.

Depois de sair do distrito playground, passamos num acampamentos PDI budista próximo da cidade. As condições ali não eram muito melhores. As pessoas também se amontoavam em abrigos escuros, mas a presença das autoridades era menor.

Em outro acampamento que Quintana queria visitar, os PDI vivem numa usina de tratamento de água. Alguns cortavam lenha do lado de fora, outros jogavam chin lone, um esporte similar ao vôlei, mas que usa os pés para chutar uma bola de vime. Aqui, conhecemos a variação chamada sepaktakraw. Abrigos de bambu e prédios administrativos de um andar eram divididos em espaços de aproximadamente 3 por 3 metros para cada família. As condições pareciam melhores nesse acampamento, pelo menos ele era menos lotado, apesar de nosso contato dizer que via isso como o pior lugar possível para se morar.

Nesse acampamento, nossa comitiva foi engrossada com ainda mais policiais e oficiais sem nome da inteligência. Eles faziam piadas entre si, pisando em nossos calcanhares enquanto andávamos pelo lugar tentando achar espaço para nossa entrevista, na maioria das vezes, em vão. O calor sufocante, os alojamentos lotados e as condições fétidas — além da sensação desconfortável de arrastar uma verdadeira brigada de segurança através do acampamento — me deixou enjoado. Fomos embora depois de uma caminhada breve, trocando uma despedida aliviada com nossos acompanhantes do lado de fora do portão vigiado pela polícia.

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A comitiva de segurança que nos seguiu pelo acampamento PDI na usina de tratamento de água.

Os acampamentos PDI continuam abertos e sem uma data clara para que os residentes possam voltar para casa, ou o que sobrou delas. Parece não haver um plano para reconciliar as comunidades ou mesmo qualquer política para atenuar as chances de um novo surto de violência.

Sobre o ataque da multidão em Meiktila, Quintana disse: “O medo que senti durante o incidente, sendo deixado totalmente desprotegido pela polícia próxima, me deu uma ideia do medo que os residentes devem ter sentido quando foram perseguidos por grupos violentos durante os incidentes de março passado, com a polícia somente observando enquanto a multidão enfurecida espancava, esfaqueava e queimava até a morte mais de 43 pessoas”.

Com autoridades incapazes ou simplesmente desinteressadas em proteger um enviado da ONU, o futuro não parece nada promissor para os muçulmanos de Meiktila.

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Veja mais do trabalho do Andrew no site dele.

A reportagem de Danny Gold foi possível graças a uma doação do Internacional Centre For Journalists.

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