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Viagens

Este Pico não é para porcos

Engorda-se para matar, mata-se para comer e come-se para engordar.

A não ser que sejas muçulmano, judeu, gnóstico, adventista do 7.º dia ou vegetariano, a vida de um porco é bastante simples: engorda-se para matar, mata-se para comer e come-se para engordar. Seja em Mirandela ou em Sobral de Monte Agraço, se há tradição que persiste em Portugal à margem das modernices é a da matança do porco. Eu próprio já tinha visto alguns a morrer, mas quando cheguei à ilha do Pico contaram-me que cá duravam três dias, como um casamento cigano mas sem o ouro e as imitações da Nike.

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Do tempo em que um pai tinha quatro ou cinco irmãos que tinham quatro ou cinco filhos que davam quatro ou cinco netos, Ilídio, o meu anfitrião, recorda que as matanças eram as melhores festas da ilha. Como não havia PES os miúdos enchiam a bexiga do porco para jogar à bola ou então montavam umas rodinhas no maxilar e atavam-lhe um fio para fazer carrinhos de puxar — os Nikko da altura. Como também não havia a parvoíce do dubstep, a música que se ouvia era a da chamarrita, uma dança açoriana tipo O Rei Manda, mas com música de rancho. Canelas sujas de sebo, folclore e carros feitos de osso, assim eram os bons velhos tempos. Na manhã de sábado, enquanto as mulheres estão na cozinha os homens sobem até ao curral com o pequeno-almoço já tomado (alguém disse vinho?). Álvaro, o matador, com ar sério e muito compenetrado, dá as ordens e pergunta a Ilídio quem é o estrangeiro. O estrangeiro sou eu.

São precisos cinco homens — todos cunhados de Ilídio — para dominar o animal que em vão tenta adiar o inevitável. Depois de preso, o porco é puxado para fora do curral, acção executada pelos mais fortes e acompanhada pelos grunhidos desesperados do suíno. De repente o dubstep já não me parece tão má ideia.

A arma do crime. Porco morto, porco posto. A limpeza do animal ainda demora um bocado. Apesar de estarem longe do rigor da ASAE, estas pessoas não gostam da sua carne suja. Afinal de contas o seu único porco acabou de morrer. Antes de o abrirem, queimam-lhe o pêlo, dão-lhe banho, estripam-no e só então está pronto para ser desmanchado. O tenente-coronel Kilgore dizia que gostava do cheiro a napalm pela manhã, mas o cheiro das entranhas de um porco não lhe fica nada atrás. Experimentem queimar os pêlos dos braços. O cheiro é semelhante e não têm o inconveniente de estarem mortos. Podia fazer um trocadilho sobre experiências viscerais, mas limito-me às apresentações: Ilídio (à esquerda) e Álvaro. Não sei se os Chicago Bulls aprovariam esta mensagem. Chegados ao talho improvisado na garagem é tempo de beber mais vinho antes de Ilídio e os cunhados brincarem aos talhantes. O adepto dos Chicago Bulls não parece muito animado. Se em vez de soprar, o lobo usasse uma serra a história dos três porquinhos seria muito mais engraçada. Isto no talho tem muito melhor aspecto. Depois de desmanchar é altura de cortar. Com um serrote a passar-lhe rente aos dedos, lídio volta a falar das matanças antigas, mas agora em jeito de lamento. Queixa-se que já não são como antigamente e justifica a decadência com a crise e com o desinteresse dos mais novos. Depois dá como exemplo o afilhado que preferiu ficar a dormir. As coisas podem não ser como já foram, mas há outras que não mudam: ainda a manhã vai a meio e a mesa da garagem já abunda em copos de vinho. Os homens vão intervalando o trabalho com brindes e as piadas que vão dizendo ouvem-se cada vez mais alto. A certa altura os ânimos são interrompidos por um estrondo seguido de gritos e de um “ai Jesus!” — tinha rebentado um tubo do esquentador e havia agora um repuxo de água a inundar a cozinha. Ainda fui ver se aquilo tinha sido uma desculpa para improvisar um concurso Miss T-shirt molhada sub-50, mas não. Só vi uns alguidares com uma mistela que mais parecia vómito argamassado. Humm, delícia. Tratava-se da mistura para as morcelas feitas com as tripas do porco. Humberta, a mulher de Ilídio, e as irmãs vão até um campo de batatas, junto a casa, para as lavar. A divisão do trabalho numa matança segue uma lógica sexista e lavar tripas é uma tarefa feminina: o homem mata, mas elas é que limpam a merda, literalmente. Os intestinos são virados e limpos até à exaustão, num gasto de água de fazer inveja à Serra Leoa. Depois são areados com farinha de milho, tangerinas e vinagre. O processo de transformar matéria orgânica, anteriormente cheia de bosta, em algo comestível no meio de um campo de batatas pode ser questionável, mas o truque é não pensar nisso. Tripas ou ceroulas molhadas? O leitor decide. Antes de preparar o resto da carne é chegada a hora de almoço, uma refeição que se fosse um jogo de Mortal Kombat contra a Etiópia era considerada uma humiliation. Caldeirada de congro, fígado de porco, carne a pontapé, feijão com molho picante, queijo, pão de milho, pão de massa sovada e vinho tinto a dar com pau. No fim, o que sobra em comida falta em eufemismos para descrever o meu estômago. Vão-se os pratos, ficam as aguardentes para ajudar a desmanchar o resto do animal. Agora já há mais talhantes e, até à hora do lanche, a conversa vai variando entre a qualidade dos cães de Humberto (irmão de Humberta), futebol e o preço dos medicamentos. No fundo a matança pode ser vista como um exercício de resistência para o sistema digestivo, uma espécie de teste de Cooper para o estômago. Pode-se dizer que o lanche foi mais leve, o que não significa que tenha sido menos nocivo: além de morcelas, são grelhados uns lombinhos a que chamam cachorros e que, a julgar pelo estado dos meus lábios, estiveram a marinar numa pasta feita de malaguetas e fogo. Como facilmente se percebe, esta é uma tradição dominada pela comida. A casa de Ilídio fica na Piedade, uma pequena freguesia do concelho das Lajes. Daqui não se vê a montanha, mas do lado do mar, ao fundo, está a ilha de São Jorge e mais atrás a da Terceira. No céu voam garajaus, torcazes, milhafres e pardelas e numa encosta ali perto pastam bois da raça Ramo Grande. Há ainda as piscinas naturais a cinco minutos de distância e um pôr-do-sol que não precisa de Photoshop, mas nada disto tem piada quando se pode estar a comer e beber até rebentar. Numa ginástica estomacal digna do apresentador do Preço Certo arranjei espaço para o jantar que se apresentou mais comedido: sopas de pão e carne cozida com hortaliças. Depois de mais vinho e aguardente, a mira da galhofa é apontada à religiosidade dos presentes. Aqui a devoção é levada muito a sério e discutida como os miúdos que comparam o tamanho das pilinhas ou que segredam sobre a miúda que já dá beijos com língua. Termina-se a tertúlia com palavras cuidadas sobre o continente e outras menos simpáticas para o Faial que, mal comparado, está para o Pico como Israel está para a Palestina. No fim dizem-me que há uma festa dos anos 80/90 na junta de freguesia e que o afilhado de Ilídio é um dos DJs. O ambiente da festa vai além da temática musical: mullets, casacos de cabedal, fivelas da Harley Davidson e aquelas t-shirts tingidas que os hippies usavam. Parece que estou num casting para a série Riscos ou então que apanhei boleia de um certo DeLorean e fui parar à plateia do Big Show SIC. O sistema de som também é bizarro: a mesa de mistura está em cima de uma grade de cerveja e os Scorpions saem aos berros de umas colunas Marshall com ar de quem não sabe como foi ali parar. Do nada começa um house foleiro e dois putos desatam a dançar tecktonik. Lá se foram os anos 80/90. Para mim, que sou “estrangeiro”, isto até é divertido, mas suportável por pouco tempo. O dia seguinte começa logo com o almoço: torresmos de carne e de toucinho, molha de miúdos (uma espécie de caldeirada picante), inhame cozido e mais carne, queijo e vinho a pontapé. Entretanto apareceu o afilhado de Ilídio que, depois de uma reprimenda pela ausência no dia anterior, almoça alheado do que ali se passa com a atitude de quem não quer saber. Terminado o almoço divide-se a carne para distribuir pela família e as pessoas começam a dispersar, mas Ilídio não pára e daí a pouco vai às lapas. As botas de Ilídio. Não é a mesma coisa que pescar caranguejo a sério, mas… Os dois Action Man da Piedade. No Pico é assim: tão depressa criam um animal, como a seguir estão a plantar batatas ou a arriscar a vida por quilo e meio de lapas. Na gíria pornográfica dir-se-ia que fazem os três pratos, mas na verdade estão apenas a ser açorianos. Sem saber o que dizer à balança quando a reencontrar, chego à conclusão que matar um porco no Pico é igual a matar um porco em Celorico da Beira à excepção da proximidade com o oceano. Engorda-se um animal para logo a seguir engordar outros tantos à mesa numa passarela de excessos. As histórias de pesca são contadas entre alfaias agrícolas e é esse ambidestrismo que faz os Açores, a relação entre a terra e o mar é uma das muitas idiossincrasias insulares como são os sotaques, a religiosidade ou a desconfiança expressa com que olham quem vem de fora. Talvez sejam prudentes. O porco de Ilídio não estranhou quando o foram buscar e agora está às voltas no meu estômago.