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Música

É o fim do mundo, só que é em rock

Alguém que odeia Xutos & Pontapés foi vê-los ao vivo.

Toda esta história recente em torno de Fafe e das razões pelas quais a cidade minhota é ou não uma merda serve de introdução a este artigo. Eu não moro em Fafe, nem nunca morei a mais de trinta quilómetros de Lisboa. Não sei se aquilo que foi escrito pelo Nuno Vieira corresponde à verdade, porque eu só vou ao Minho por alturas do Milhões de Festa ou para beber gin com os Equations no SonicBlast. Mas, a julgar pelas reacções viscerais ao que ele disse, o pessoal de Fafe sente um orgulho enorme em lá morar. E, correndo o risco de assumir o cognome Capitão Óbvio, devo dizer que sentir afinidade pelo local onde se cresceu e/ou se mora é algo perfeitamente natural, mais até do que senti-la pelo país onde se nasce. O meu primeiro problema é este: eu moro em Alverca. Alverca é uma cidade, se é que se lhe pode chamar cidade, profundamente merdosa. Enfiada a meio da área metropolitana de Lisboa e do Ribatejo, a única razão que alguém tem para constituir aqui família é precisamente a proximidade da capital; bem esteve o Palma, o baterista dos SAUR — banda que praticamente constitui o único bom momento que Alverca gerou nos vinte e dois anos em que foi elevada a cidade, a seguir às portagens que todos conhecem dos noticiários das oito e do Mantorras —, quando afirmou, numa entrevista, que isto era um dormitório. Não se podia resumi-lo melhor. Alverca não tem vida, nem a procura. Alimenta-se dos restos que o distrito vai deixando, está neste limbo entre sentir-se parte da metrópole e não passar, no fundo, de uma terriola de campo. Trinta mil habitantes, imensa malta jovem, e o entretenimento nocturno resume-se a tascas e cafés com ilusões de grandeza que à uma da manhã já têm polícia à porta a mandar embora os poucos clientes que decidiram não se ir aventurar pelo Bairro Alto. O melhor restaurante da cidade, mas de longe, é o McDonald's. Está sitiada por tudo quanto é cadeia de hipermercado: um Jumbo, um Continente, dois Pingo Doce, dois Minipreço, um Lidl e uma Coop que fechou recentemente portas. Não vos fode quando estão a andar por Lisboa ou pelo Porto à procura de um multibanco? Nós temos um em cada esquina. Na avenida principal as lojas dos chineses abrem-se de par em par. Em cada rotunda há uma rulote a vender bifanas madrugada fora. A paisagem divide-se entre a auto-estrada e o Tejo, ladeados por campo selvagem e pela cimenteira de Alhandra. Os pedestres têm quase sempre a companhia de simpáticas baratas, ratazanas ou da ocasional cobra que se aventura das salinas até às portas das casas, isto quando não aparece o cadáver de um ouriço na berma da estrada. Somos donos e senhores do segundo maior carrilhão da Europa, na Igreja dos Pastorinhos, que mandaram silenciar porque fazia um barulho fideputa e os moradores em volta não estavam para se chatear mais. O nosso Museu do Ar, durante muito tempo um marco da cidade, foi transferido para Sintra, e agora só nos resta a cadeira de avião onde o Papa João Paulo II se sentou na sua primeira visita ao país. O nosso clube de futebol — sim, porque o futebol, independentemente de todos os seus males, permite expansão, conhecimento, o mínimo vislumbre de sonho, como quando jogávamos na primeira divisão e os três grandes nos vinham visitar — anda perdido pelas distritais. Alverca tem trinta mil habitantes e é, para citar Michael Gira, já que a desolação industrial que constitui o som dos Swans se adequa sobremaneira a esta terra, um vazio universal. Não deveria, por todas estas razões e mais algumas, sentir qualquer espécie de afecto pela minha cidade. Antes de ser alvo da pergunta fácil e estúpida — por que é que não te mudas? — devo dizer que é porque, pura e simplesmente, não tenho meios para tal. E porque no fundo, bem lá no fundo, no mais recôndito dos fundos, alimento a esperança secreta de que isto, por obra e milagre do nosso padroeiro São Pedro, mude para algo, ainda que não bom, minimamente razoável. Que a oferta cultural seja mais do que os artistas pseudo-pimba que ano após ano encabeçam o cartaz das festas da cidade. Que a malta que por cá mora se sinta impelida a criar algo a partir do zero, tomando o exemplo de muitos outros pólos pelos quais ninguém dava nada e que hoje são alvo de romarias anuais. Mas eu sonho demasiado. E, por sonhar demasiado, tive de me contentar com o concerto que marcou o 73.º aniversário do Futebol Clube de Alverca: os Xutos & Pontapés vieram até nós, um espectáculo que prometia, como ali diz no título, ser o fim do mundo, só que em rock. O meu segundo problema é este: eu odeio os Xutos & Pontapés. Antecipando desde já nova pergunta estúpida, fui porque tive credencial, o que me valeu umas boas gargalhadas já que não estava à espera de tal coisa; e porque, claro, não podia perder a vinda à minha terra desses colossos do rock português (palavras de imensa gente que não eu e que não guarda as mesmas expressões para os GNR) e, sem dúvida, a melhor banda portuguesa de sempre (palavras de imensos idiotas que não eu e que nunca se dignaram sequer a ouvir Mão Morta). Explicar porque razão odeio os Xutos daria pano para mangas, mas vou para a mais óbvia, para a mais hipster, para a razão de sempre: detesto a omnipresença dos Xutos, a elevação do Zé Pedro a Deus do rock, detesto o facto de, após 33 anos de existência, se estarem sobremaneira a cagar para a música que fazem porque o que o povinho — ah, o povinho, os fãs, essas personagens execráveis que quando votam deixam sempre nódoas de chouriço no boletim — só quer ouvir aquelas quatro ou cinco cuja letra mal sabem de cor mas que cantam à mesma; detesto a sua resignação, a sombra da bananeira à qual se deitaram porque, foda-se, nós escrevemos a “Chuva Dissolvente”, vamos chatear-nos mais para quê? E sim, serei um elitistazinho de merda, um pseudo-intelectual com a mania que vai a isto e àquilo e essencialmente um fascista do gosto, como me chama a minha mãe, que foi ver os Clash a Cascais mas hoje o que curte mesmo é Adam Lambert. Mas reparem: se eu tenho de aturar a bajulação aos Xutos, vocês terão de aturar o meu ódio. Até porque, calculo, estou para aqui a debitar um monte de tanga e ninguém vai ler. Portanto: já com álcool e droga a rodar no meu sistema (que rebelde), com o fumo das bifanas a sobrepôr-se ao dos desodorizantes, e com o Mágico Porto a perder com a Olhanense, o palco recebe a visita dos Brent, ou Brect, ou Breht, ou Brecht, ou qualquer coisa assim do género, que foi o grupinho de parolos que a organização arranjou para abrir o concerto. Mas estou a ser injusto, porque estou a bater em mortos; é mais do que certo que estes tipos nunca irão a lado nenhum, porque os Faith No More, que copiam à descarada, são capazes de não lhes achar muita piada ao plágio. Assim sendo, deixem que risque esta dos parolos, porque eles até foram decentes. Têm um website e tudo, que publicitaram. Têm uma canção qualquer numa novela da RTP, como fizeram questão de frisar. E são boas pessoas, pois dedicaram uma ou outra canção a uma sobrinha. Não percebi bem. Talvez tão sedentos de cultura e de vertigem rock quanto eu costumo estar, ou não, porque lol, são os Xutos, o pessoal não só de Alverca mas do eixo todo que abrange as freguesias da Póvoa a Vila Franca compareceu em peso. Imensa gente, espalhada a toda à volta, e impaciente, porque eram dez da noite e não se via o Tim, e patriótica, porque o técnico de som se lembrou de pôr o hino nacional a tocar e todos o cantaram num momento bonito de camaradagem saloia. E depois lá vêm eles, gingões, menos gordos do que o que esperava, roupagem punk perdida algures em 1981 e na guitarra a classe imensa do mais famoso fígado do rock português, camisa aberta para que pudéssemos ver bem a cicatriz. Abrem o concerto com uma canção nova, deixando toda a gente à nora e a perguntar-se se os 15 euros tinham sido bem gastos no bilhete. Um quarto de hora depois eis o primeiro orgasmo colectivo, na forma da “Conta-me Histórias”, canção infinitamente melhor na voz da Manuela Azevedo. Amas a vida, e eu amo-te a ti… e tudo quanto é casal entreolha-se, abraça-se, beija-se, faz os preparativos mentais necessários, que no fim da noite haverá espaço para contribuir para a taxa de natalidade do país. Eu no fundo tenho é inveja destes cabrões todos, que eu estou aqui sozinho no meio da maralha e já me pisaram três vezes, sendo que os meus amigos ficaram a fumar e a curtir o som lá longe. «Vão tocar a “Homem do Leme”. Belo. Vou já precaver-me que não quero que ninguém me queime os cabelos com o isqueiro que vai invariavelmente andar pelo ar. Mas… oi? Estão a tocar a versão acelerada, com um pormenor de fuzz, em vez de enveredar pelo modo balada-irritante-que-deveria-valer-pena-de-prisão? E, o que é melhor, nem sequer está a soar mal? Caralho. Continuo a detestar, mas agora ganharam algum do meu respeito.» E fá-lo-iam de novo quando deixam o Kalú, essencialmente o único membro da banda que interessa, via afinidades futebolísticas, fazer um solo de minuto e meio antes de voltarem com a “Outro País”, valendo novamente uma barrigada do meu riso quando constato que sem o saxofone o Gui não passa de uma espécie de Bez estático, seguida de uma versão dos Titãs, refrão para maiores de dezoito, um sonoro filho da puta atirado como batata frita para o público que a engole e regurgita. Esta é para os políticos, claro. Daí em diante só se teve direito ao que queria a maioria: “Dia De S. Receber”, “Para Ti Maria”, “Contentores”, “Chuva Dissolvente”. Malhas que se ouvem uma, duas, três vezes seguidas, mas chega à quarta e aquilo que nos diz o Zé Pedro antes do primeiro encore, isto é, obrigado por nos andarem a aturar há tantos anos, torna-se quase um insulto porque são. Mesmo. Muitos. Anos. E. Já. Cansa. Adiante: o mesmo Zé Pedro fez questão de mostrar porque razão é ele guitarrista e não vocalista dos Xutos & Pontapés quando toma o microfone para cantar “Submissão” e somos brindados com uma garganta com teor álcoolico bastante superior ao de qualquer garrafa de William Lawson's, mau demais para não ter sido piada e para ter havido gente realmente a gostar. E, de seguida, momento breve punk-funk e cantemos todos AS SAUDADES QUE EU JÁ TINHA DA MINHA ALEGRE CASINHA… para que nunca, mas nunca, nos esqueçamos: se a vossa canção mais conhecida é uma cover, vocês são uma banda de merda. Os Xutos acabariam com “Para Sempre”, não sem antes haver gente a colocar a sua vida em perigo porque tinha mesmo de apanhar uma das palhetas do Zé Pedro, que não são “palhetas do Zé Pedro”, são merdas que ele comprou por meio tostão numa qualquer loja no Martim Moniz, mas naquele instante são a coisa mais importante das vidas miseráveis da miudagem que para aqui veio depois de uma tarde ocupada no cinema a ver o filme dos Morangos Com Açúcar. Diverti-me? Moderadamente, porque não é todos os dias que se organizam concertos na minha cidade que, para o bem e para o mal, são rock. Continuo a detestar os Xutos? Com certeza, porque estamos em 2012, por esta altura já fazem mais mal do que bem à música portuguesa e ofuscam sobremaneira esta brilhante nova vaga que tem disparado do underground — bendito o dia em que “música portuguesa” seja sinónimo não de fado e de Xutos mas de Black Bombaim e Gala Drop. Tenho motivos para continuar a acreditar que esta cidade pode crescer? Nunca na vida. A não ser que isto dos concertos em Alverca se torne algo recorrente e não apenas quando o rei ou o clube fazem anos, iremos continuar a definhar lentamente no mesmo marasmo de sempre, a ver fugir as tardes por entre o lixo que o Zé, uma das nossas figuras mais conhecidas pelo simples facto de ter um ligeiro atraso mental e passar a vida a vasculhar contentores, recolhe, a vomitar, grogues, sempre que os aviões militares estão em manobras e fazem um ruído tremendo, a temer os pretos, pá, os pretos de Arcena que só vêm para cá roubar, a dormir aqui no conforto das nossas caminhas e dos nossos prédios de apartamentos em vez de sair e viver um pouco. Uma impossibilidade cada vez maior. Mas é a minha cidade, e reservo-me o direito a esta relação amor/ódio/indiferença. Vinde, cérebros, vinde. Erguei-vos e tomai as rédeas disto tudo. Quanto à organização, nada a apontar: impecáveis do início ao fim. Agora só falta trazerem cá os Mão Morta. Ou as Pega Monstro. Para bem de todos nós.