Ser ou não ser: Ilustrador Científico

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Ser ou não ser: Ilustrador Científico

Uma ilustração científica serve para transmitir informação científica da forma mais clara e completa possível.

Há uns dias, estava eu a passear pelo Facebook em piloto automático, quando descobri o Afonso Borges. Alguém louvava os seus inúmeros talentos, e punha à disposição de quem quisesse o link para o site dele. Talvez o mercado da Ilustração Científica em Portugal não seja propriamente prometedor, mas bazar é muitas vezes uma hipótese, e assim foi. Desde Maastricht, o Afonso acedeu a responder às minhas perguntas, e a matar-me a curiosidade.

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Estudos da scapula a grafite, lápis de cor e aguarela. Fotografias gentilmente cedidas pelo Afonso.

VICE: "Era uma vez o corpo humano" era o teu programa de televisão preferido?

Afonso: "La vie, la vie, la vie, la vie, la vie"… ainda hoje volta e meia me vem à memória o tema de abertura - que em plena era dourada do VHS ainda era no francês original. Comunicação científica ao mais alto nível. Como crianças, convidava-nos a entrar num mundo de cores saturadas em que leucócitos eram policias brancos de cacetete sem que isso nos afastasse um milímetro de apreender o seu conceito! Não tinham medo de usar magia para explicar ciência, acho que isso faz muita falta ao pensamento pedagógico de hoje em dia.

Escolheste dedicar-te à ilustração científica porque não conseguias decidir-te entre a ciência e as artes? O meu caminho até aqui foi uma amalgama de decisões erradas tomadas pelos motivos certos. Desenhar sempre foi uma experiência muito pessoal para mim. Não me lembro sequer de como comecei, e nunca parei de o fazer, mesmo quando os outros meninos começaram a crescer e passaram para os carrinhos. Talvez por isso mesmo, quando chegou a altura de escolher um caminho profissional, não fez muito sentido para mim transformar isso em ferramenta, porque desenhar era tão banal como ter cabelo. Não me imaginava nada a fazê-lo por motivo nenhum que fosse para além da minha própria satisfação pessoal, e achava que os temas íntimos que normalmente prefiro desenhar não seriam particularmente interessantes para as outras pessoas. E como a ciência também sempre tinha sido um fascínio, principalmente a área da biologia marinha, achei que seria uma boa ideia.

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Terminada a licenciatura apercebi-me que 'fazer ciência' é muito diferente de 'admirar ciência'. Entre exames e orais, percebi que a única constante tinha sido desenhar nos intervalos, e isso fez-me ver que se calhar tinha estado a ignorar o óbvio.

A ilustração científica surgiu como a união perfeita entre o percurso que já tinha desencadeado e aquele que queria seguir no futuro. Permite-me colocar o meu talento ao serviço da Ciência e contribuir para algo que é maior que a minha própria expressão pessoal. Continuo a poder fazer os meus desenhos de sempre, mas agora também posso fazer uns ''que interessem à humanidade" de forma mais tangível.

Dissecção de um rato branco noruegues em aguarela. Fotografias gentilmente cedidas pelo Afonso.

Qual foi a primeira parte do corpo / animal / coisa que ilustraste?

O primeiro exercício de ilustração científica formal que completei foi uma representação a grafite e em tamanho real do esqueleto do torso de um homem idoso, caucasiano, que terá falecido há cerca de 80 anos. Tinha bicos de papagaio numa das vértebras lombares e ancas bastante largas para um exemplar do sexo masculino.

Que aplicações práticas têm os teus desenhos?

A ilustração científica nasceu no mesmo dia que a Ciência. Eu gosto de classificar o nosso trabalho como comunicação de ciência por intermédio da imagem. Uma ilustração científica serve para transmitir / ensinar / explicar/ documentar informação científica da forma mais clara e completa possível.

O público a que se destina é um factor muito importante. Pode servir para ensinar anatomia complexa e multidimensional a estudantes de medicina, ou anatomia simplificada e mais estrutural a estudantes de fisioterapia; para visualizar ao pormenor uma cirurgia que vai ser levada a cabo por uma equipa de cirurgiões, ou para explicar essa mesma cirurgia de forma mais empática e aveludada aos familiares do paciente que vai ter de submeter-se a ela no dia seguinte; para um botânico académico demonstrar divergências evolutivas em duas espécies de plantas diferentes ou para um botânico de campo documentar características inusitadas numa espécie recém-descoberta.

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Actualmente existe uma tendência muito interessante no sentido da ilustração biomédica, mais focada na medicina do ser humano. Hoje em dia existem mil e uma formas de retirar-se um tumor ou fazer um aumento mamário, todas elas passiveis de ser ilustradas.

Dissecação de uma mão humana, a aguarela. Fotografias gentilmente cedidas pelo Afonso.

Conta-nos um pouco como é o teu ambiente de trabalho: os objectos que tens à tua volta, os odores que pairam no ar, os instrumentos que usas…

O ambiente de um ilustrador cientifico paira algures entre o atelier de um artista, o laboratório de autópsias de uma morgue (falando em odores…) e o gabinete de curiosidades de um burguês abastado do século XVIII. E sempre livros, muitos livros, novos e velhos. O respeito pela realidade em todo o seu pormenor obriga-nos a um trabalho de eterna pesquisa, e essa tem sempre de ser feita pelos nossos próprios meios. Temos de saber onde e como procurar.

Às vezes temos a oportunidade de assistir a uma cirurgia ao vivo na sala de operações, de lápis e caderno em punho, a espreitar por cima dos ombros do cirurgião, mas também se pode dar o caso de termos de chegar ao mesmo resultado final sem ter tido acesso a uma única fotografia do que se passou. Temos de estar tão à vontade com o bisturi como com o pincel e não é raro encontrar ilustradores científicos que se dediquem também à taxidermia, por exemplo. Se um projecto exige que eu tenha uma ideia clara de como são os rins de uma rã leopardo, tenho de estar preparado para dissecar uma e saber exactamente o que estou a fazer.

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Onde é que entra a criatividade, numa prática que deve ser tão fiel à realidade?

Para ser sincero, também ainda não sei! Este é um ponto crítico para mim, e volta repetidamente à tona sempre que preciso de debater alguma questão com um dos meus mentores. O comentário que costumo ouvir é que sou demasiado "barroco". Numa ilustração científica o valor máximo é o da verdade objectiva, pura, a mensagem final não pode ser minha, mas sim da ciência. Tem de existir uma sobriedade algo desprendida da beleza e do encanto, e eu por vezes tenho dificuldade em conseguir fazê-lo. Quando dou por mim já estilizei a curvatura de uma artéria para que ficasse mais dramática, já enquadrei outra meio a flutuar em vez de repousar quietinha sob as leis da gravidade.

É importante ter uma grande capacidade de visualização, e para isso é preciso criatividade. Mas tem de ser sempre com vista a descobrir a melhor forma de transmitir a verdade, e isso nem sempre coincide com a forma que lhe confere maior beleza… por outro lado, tal como disse há pouco, ainda acredito profundamente em usar magia para explicar ciência.

Registos in loco da dissecação de uma rã leopardo, work in progress. Fotografias gentilmente cedidas pelo Afonso.

De todas as partes do corpo humano, qual é a tua preferida? E porquê?

Muda conforme o dia. Cada orgão tem o seu nome e podemos sempre atribuir uma simbologia a tudo, são coisas vivas. Gosto de pensar que sou tanto o meu cérebro e coração como sou o meu calcanhar, o meu pulso, o meu joelho e todas as outras zonas de menor interesse aparente. Somos o todo das peças. Gosto muito das minhas mãos porque faço um bom trabalho com elas. E acho muito elegante pessoas que têm processos estilóides ulnares pronunciados, que são aqueles altinhos que temos de lado nos pulsos. Mas para desenhar a forma humana gosto de usar pontos em que se nota a estrutura óssea por baixo da pele, porque ajudam a estabelecer estruturas concretas, como por exemplo a clavícula - é muitas vezes perfeita para captar logo os primeiros traços de um esboço.

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Que tipo de música ouves quando trabalhas?

Ouço literalmente de tudo. Quando trabalho acompanhado de outros colegas no estúdio temos sempre oportunidade de mostrar coisas novas uns aos outros, somos todos de países e backgrounds diferentes, e há sempre alguém com a ideia perfeita para ouvir no momento. Para além disso, tenho a minha santíssima trindade privada de Joni Mitchell, Björk e Joanna Newsom, com quem posso sempre contar em qualquer circunstância.

Algum projecto para o futuro que gostasses de contar-nos?

Para além de trabalhos que tenho de completar, incluindo a minha tese de mestrado na área da ilustração biomédica, sinto um interesse cada vez maior pela relação que existe entre a ilustração científica e a ilustração artística. Onde é que uma começa e a outra acaba. Por vezes, para se fazer bem uma é necessário abdicar da linguagem que se utiliza na outra, mas outras vezes é precisamente no hibridismo das duas que se encontra a mensagem certa. O meu maior projecto para o futuro será encontrar ocasiões em que faça sentido unir estes dois mundos.

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