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Música

A invisível maneira de estar de Andrew Chalk

Considerem-se avisados para a importância deste gigante.

Há já muito tempo que Andrew Chalk terá decidido ser tão discreto quanto possível na sua forma de estar na música. Com um riquíssimo currículo de colaborações (entre as quais os trabalhos formativos com The New Blockaders ou Organum, de David Jackman) e uma série de brilhantes álbuns-secretos em seu nome, Andrew Chalk poderia simplesmente dar-se ao luxo de gerir a sua reputação da maneira mais segura. Bastava para isso encaminhar-se para as habituais reedições e performances comemorativas disto e daquilo sincronizadas com entrevistas de carreira nesta e naquela publicação “inteligente”. Mas essas, mesmo sem serem realidades impossíveis, não representam o cerne que move Andrew Chalk — ele que desde sempre demonstrou um maior interesse na exploração do som (de um modo puro e minuciosamente atento às transformações) do que na divulgação dos discos que revelam o resultado desse processo.
  Além disso, o gosto assumido pelo lugar na sombra jamais significou que Andrew Chalk tivesse menos para mostrar que William Basinski ou até mesmo Brian Eno, dois nomes bem mais badalados da música ambient enquanto escultura de som. Que motivos contribuem então para este evidente low-profile? Pois bem, Chalk nunca promoveu o bluff dos arquivos cheios de inéditos espectaculares e até as suas principais conquistas acontecem sob a forma de composições tão discretas como a postura dele próprio. Não estranharíamos também se a natureza muito ténue da sua música tivesse contribuído para a noção de uma discografia bem mais curta do que acontece na realidade. Mas esse era um inevitável preço a pagar por quem é sonante através do silêncio e da invisibilidade, passe o paradoxo que existe nisso.

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Desde que, em meados dos anos 90, adoptou o seu próprio nome como assinatura, Andrew Chalk é um criador regular e incapaz de lançar ao desbarato qualquer disco que possa significar um passo em falso. É por isso difícil identificar pontos altos num trajecto tão coeso e introvertido (mesmo assim, East of The Sun e Goldfall são escutas altamente recompensadoras e o segundo é um exemplo soberano de drone envolto em partículas de melodia), mas quase impossível será designar um disco para o lugar do patinho feio. Quanto muito, Andrew Chalk contará com vários álbuns em que as oscilações e as nuances dos drones serão demasiado subtis para que alguém as assimile a todas com um par de escutas. Nesse campeonato, Blue Eyes of the March (2006) é melancólico e decididamente debruçado sobre o seu umbigo, embora mereça ser cultivado com o mesmo cuidado que o jardineiro oferece às suas plantas favoritas.

O tema dos discos que funcionam como plantas, mesmo não pertencendo exclusivamente ao universo Chalkiano, continua a adequar-se perfeitamente a uma boa parte dos lançamentos do outsider britânico. A prova disso encontra-se também em Wild Flowers, a recente colaboração que juntou as cordas de Andrew Chalk e o piano de Tom James Scott, numa fabulosa edição avançada pela label do último (uma Skire que promete dar seguimento à sua estreia com outras óptimas novidades). A esta secretária devo dizer que Wild Flowers chegou demasiado tarde para fazer parte da lista de melhores títulos do ano passado (merecia-o). Mas esse é um azar que serve de óptimo pretexto para enaltecer Wild Flowers como um disco de qualidade intemporal e não apenas como um refém de 2013. Nesta colaboração, Tom James Scott prova ao piano — tocado com iguais medidas de doçura, mistério e ambiguidade onírica — por que razão é um dos mais bem guardados segredos da música experimental dos últimos tempos. Muito ao seu estilo, Andrew Chalk trabalha sobre o piano de Tom James Scott, com a invisibilidade que lhe é característica (por vezes desaparece por completo) e recorrendo a um manto de cordas que pretende muito mais adornar do que assumir qualquer protagonismo. Não existem sequer protagonistas em Wild Flowers além de uma imperiosa “Speaking to the Rose”, que é um sagrado pedaço de música tão imaculada como o céu que um dia receberá o cuzinho da Scarlett Johansson.

Porém nem sempre tudo foi tão límpido no caminho de Andrew Chalk, que tem um passado carregado de noise nas gravações de Ferial Confine. Isso não surpreende, dado que, na altura em que surgem as primeiras cassetes, o senhor avaliado neste artigo era ainda um jovem, o que por si só normalmente significa uma vontade enorme de experimentar, extravasar, provocar o pessoal mais velho e romper com a herança que deixaram. Andrew Chalk terá sido também contagiado por toda a vaga de power electronics e postura “sa foda” da Broken Flag, a editora em que estava sedeado o projecto Ferial Confine (e que revelou gente pouco meiguinha como os Skuilflower ou Controled Bleeding). Ficava assim aberta uma janela de oportunidade para dar a ouvir uma série de composições abrasivas feitas através da colagem e/ou sobreposição de recursos acústicos, que, na sua forma final, são praticamente irreconhecíveis. Quase trinta anos depois, não deixa de ser interessante voltar a Ferial Confine como quem visita um inferno sonoro criado durante o desabrochar criativo de um esteta que nos deu tanto desde aí. Nestes discos, existe uma mistura de ingenuidade e tesão que é preciosamente irrepetível. E tudo isso está armazenado com grande categoria nas edições da japonesa Siren Records que formam a trilogia The Full Use Of NothingMeiosis e First, Second And Third Drop. Ficam avisados: Andrew Chalk é um dos grandes homens-invisíveis que temos na música.