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Tal como muitos outros muçulmanos, eu finjo o meu jejum durante o Ramadão

Sim, bati um belo rango no almoço, mas minha família muçulmana acredita que estou com tanta fome quanto eles.
Buffalo wings do Hooters é uma opção de almoço segura se você não quer ser flagrado por colegas muçulmanos. Imagem via Flickr user Keith Trice.

Este artigo foi publicado originalmente na VICE Canadá.

É Ramadão e a minha mãe está na cozinha debruçada sobre um forno a escaldar a preparar um banquete. Está a fazer jejum apesar de ser uma diabética de 64 anos. Quanto a mim? Comi uma pratada de fish and chips ao almoço, mas a minha família muçulmana acha que estou em jejum, como eles. E isto acontece há anos.

Durante o mês do Ramadão, a maioria dos 1.8 mil milhões de muçulmanos tentam não se envolver em qualquer vício durante 30 dias. Desde o nascer até ao pôr do sol, todos os muçulmanos fisicamente aptos devem jejuar; proibidos de comer, beber (sim, até água), fumar, dizer palavrões, falar mal e ter qualquer tipo de comportamento sexual. Jejuar durante um mês é um dos cinco pilares do Islamismo e, não o fazer, acarreta ridicularização social dentro da comunidade muçulmana e em certos países pode até dar direito a multas ou prisão.

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A maioria dos muçulmanos anseia pelo Ramadão todos os anos, porque o vê como uma limpeza religiosa que os deixa mais puros e os prepara para o resto do ano. Isto se realmente tiveres fé e a praticares, o que eu não faço. Mas, os muçulmanos à minha volta não sabem disso.

Infelizmente, eu e muitos outros como eu, tememos o Ramadão porque significa mais um mês a sermos desonestos para com a nossa familia e amigos muçulmanos. É que há muitas razões pelas quais uma pessoa de origem muçulmana não jejua durante o Ramadão. Podem ter fé na religião mas não a levarem tão a sério como é suposto.

Podem achar que jejuar é mais para muçulmanos tradicionais e considerarem-se eles próprios como muçulmanos mais casuais. Outra razão é que podem ter abandonado completamente a religião, mas ainda não tiveram coragem de o assumir perante as suas comunidades muçulmanas - coisa que muitos jovens destas origens sofrem e é exactamente nesta categoria em que eu me incluo. Como muitos outros millennials, simplesmente não somos religiosos, mas acontece que vimos de uma religião que é habitualmente mais dura com a ideia de apostasia, quando comparada com outras religiões no Ocidente.

Isto resulta num conflito ideológico entre as gerações mais velhas e as mais novas, que chegou até a ser retratado na cultura pop recente, desde o comedor de bacon em Master of None, de Aziz Ansari, ao The Big Sick, de Kumail Nanjiani, em que os seus pais o deserdam por ele querer casar com uma mulher branca americana. Isto acontece em muitas casas muçulmanas, em que millennials de primeira geração têm visões religiosas que vão contra a natureza estrita que o islamismo pode ter. Podemos ver-nos a nós próprios com identidade muçulmana e até protestar contra a discriminação muçulmana, mas estamos longe de ser praticantes da mesma. Para nós, o Ramadão, pode ser extremamente complicado de pilotar, já que é tão importante para o islamismo. Melhor do que nos "assumirmos" à nossa familia e até amigos, sabemos que, se conseguirmos chegar ao fim deste mês, estamos bem para o resto do ano. Alguns talvez jejuem só porque sim, sem intenção espiritual, só para o teatro. Outros tentam evitar totalmente os seus conhecidos muçulmanos e as suas famílias.

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Mas, provavelmente, a prática mais desonesta é aquilo a que chamo de "falso jejum" - fingir que estiveste a jejuar o dia todo e "quebrar o jejum" à noite, como se não tivesses andado a comer double cheeseburguers e a virar coca-colas. Muitos fazem isto para manter a fachada de que ainda são muçulmanos praticantes. Fazem-no para evitar julgamentos cruéis por parte de outros muçulmanos e isso não é de todo o objectivo de jejuar durante o Ramadão, já que é suposto ser uma jornada espiritual de conflito para chegar mais perto de Deus.

Esconder dos muçulmanos à minha volta o facto de que não estou a jejuar começou por ser difícil, mas é uma capacidade que agora afinei. Tudo depende do tamanho da cidade onde vives e de como os muçulmanos são nessa mesma cidade - quanto mais pequena, mais difícil. Se estás sujeito a encontrar um muçulmano teu conhecido, definitivamente não queres ser apanhada com um latte de caramelo do Starbucks na mão durante o dia. Vão lançar-te um olhar crítico seguido de um desapontado. Já houve vezes em que, literalmente, olhei para a esquerda e para a direita antes de dar um golo de água enquanto guiava pela minha cidade de tamanho médio durante o dia.

Quando vou almoçar fora, tento sempre ir a restaurantes que os muçulmanos não frequentem - bares e Hooters são sempre apostas seguras. Obviamente, evito os mercados halal e os carrinhos de falafels. Vamos supor que conseguiste passar o dia todo sem ser apanhado a comer e a beber, agora chega o derradeiro desafio: fingir que tens tanta fome como os teus companheiros muçulmanos ao pôr do sol. É aqui que o sentimento de culpa se instala. Sentas-te para jantar e toda a gente esteve literalmente o dia inteiro a passar fome, enquanto tu comeste uma tigela de chili poucas horas antes. Às vezes, há pessoas que conseguem perceber só do olhar para ti que não estiveste a jejuar; é como um estranho sexto sentido que têm e só te resta esperar que não comecem a desatinar.

Tudo isto deixa-me, a mim e a outros, numa situação difícil. Ou assumimos que não jejuamos e enfrentamos as consequências, ou continuamos a viver uma vida de mentira durante um mês por ano. Mas, até tomar essa decisão, vou aproveitar este kebab de frango com arroz.


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