Cristiano Ronaldo durante a celebração da conquista do Euro 2016 por Portugal
Foto por Bruno Lisita/VICE, originalmente publicada aqui.

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análise

Porque é que nos custa tanto acreditar que um ídolo possa ser um criminoso?

Com o caso Ronaldo vs. Mayorga longe de estar concluído - ou sequer esclarecido -, o tribunal da Internet tem sido pródigo em sentenças definitivas. Para os portugueses está a ser complicado separar o herói do homem.

Como já dizia o outro, "Nunca conheças os teus heróis". A verdade é que, tal como nós, os nossos heróis são pessoas e todas as pessoas têm defeitos. São-nos intrínsecos. Ainda assim, parece estranho que tanta gente resista a esta ideia. Com o nosso herói nacional por excelência acusado de violar uma mulher, tornou-se mais claro que nunca que nos agarramos a qualquer coisa antes de admitirmos a nós próprios que o "Melhor do Mundo" possa ter um lado negro.

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Queremos esquecer as acusações, esquecer os factos que já são públicos, ignorar qualquer alusão a factos ainda desconhecidos - tudo para que o rei do futebol permaneça no trono e nós possamos encher o peito de orgulho quando, perdidos na Ásia, dizemos a alguém que somos portugueses e esse alguém nos responde "Ah! Rrô-nal-dou!".


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À falta de respostas inequívocas e confusa com a mistura de sentimentos face a este último escândalo mediático do jogador da Juventus e capitão da selecção portuguesa, falei com a psicóloga Paula Trigo da Roza. Uma consulta de psicologia em nome de todos nós, para chegar ao porquê científico de sentirmos o nosso orgulho ferido por algo que Ronaldo alegadamente fez (ou possa ter feito). Abaixo podes ler o que aprendi com Roza nesta ida virtual ao seu consultório.

Diz o estudo da Psicologia que o derradeiro objectivo dos seres humanos é "criar uma identidade própria, para nos sentirmos bem na nossa pele e no nosso enquadramento na sociedade". Um dos mecanismos que usamos, desde bebés, para ir formando identidade, é através do processo da identificação: procuramos referências positivas (a minha mãe é assim e eu também quero ser) e referências negativas (o meu irmão é assado e eu não quero ser igual).

Em pequeninos, os nossos maiores modelos são os nossos pais. São os mais fortes, os que sabem tudo e tudo curam. À medida que vamos ganhando maturidade e fazendo o nosso próprio caminho, começamos a desmistificar estes modelos, a perceber que eles também têm defeitos e limites. Essa humanização dos nossos pais dá-se de forma gradualmente natural, porque os vamos conhecendo e nos vamos apercebendo das suas características humanas e falíveis.

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Como a nossa busca por formar uma identidade não nos abandona, vamos, antes, reformulando a forma como está presente em nós, vamos procurar modelos a outros sítios, fora do foro pessoal. Ídolos que não conhecemos, mas que representam aquilo que gostaríamos, de alguma forma, de atingir. Todos nós temos ídolos. Escolhemos aqueles que admiramos, actores, escritores, músicos ou jogadores de futebol e projectamos neles os nossos sonhos - “se ele é assim, eu também posso ser, se ele conseguiu é porque é possível”.

Isto, no limite, significa que a escolha do nosso ídolo não é representativa desse ídolo em si, mas sim de nós próprios. Aquilo que nós consideramos admirável, que gostaríamos de ser capazes de ser ou de fazer. O nosso ídolo é, portanto, um reflexo daquilo que somos e do que gostaríamos de vir a ser.

Portanto, sem nos apercebermos disto de forma consciente, não queremos nunca atribuir características negativas aos nossos ídolos, queremos mantê-los intactos, porque ver um defeito naquele que escolhemos como referência reflecte-se, de alguma forma, na nossa própria decisão de admirar essa pessoa. Isto porque, se o meu ídolo é criminoso, ou mentiroso, ou o que for, então o que se passa comigo para o ter posto num pedestal? Como é que o segui de perto, o elogiei, o admirei, o zelei, o invejei e amei à distancia quando, afinal, tem tanto de mau como de bom?


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A nossa fé inabalável naqueles que escolhemos como ídolos e modelos de identificação corresponde ao nosso desejo interno de progressão - eles são a cara do nosso sonho. E, ao contrário do que acontece quando quem idealizamos são os nossos pais, quando o fazemos em relação a uma celebridade não temos forma de saber verdadeiramente até que ponto é que ela é digna da nossa idealização. É a paridade que permite a aceitação do limite do outro, mas as celebridades não são nossos pares. Não são os nossos amigos a quem desculpamos os defeitos e de quem vamos conhecendo os limites humanos.

Nos dias de hoje, com as redes sociais e notícias ao minuto, é mais fácil que nunca confundir o público com o privado. Seguimos o nosso ídolo no Instagram, no Twitter, no Facebook e até no quase-morto Snapchat e temos a sensação de que os estamos a conhecer cada vez melhor. De que, como vemos vídeos dentro da sua casa, ou dos filhos, ou dos amigos, essa pessoa nos está a abrir uma janela para aquela que é a sua vida privada. E, de repente, parece que conhecemos efectivamente estas celebridades. Formamos opiniões sobre elas, consideramo-las “boas pessoas”, ou "especiais"; sentimos que sabemos como e quem são na esfera privada.

Mas, o público não é o privado. O privado é intimo e é só na intimidade que as pessoas apresentam a sua verdadeira essência - não é através do ecrã ou de discursos estudados, muito menos através de ferramentas de marketing.

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No caso do nosso querido "Melhor do Mundo", o imbatível Cristiano Ronaldo, acontece tal e qual isto, mas com uma agravante: CR7 é um ideal comum cultural. Não é o ídolo de um, é o de nós todos. Representa, de alguma maneira, a recolocação de Portugal no Mundo. Somos um País pequeno, de gente pequena, mas com Ronaldo somos grandes e arrebatamos tudo e todos. Portugal é Ronaldo, em qualquer canto do Planeta. Foi ele que nos colocou neste panorama tão internacional e, ainda por cima, é o melhor no que faz.

Para as mulheres e mães, não é só por ele ser o melhor no futebol, mas principalmente por ser o menino pobre, que veio do nada e chegou a número um, mas que, independentemente da fama, nunca largou a mãe. É o que não tinha nada mas, agora que tem, ainda defende causas justas, apoia a família e leva-a para todo o lado. É aquele que não se envergonha das suas raízes.

Ronaldo é o ídolo de todos nós, portugueses. A cara do nosso futebol, o português mais conhecido internacionalmente, o melhor dos melhores. É uma projecção colectiva, de massas. Como seres humanos, precisamos de ídolos. E, enquanto portugueses, na busca da identidade nacional, encontrámos esse ídolo em Ronaldo.

Contudo, nesta incessante busca por identidade, por um melhor lugar ao sol, há que tentar madurar a forma como seguimos e idealizamos aqueles que elegemos para nossos modelos. O ideal seria idolatrá-los da mesma forma que aprendemos a idolatrar os nossos pais - são os melhores, admiramo-los, mas também sabemos que todas as pessoas têm os seus limites. O seu lado negro.


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