Identidade

9 fotógrafos desafiando o roteiro da representação trans e não-binária

hobbes ginsberg - still alive -  self portrait, los angeles, 2018

Quando eu estava no colegial, toda quinta-feira depois da aula, eu pegava o metrô para uma grande biblioteca pública no centro de Montreal. Lá, eu ia direto para a seção de fotografia e pegava todo livro que conseguisse encontrar. Eu tinha uma fome voraz de imagens, apesar de não ter certeza do que estava procurando nelas. A primeira vez que vi corpos queer numa fotografia, encontrei a resposta. A foto estava no livro de Wolfgang Tillmans Truth Study Center. Era uma foto de dois homens suados se beijando. Fiquei obcecada por aquele livro. O emprestei várias vezes e o estudava religiosamente. Nele, encontrei uma intimidade.

A primeira vez que vi corpos trans naquela biblioteca foi num trabalho de Nan Goldin, o clássico Ballad of Sexual Dependency, um slideshow autobiográfico retratando cenas íntimas e mundanas da vida da artista em Nova York nos anos 1980, incluindo imagens da subcultura queer pós-Stonewall. Logo depois, encontrei a monografia de Bettina Rheims Modern Lovers, que oferecia retratos minimalistas em preto e branco de jovens não-conformados com gênero no começo dos anos 1990. Minha vida existe em duas partes: antes de ver essas imagens, e depois. Era como me ver no espelho pela primeira vez.

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Os livros de Nan Goldin, Bettina Rheims e Wolfgang Tillmans me fizeram, aos 18 anos, sentir que era parte de algo maior que eu. Mas conforme o tempo passou, e eu comecei a me documentar, documentar meus amigos, minha própria transição, comecei a questionar por que todas aquelas imagens de corpos trans a que fui exposto crescendo foram fotografadas através de lentes cisgênero. O que não estava sendo dito?

Para responder essa pergunta, abordei nove fotógrafos trans e não-binários – amigos próximos, e alguns artistas que sempre admirei de longe – e pedi a cada um deles para me mandar uma foto ou projeto deles focado no eu e na comunidade trans e/ou não-binária. A ideia era explorar a dinâmica íntima que se manifesta quando indivíduos trans testemunham uns aos outros (ou a si mesmos). Eu queria saber: Por que nos documentamos? O que significa ser visto? O que acontece quando vemos uns aos outros. Abaixo você vê as respostas deles. – Laurence Philomène

B. G-Osborne: “esperando minha nova pele desabrochar”

“Essas toalhas existem na casa na Union Street da minha avó há décadas, provavelmente desde que a casa foi construída nos anos 50. Ela as lava toda semana mesmo que não seja mais usadas; não faço ideia de como elas continuam tão coloridas depois de todas as lavagens. Ásperas como pedra-pomes, lembro de me esfregar e arranhar ritualisticamente nelas depois de cada banho com minhas pequenas mãos, a porta trancada, esperando minha nova pele desabrochar.” – B. G-Osborne

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“Union”

Elle Pérez: “possibilidades alternativas do sexo”

“O frasco de testosterona (abaixo) e a folha de bananeira (acima) são ligadas pela luz, e através de sua justaposição formam um tipo diferente de retrato – uma versão que tenta mostrar a experiência da terapia de testosterona como fora das mudanças físicas rastreáveis no corpo. A bananeira é um marco da produção cultura porto-riquenha, mas quase sempre a fruta, nunca a folha. Estou interessada nas possibilidades alternativas do sexo que essa visão da bananeira oferece quando reimaginada como um corpo.” – Elle Pérez

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EP-19-PH-035, Elle Pérez, gabriel, 2019, processo de prata coloidal, 139.70 X 97.47 cm, 143.51 X 101.28 cm (enquadrado) Edition of 5 plus II AP
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EP-19-PH-034, Elle Pérez, t, 2019, processo de prata coloidal, 139.70 X 97.47 cm, 143.51 X 101.28 cm (enquadrado) Edition of 5 plus II AP

Hobbes Ginsberg: still alive

“Essas são fotos do meu livro/exposição mais recente still alive, uma série de autorretratos que exploram o que significa crescer e construir uma vida para você mesmo. Still alive é uma celebração de passar por outro ano sem me matar e aprender a navegar a luta com minha doença mental. Percorrendo a história de um eu sempre em mutação, essas selfies questionam a ideia de grandeza, de ser um ícone, e nosso relacionamento com nossos ambientes construídos. Quadros vulneráveis e hiper saturados DIY exploram o que significa encontrar estabilidade e autossuficiência, se tornar um ‘adulto’ e como é sobreviver como uma pessoa queer. É muito importante pra mim como artista trans, e especialmente uma que trabalha muito com seu corpo, fazer trabalhos que não são especificamente sobre ser trans, e exigir que meu trabalho seja visto dessa maneira. Com muita frequência parece que as coisas que fazemos só podem ser sobre a experiência trans, e com mais frequência ainda sobre isso ser uma luta, o que me parece redutivo.” – Hobbes Ginsberg

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Self Portrait at 25 (after dorothea tanning), 2018

Jess T. Dugan: Every Breath We Drew

“Esses autorretratos são da minha série em andamento Every Breath We Drew, que explora o poder da identidade, desejo e conexão através de retratos meus e de outras pessoas. Sempre me senti atraído por fazer trabalhos sobre minha própria vida e experiências; acredito profundamente na importância da representação e espero que meu trabalho possa ser usado como um catalisador para começar uma conversa maior sobre gênero, identidade e sexualidade. Quando eu estava me descobrindo como uma pessoa queer na juventude, eu não me via representado na cultura maior. Descobri imagens de pessoas queer em livros de fotografia de arte, e essa descoberta foi profundamente influente pra mim. Um dos meus principais objetivos é criar, exibir e publicar fotografias retratando a experiência queer, para preencher esse vácuo na sociedade de representação dessas experiências vividas e incorporadas.” – Jess T. Dugan

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Self Portrait (Bath), 2013
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Self Portrait (Muscle shirt), 2012

June T. Sanders: “fotografia como um ato de amor”

“Esse trabalho inicialmente veio do desejo de fazer retratos de pessoas que admiro, de que gosto e que me inspiram de algum jeito. Com o tempo isso meio que se desenvolveu numa representação mais complexa e uma postura para uma troca radical e queer. Agora isso também é um jeito de abordar um reino da fantasia ou um enquadramento para incorporações do passado, presente e futuro. O título para esse corpo de trabalho é Some Place Not Yet Here. Muitas vezes, estou pensando como pessoas queer e trans nos movemos pelo espaço, nos movemos através de nossos corpos, e através das paisagens que nos cercam. E como canalizamos nossas histórias sociais e pessoais dentro desses movimentos. Agora me interesso em como uma imagem pode refletir essas qualidades e as questões, potenciais e peso emocional que uma imagem tem para nós e nossa comunidade. Esse trabalho é importante pra mim porque é importante para outros. E porque permite ver minha fotografia como um ato de amor. Às vezes me sinto mais dentro do meu corpo e dentro da comunidade queer quando estou fotografando – e acho que isso vem da imensa quantidade de cuidado e vulnerabilidade oferecida a mim pelas pessoas com quem faço essas fotos. A experiência catártica de fazer fotografias, e o feedback que recebo das pessoas que se veem refletidas no trabalho são as coisas que mais me motivam.” – June T. Sanders

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Harpo & Ike, June Sanders
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Fox, June Sanders

Lia Clay: “beleza e dimensão além da subversão”

“Venho fotografando amigos no último ano. Honestamente, não há intenção por trás da representação ou identidade… com essas imagens. É um lugar que quero deixar para trás, só uma vez. Acho que o catalisador para estar onde estou hoje tem mais a ver com minha identidade como mulher trans do que com ser uma fotógrafa. Mal temos chance de realmente controlar como somos representados… muito disso depende da mídia de massa e torcer que eles acertem. Às vezes eles acertam… geralmente quando pegam carona. Como fotógrafa tentando entrar na esfera do que é considerado ‘sucesso’, fica imediatamente claro que essa identidade é uma palavra perigosa. Temos que trabalhar para superar isso… e colocar as lentes em outro lugar. Existimos num lugar na mídia onde a identidade daqueles que se identificam fora do reino da cis-normatividade se tornou algo exigido de nós.

“Acho que as pessoas não entendem o peso que é colocado sobre você quando você é um artista criativo trabalhando por dinheiro. Me sinto protetora das imagens que faço com meus amigos. Há esse foco muito crítico que vem porque tenho tanto medo que alguém só veja essas imagens como representação de identidade. Não quero que elas fiquem nisso… isso não é uma questão de subverter o normativo. É sobre criar um reino de beleza e dimensão além da subversão. É sobre proximidade e uma sensação de segurança em trabalhar juntos. É sobre estar no controle… uma vez que seja. Uma amiga me disse muito tempo atrás que não a fotografei como uma ‘mulher trans’, mas como uma mulher. Esse é o problema quando fotógrafos cis nos abordam. Eles miram suas lentes para o que nos torna diferentes ou no que atrai o interesse do espectador. A realidade é que isso não nos beneficia, é para eles. Eles são louvados por seu ponto de vista ‘corajoso’ e ‘desafiador’. Só ganhamos o subtexto Diane Arbus.” – Lia Clay

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Dylan, Fort Tilden, 2019
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Marina Labarthe: Enby Spoken Histories

Enby Spoken Histories é um projeto de narrativa de arquivo documentando as histórias ricas e coloridas de indivíduos não-binários e transgênero. Gravamos, preservamos e disseminamos histórias contadas pela comunidade para conscientizar, educar e normalizar nossa humanidade. Apesar de nossas identidades serem antigas e nossas histórias serem passadas por gerações, continuamos não-documentados e inacessíveis para as pessoas que fazem as políticas e o público em geral.

“Carter (cofundador do ENBY) e eu sentimos que nossas identidades são mal compreendidas pela sociedade e o público em geral. Estamos documentando nossas próprias histórias, da maneira como queremos contá-las, porque ninguém vai fazer isso por nós. Vamos ser visíveis e compreendidos por quem realmente somos – seres humanos – custe o que custar.

“Ser incompreendido pela sociedade muitas vezes significa enfrentar violência, especialmente se você é uma pessoa trans não-branca. Enby Spoken Histories nasceu de uma necessidade emocional – uma necessidade para nossa comunidade se sentir vista, ouvida e refletida. ENBY não é apenas um projeto de narrativa de arquivo, mas um movimento que tenta atrapalhar sistemas que afetam as vidas diárias das pessoas queer.

“A obra foi intitulada com um poema escrito por Bobby Sanchez antes de uma entrevista com o StoryCorps em Nova York. É só um dos muitos exemplos de como as pessoas contam suas histórias e como trabalhamos como comunidade para mostrá-las.” – Marina Labarthe

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Ancient Identities, ENBY Spoken Histories. (Esquerda: Shai; direita: Anônimo).

Shoog McDaniel: “momentos estrelados de alegria e maravilha”

“Ser uma pessoa trans gorda significa ser duas vezes mágica, mas também significa atrair muita atenção negativa. Muitas vezes quando andamos na rua, as pessoas nos olham torto, e é difícil saber se é por ser gorda ou por ser trans. Isso é composto se você é uma pessoa não-branca, com deficiência e qualquer outra identidade marginalizada. É muito importante pra mim iluminar a magia das trans gordas, porque muitas vezes existimos tão longe da norma que sofremos diariamente para atender nossas necessidades básicas neste mundo. Saúde? Trabalho? Amor? Segurança de discriminação sistêmica? Muitas coisas que as pessoas dão por garantidas. Mas com essa luta vem momentos estrelados de alegria e maravilha, e meu objetivo é capturar esses momentos. Quero destacar o fato de que quando nos juntamos para compartilhar espaço e tempo, nossas marginalizações que se cruzam na verdade criam universos ao nosso redor, nos levando para espaços livres de olhares de julgamento – mesmo que só por um momento. Quando nos juntamos, é uma coisa poderosa. Quando nos amamos, estamos escrevendo novas histórias sobre como vivemos nossas vidas, não ditadas pelos sonâmbulos cis brancos. Somos sonhadores, porque temos que ser. Temos que imaginar algo melhor que isso. E é isso que tento fazer com meu trabalho.” – Shoog McDaniel

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Burr White, Shoog McDaniel
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Matias Herrera, Shoog McDaniel
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Self-Portrait, Shoog McDaniel

Texas Isaiah: “o que sempre existiu”

“Essa imagem é de Tasha Lovemore da Black Trans TV. Ela serve como uma gênese para um projeto em que estou trabalhando, que explora, honra e cultiva a história contemporânea e a presença das pessoas negras que existem sob um guarda-chuva trans masculino. O coração das minhas ideias, pensamentos e visões está enraizado no que já existe e sempre existiu. Estou interessado em contribuir com imagens para uma cultura visual que não serve a muitos indivíduos negros e pardos. Estou interessado em inspirar outros a se documentar e documentar suas comunidades, porque merecemos contar nossas próprias histórias. Essa imagem carrega um sonho que tenho há bastante tempo. Não testemunhei muitas fotos de homens negros trans tiradas por outros homens negros trans. Não vejo muitas fotografias nossas sorrindo, nos curando e tendo conversas que contribuem com a discussão geral cercando a masculinidade.” – Texas Isaiah

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Tashan Lovemore, 2019

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