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'Black Sails' retrata a história não contada dos piratas queer

Espécie de prévia de 'A Ilha do Tesouro', a série mostra a falta de personagens queer nos seriados históricos.

Foto: Clara Paget (Starz)

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE US.

Na maioria das séries de televisão passadas antes do século 20, pouquíssimos personagens não são hétero. No geral, o programa vai apresentar um coadjuvante que é "revelado" como gay ou bissexual, talvez com um interesse romântico, um personagem, porém, que vai terminar morto ou desaparecer tragicamente.

Às vezes — muito raramente —, o personagem queer está num relacionamento que dura mais de uma temporada, mas as chances disso acontecer caem consideravelmente quanto mais séria uma série de TV tenta ser. Se pessoas marginalizadas não se veem refletidas na mídia moderna, o problema só se intensifica quando uma história se passa no passado.

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Black Sails da Starz era diferente. Mesmo buscando ser um drama sério, personagens queer ena série nunca eram secundários. Na verdade, suas escolhas, românticas ou de outro tipo, eram a base da série, uma produção de grande orçamento violenta sobre política, poder, civilização, colonialismo e pirataria no século 18. Ainda assim, a série também era sobre um monte de gente queer escolhendo entre a luta e uma vida pacífica com seus amantes — com todas as nuances e complexidades dessas decisões.

Black Sails faz uma prévia do livro de 1883 de Robert Louis Stevenson A Ilha do Tesouro, no qual o Capitão Flint é uma pirata temido e lendário que enterrou um grande tesouro, desencadeando uma caçada por ele muitos anos depois. A versão adulta de Flint em Black Sails é tudo que o livro de Stevenson — escrito para ser uma ficção infantil — sugere. Ele nasceu para ser um líder: inteligente, implacável e um estrategista brilhante. Na primeira temporada, o vemos coberto de sangue, mentindo para toda sua tripulação, duelando até a morte, e assassinando seu melhor amigo — tudo motivado por um segredo que nenhum de seus subordinados entende o que é.

Mas na segunda temporada, Black Sails revela o segredo de Flint. O único motivo para ele ter se tornado um pirata é porque a Inglaterra tirou a coisa que ele mais amava: seu namorado.

Como jovem oficial da marinha, Flint involuntariamente escolhe ganhar poder na ilha sem lei e infestada de piratas de Nassau, do que manter uma vida calma com o nobre inglês por quem ele está apaixonado. Mas o poder é precário e incerto, como a série vivia enfatizando. Como um resultado de sua escolha, Flint perde tudo e deixa a Inglaterra para se tornar um violento fora da lei.

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Outra personagem principal, Eleanor Guthrie, encara uma escolha similar. Trazida para Nassau quando menina, ela consegue erguer um império criminal calcado na venda de bens roubados por piratas. Aos 20 e poucos anos, ela está praticamente no comando da ilha, com todo capitão pirata desesperado para cair nas graças dela. Mas quando o desastre chega, ela tem que escolher entre continuar em Nassau e lutar por mais poder ou deixar a ilha com sua namorada, Max, que está cansada de trabalhar no bordel em frente a taverna de Eleanor — que escolhe o poder, só para ver tudo que construiu, incluindo sua relação com Max, desmoronar logo depois.

Max acaba na mesma situação duas vezes. Depois de Eleanor, ela se torna parte de um grupo com os piratas históricos Anne Bonny e Jack Rackham (que, na realidade, vivia num arranjo similar com uma mulher chamada Mary Read). Na terceira temporada, Max tem que escolher entre trair a confiança de Anne e manter o poder que trabalhou duro para conquistar em Nassau. Max escolhe o poder, como Eleanor fez. Depois Max testemunha a destruição de tudo pelo que trabalhou, assim como Eleanor. Na quarta temporada, Max faz diferente: ela se recusa a escolher o poder na ilha a se distanciar de Anne. Ela pensa em Eleanor e exige ter o poder e sua amante — ou apenas Anne.

Flint, enquanto isso, consegue sua própria segunda chance. Envolvido numa rebelião violenta contra a Inglaterra, o novo melhor amigo de Flint (Long John Silver da Ilha do Tesouro) oferece a ele a chance de deixar a guerra e se reunir com seu amante, o nobre inglês que Flint acreditava estar morto. Eventualmente, Flint escolhe o amor em vez do poder, e ele e Max têm seu final feliz no último episódio da série.

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É impressionante que o tecido de uma série inteira sobre piratas do século 18 possa ser inteiramente resumido pelas escolhas feitas por seus personagens queer. Amor e desejo têm um papel fundamental em tudo que a série tem para dizer sobre história, narrativa, poder, sacrifício, civilização, política e criminalidade.

Ainda assim, Black Sails não fica só no lance de ser uma série-drama-de-personagens. A série adora fazer declarações metalinguísticas, como convém a uma fan-fic. Em uma das cenas finais da série, quando Long John Silver está tentando convencer o Capitão Flint a desistir da guera contra a Inglaterra, Flint responde "Você percebe que é assim que eles ganham".

Long John Silver já sentiu o gosto de resistir ao império e preferia enterrar sua espada e viver feliz com sua esposa. Mas Flint aponta que esse é exatamente o mecanismo através do qual a Inglaterra continua no poder: tornando o custo da resistência alto demais para a maioria das pessoas. Ele explica que se Silver desmantelar o esforço de guerra, a história será escrita pelos vencedores. De certa maneira, Black Sails está fazendo uma referência a Ilha do Tesouro e o papel dos piratas como vilões moralmente repugnantes. Por outro lado, as palavras de Flint são sobre como a história se lembra das pessoas queer, ou, mais apropriadamente, não lembra.

Desistindo da luta, Flint parece dizer que você aceita que eles mudem nossas histórias e apaguem partes de nós que não querem lembrar. Mas ser lembrado corretamente — e deixar um impacto na história — vale uma vida definida por uma luta violenta? A maioria dos personagens de Black Sails passa a série toda lutando com essa questão.

Pessoas queer raramente podem se ver representadas em narrativas históricas, quanto mais representadas positivamente. Mas em Black Sails, o século 18 estava cheio de personagens queer, e a história deles importou. Suas vidas eram fascinantes e suas escolhas determinaram o destino do mundo. Esses personagens e histórias eram revolucionárias para uma série de época, quanto mais para um programa que visava ser levando a sério. Se Black Sails deixou um legado, deveria ser o de nós exigindo uma representação queer melhor do resto da televisão.

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Tradução: Marina Schnoor

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