FYI.

This story is over 5 years old.

Noticias

Dentes e Sangue no Saguão do Hotel Linson

Dos seus 26 anos de vida, Vinícius Duarte passou 20 fazendo tratamento dentário. Ele pensou que estava livre afinal, até cuspir sangue, dentes e um pino de titânio quando apanhou da polícia no saguão do Hotel Linson durante a manifestação "Não vai ter...

Vinícius Duarte cuspiu dentes e sangue no saguão do Hotel Linson, mas não se surpreendeu com a força desproporcional da polícia.

Se o menino não fizesse bagunça, a faxineira não teria jogado a mochila para cima do guarda-roupa. Se ela não tivesse jogado, ele não teria subido pra buscar. Se ele não tivesse subido pra buscar, não teria caído e quebrado o dente da frente. Se não tivesse quebrado, duas décadas depois não teria um dente postiço e um pino de titânio fincado à gengiva para envergar com as cacetadas que levou.

Publicidade

O mesmo pino torto que Vinícius Duarte segura nas mãos agora para mostrar que a força usada pelos policiais em São Paulo no sábado, 25 de janeiro, não foi assim, tão moderada, como alega a Polícia Militar.

De seus 26 anos de vida, 20 foram de tratamento dentário. Estava livre dos aparelhos ortodônticos havia cerca de um mês quando cuspiu sangue e quatro dentes no saguão do Hotel Linson, na Rua Augusta, durante a manifestação “Não vai ter Copa”, o primeiro de muitos atos prometidos para este ano. Além de outros dentes frouxos, segurados agora por uma armação de metal, a surra que levou dos policiais lhe rendeu traumatismos em diferentes lugares da cabeça e do rosto. Já se sabe que o estudante de Química Industrial da Unifesp precisará de, pelo menos, cirurgia plástica nos maxilares. Seu caso será investigado pela Corregedoria da Polícia Militar do Estado de São Paulo.

A defensora pública do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Daniela Skromov de Albuquerque, que se reuniu com Vinícius nesta terça-feira, 4 de fevereiro, explicou que o caso será tratado em três esferas (acusado, vítima e reparação de danos). Como vítima, pouco se pode fazer e nada acontece se não for possível identificar os policiais. Ou seja, se não houver provas, vídeos e testemunhas que colaborem nesta identificação, fica tudo por isso mesmo. Em sua visão, a polícia é um grupo extremamente organizado, que sabe como construir verdades. Enquanto apanhava, Vinícius conta que viu espíritos conversando ao seu redor sobre sua situação. “Em torno de 15 entidades espirituais. Alguns achavam que o estado era grave e que era o momento de me levarem. Outros discordavam e pediram a mim uma chance. O resultado desse debate é o que vocês veem agora.” Ele não descarta a possibilidade de estar delirando, mas, em suas palavras de profeta… “nunca se sabe”.

Publicidade

Na sala de casa, entre cartelas de remédio e um exemplar de V de Vingança, falando com dificuldade, Vinícius contou detalhadamente tudo que rolou da porta do hotel para dentro na noite do aniversário de São Paulo.

VICE: O que aconteceu com você?
Vinícius Duarte: Eu estava na manifestação e tinha uma confusão, mas preferi ficar de boa. Fui sozinho, mas lá me juntei a um grupo que ia marchando com um cartaz bem grande na frente. Nos distanciamos do tumulto e fomos subindo pela Rua Augusta em direção à Paulista. A polícia começou a jogar gás para todo o lado, sem distinguir quem era quem. Em determinada hora, a rua ficou empesteada e algumas pessoas que estavam perto de mim entraram no Hotel Linson. Ouvi eles pedindo pelo amor de Deus pra entrar, e o pessoal do hotel foi super-receptivo e amigo. Eu entrei também. Eles só pediram para não bagunçar nada lá dentro, o que foi atendido. Trataram a gente muito bem. Cumprimentei um funcionário do hotel, agradeci por terem recebido a gente, agradeci também a uns hóspedes que estavam por lá. Foi coisa de cinco minutos até a polícia aparecer e invadir tudo. Até então, a gente prestava atendimento um ao outro, se ajudava e tomava um ar, porque na rua era impossível respirar. A polícia baixou lá, chegou dando porrada e tiro de borracha, expulsando repórteres. Nesse momento, eu tava atrás de um sofá.

A polícia não entrou a pedido do hotel?
Não. Os funcionários do hotel receberam a gente sem resistência nenhuma. Se eles quisessem que a gente saísse, teriam falado.

Publicidade

E por que a polícia resolveu surrar você?
Eu estava atrás do sofá, tentando me refugiar porque eles chegaram apontando arma para todo o lado. Resolvi levantar para tentar um diálogo com os policiais para apaziguar os ânimos. Nisso, vieram dois deles dando golpes de cassetete. Um desses golpes pegou na minha cabeça e eu caí no chão. Aí foi cacetada e chute. Mesmo quando caí, continuaram espancando, a maioria mirando no meu rosto. Eu ouvia vozes das pessoas pedindo pelo amor de Deus que parassem de me bater. Alguém falou “porra, vocês vão matar o cara”. Eles continuaram mesmo assim. Num desses golpes, percebi que a coisa tava feia porque eu estava cuspindo meus dentes e engasgando com meu próprio sangue. Mas eles não paravam.

Quando eles pararam?
Não sei dizer exatamente. Acho que quando eu gritei. Teve uma hora que levei uma porrada e senti toda a cabeça dormente. Imagino que foi de cassetete. Depois disso, fiquei lá todo ensanguentado e eles faziam terror psicológico com todo mundo, ameaçando, acusando, dando lição de moral e xingando. Uma hora eles mandaram todo mundo guardar os celulares, e eu ainda resolvi levantar, todo machucado. Comecei a filmar e falei que tinha direito, por lei. Vieram pra cima e mandaram eu desligar. Acabei cedendo porque as pessoas que estavam sentadas me pediram para deixar quieto. Depois eles levaram meu celular e devolveram mais tarde com o vídeo apagado.

Publicidade

E você ficou machucado lá no chão?
Sim, mais de uma hora. Um dos manifestantes que estava rendido se identificou como médico e pediu para prestar os primeiros socorros, um primeiro atendimento, mas os policiais não deixaram. Meu irmão falou que, mais tarde, no hospital, disseram que por pouco não precisei de transfusão, porque perdi muito sangue.

Foram os policiais que levaram você para o hospital?
Sim, depois de pelo menos uma hora e meia me colocaram no camburão e levaram para o hospital. No meio do caminho, fizeram uma curva mais fechada e eu bati a cabeça no vidro que me separava deles. Tanto na entrada quanto na saída do camburão, eles me mandaram colocar a mão nas costas, como se alguém no estado que eu tava pudesse oferecer alguma ameaça. Depois disso, não teve mais nenhum incidente. Outros policiais ficaram lá comigo, até conversei com eles. Disse que não culpo eles por isso e nem guardo rancor pelo que eles fazem ou o que são.

Mais alguém apanhou no hotel?
Eu estava num canto e não conseguia ver todo mundo. Enquanto me batiam, fui arrastado para um canto mais escuro, embaixo de uma escada. Dali, mesmo depois que eu já tava sentado, não conseguia ver todo mundo. Eu só enxergava as pessoas que estavam mais ou menos uns dois metros na minha frente. Mas quando eles entraram, vi eles atirando bala de borracha à queima-roupa em quem estivesse pela frente.

A polícia tentou identificar quem era hóspede?
Vi um cara comentando que tava só de passagem pelo hotel, mas que teve que ficar lá do mesmo jeito. Vi a pessoa explicando que só tinha ido fazer algumas coisas no hotel e tava de saída. Não invadimos o hotel, fomos recebidos. Então não tinha motivo nenhum para a polícia entrar lá, ainda mais daquele jeito. As pessoas estavam acuadas, tentando respirar um ar melhor do que o gás que estava na rua e a polícia entrou descendo o sarrafo em todo mundo.

Publicidade

E do que você foi acusado?
Abriram boletim de ocorrência contra todos que estavam no hotel. Meu nome está lá, com acusação de resistência, lesão corporal, dano ao patrimônio, apesar de eu ser um dos que gritavam para as pessoas pararem, deixarem aquilo pra lá, quando a confusão tava começando no meio da rua.

E o que essas pessoas estavam fazendo no momento?
Lembro que no protesto a confusão começou no meio de uma pivetadinha de 13, 14 anos. Mais gente se juntou a eles pra encarar a polícia e aí saiu bomba para todo lado a esmo, sem distinção.

Você sempre vai nos protestos?
Já tinha participado de protestos, inclusive da universidade. Em nenhum sofri agressão, apesar de já ter visto outras pessoas serem agredidas.

Desta vez você sentiu que podia acontecer com você?
Quando a gente vai num protesto, está ciente de que está lutando para construir o mundo em que a gente vive, que esta construção tem um preço e que alguém, em alguma hora, vai pagar esse preço. Desta vez, fui eu. Eu sabia que isso podia acontecer comigo ou com qualquer pessoa.

Você acha que eles estavam mais brabos naquele sábado?
Não notei poque eu estava muito distraído. Eu converso com muita gente nos protestos. É o que eu mais faço, trocar ideia, debater. Parava para conversar com todo mundo que aparecia. Claro que gritamos, batemos palma, fazemos barulho, mas a principal coisa que faço nos protestos é conversar porque cada pessoa ajuda a abrir a mente para uma coisa diferente, independente de ter a mesma opinião ou discordar de mim.

Publicidade

Onde eles te bateram e quais são os hematomas?
O dedão foi esmagado, tenho vergão no braço direito, no ombro, na testa, onde dá para ver claramente a marca do cassetete. Tem também nas costas. A maioria dos golpes foi na região da cabeça. Tenho pontos no topo da cabeça e nos lábios, perdi quatro dentes até agora e corro o risco de perder mais porque alguns ainda estão deslocados. Um desses dentes que eu perdi era uma prótese com pino de titânio. No raio X, vimos que o pino entortou. O titânio não é um material tão fácil de envergar, mas isso aconteceu de tal forma que os médicos chegaram à conclusão de que teria que ser removido porque podia até gangrenar se continuasse ali. Tenho também traumatismo nos maxilares superior e inferior, trauma no nariz, que ainda está entupido de sangue, por isso estou tendo que respirar pela boca. Não lembro de ter tomado nenhum golpe exatamente no olho, mas foi perto porque o sangue chegou até o olho e está tudo vermelho. Mas até agora não tive nenhum problema de visão. Quando fiz a primeira tomografia, na noite do protesto, também foi localizado um coágulo na cabeça, pelo que entendi, no cérebro. De manhã, não apareceu mais nada. De qualquer forma, orientaram a ir imediatamente para o hospital se eu sentir qualquer tipo de tontura ou dor de cabeça.

O que você vai precisar fazer para se recuperar?
Vou passar um bom tempo no Hospital das Clínicas fazendo tratamento dentário para voltar a ter um sorriso apresentável. Vou ter avaliação de cirurgião plástico para ver o que fazer com os danos causados. Estou tomando cinco remédios diferentes, entre dipirona, cetoprofeno, diclofenaco sódico, amoxicilina e Lisador.

Publicidade

Por que você foi ao protesto?
O mundo é cheio de injustiça, mas a gente não pode simplesmente se ajoelhar e aceitar que aquilo é normal. Para mim, não é normal. Parto do seguinte princípio: a injustiça pode não chegar em mim hoje, mas algum dia vai chegar. Dessa vez, chegou em mim. Mas elas chegam também em doses menores todos os dias em todo mundo. A tarifa que pagamos para andar nas latas velhas que chamam de ônibus é uma forma de violência. Mais violência ainda é fazer pagar caro por isso. Violência também é pagar impostos que são gastos com luxos daqueles que deveriam nos representar.

O que você acha de algumas pessoas se consternarem mais com patrimônio quebrado do que com uma pessoa quebrada?
Quanto ao caso da quebradeira e black blocs, concordo com algumas coisas e discordo de outras. Por exemplo, quebrar agência de banco não sinto dó. Eles são os grandes patrocinadores da corrupção que a gente vê alastrada.

E sobre os comentários no estilo “esse apanhou pouco”, que rolam pela internet?
Não to nem aí. O apoio que vem das pessoas eu agradeço de coração porque é mais que bem-vindo, mas quem postou contra, não to nem um pouco preocupado porque essas pessoas não pagam as minhas contas e não lavam a minha louça. Não são elas que limpam a minha bunda, então podem ter a opinião que quiserem.

O protesto era contra a Copa. Qual é tua opinião sobre isso?
Não tenho nada contra uma Copa do Mundo no Brasil desde que feita com honestidade, transparência e sem usar dinheiro público.

Você considera a PM uma inimiga?
Fui vítima da violência policial, mas tenho consciência de que as principais vítimas da PM são as próprias pessoas que a servem. Tenho pena do que eles são, da falta de paz espiritual que muitos deles têm. São pessoas que parecem fortes por fora, mas são perdidas por dentro. Eu me considero um profeta de rua. Minha revolução vai ser lançando profecias em forma de vídeos para desmistificar a rua, explicando o que acontece nos protestos e dando coragem para outras pessoas saírem para lutar por um mundo melhor.

Como profeta de rua, o que você acha que vai acontecer agora nos próximos protestos?
Não dá para prever, mas pensa no ser humano que levou porrada e ficou quieto durante muito tempo até que uma hora explodiu. Isso é o povo brasileiro. É um povo que por muitas décadas apanhou calado, tentou levar uma vida normal, tentou deixar para lá, até que o humor de todo um povo não aguentou mais. É mais um motivo pelo qual eu quero prosseguir com meus trabalhos como profeta de rua. Criei um canal no YouTube chamado Vidente Negro há mais ou menos uma semana pouco antes do protesto do dia 25 de janeiro. Gosto muito de ajudar e por isso fiz isso. Antes das manifestações, eu era um grande filho da puta que olhava o cara estendendo a mão na rua e passava reto fingindo que não via. Com as manifestações, conversando com as pessoas, abrindo a mente, comecei a perceber que aquilo não tava certo, que eu tava sendo um grande imbecil daquele jeito. De junho pra cá, isso mudou em mim, comecei a trocar mais ideia com mendigo na rua e, se posso, dou uma moeda. Se vão gastar com droga e cachaça, quem sou eu pra julgar a alegria deles? Posso cumprimentar, dar um abraço, ouvir o que eles têm a dizer. Percebi que este é um dos caminhos, que ajudar é a maior forma de protesto que podemos fazer.

O que você diz pra quem tem medo de ir nos protestos por conta da violência policial?
Medo todo mundo tem. Eu tenho. Mas tenho mais medo de deixar para as futuras gerações esse tipo de mundinho que a gente tá vivendo, se é que vai sobrar algum mundo. O capitalismo está consumindo todos os recursos naturais e, se continuar assim, daqui a pouco não vamos ter mais planeta pra viver.

Tenho um sonho recorrente, em que sinto um dente amolecer. Seguro com os dedos para não cair, mas sinto outros se soltando. Estão frouxos como teclas soltas de um piano banguela. Quando percebo que não tem jeito, vou cuspindo todos nas minhas mãos, que estão em formato de concha quase coladas à minha boca. Isso sempre volta e me deixa encucada. Você acha que esse sonho pode significar o quê?
Sei que a sensação não é nada agradável. Tenho interesse em estudar mais sobre sonhos, mas ainda não entendo significados.