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Vice Blog

O Conto de um Porta-Aviões no Brasil

A triste saga do NAe São Paulo, um porta-aviões jurássico e também o elefante branco da Marinha brasileira.

Certo dia, um amigo meu comprou um Landau de 1981 por R$ 2000.  “Precisa de reforma”, disse ele, “mas é um clássico, estilo retrô, e o preço foi ótimo. Vou pintá-lo, botar um sonzão para tocar charm e cortar meu cabelo black power para combinar com o carrão.” Três meses depois, ele me buscou em casa no Landau, já recauchutado, pronto para dar uma volta. Era bonito mesmo. Ao som de Keith Sweat, seguimos para o litoral. Surgiu a primeiro problema: o carro era tão grande que não deu para fazer o retorno na avenida, só na rotatória no final; então, para chegar em qualquer barzinho na praia, era obrigatório andar mais quatro quilômetros, ou seja, queimar quase dois litros de combustível. Paramos em nosso quiosque preferido. Ele abriu a mala, aumentou o som e tomamos algumas brejas. Justamente quando estávamos indo embora, o motor de arranque deu problema. Perdi contato com esse meu amigo. Seis meses depois, o encontro no ônibus, de cabelo mais comportado. “O que aconteceu com o Landau?”, perguntei. “Cara, troquei todas as peças daquela merda. Todas! Só que as peças novas começaram a dar problemas. E ele bebia combustível adoidado. Deixei-o na garagem. Agora só ando nele de vez em quando, aos domingos.”

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Eu me lembrei desse episódio recentemente quando sentei num muro em frente ao Bar da Urca, no Rio. Era aquela hora mágica de luz quando o sol começa a baixar, e até as águas mais sujas e fedorentas, como a da Baía de Guanabara, parecem azuis. Estava lá com minha namorada comendo alguns deliciosos pastéis de siri e tomando uma bebida gasosa e fermentada de milho transgênico; me preparava para admirar o por do sol quando o horizonte inteiro desapareceu detrás de uma cortina de fumaça escura. Era o NAe São Paulo, o porta-aviões da Marinha brasileira que, há anos, não consegue sair da Baía de Guanabara. Como o Landau do meu amigo, o governo brasileiro o comprou a preço de banana. Como o Landau, ele é lindo, potente, ultrapassado e cheio de problemas mecânicos.

Sentado naquele muro e olhando para a fumaça preta escondendo completamente a vista de Niterói, lembrei-me de outro amigo, que, anos atrás, juntou suas moedas e comprou um Corcel. Carro clássico, com motor francês de 1,4 cc e painel preto, de papelão. Certo dia, ele estava mexendo com o motor e o mesmo pegou fogo. Queimou o rosto dele; com isso, ele perdeu uma das suas sobrancelhas permanentemente. Na saída da UTI, ele chamou o reboque e mandou aquele abacaxi para o ferro-velho. Isso também me lembrou do NAe São Paulo: ele já pegou fogo seis vezes, matou quatro tripulantes e feriu 13, mas ninguém chamou o reboque para levá-lo para o ferro velho dos navios, em Mumbai. E ele já foi rebocado várias vezes dentro da Baía de Guanabara. Aliás, ele não anda no mar aberto faz anos, mas a ilha de Paquetá é muito bem protegida contra qualquer ataque naval.

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Em julho, a Marinha anunciou que iniciaria reformas para botar o NAe São Paulo em operação de novo. O objetivo é usá-lo até 2029, quando Brasil irá construir dois novos porta-aviões modernos. Precisará de uma reforma profunda no sistema de propulsão e nos sistemas auxiliares. Não será barato: o governo indiano gastou US$ 1,5 bilhão recentemente reformando um porta-aviões russo 27 anos mais jovem que o RAe São Paulo.

Uma pesquisa na Deep Web mostra que há muitos brasileiros reclamando das reformas propostas nos comentários de blogs militares e nas mídias sociais. Muitas pessoas reclamam do preço para uma “sucata”. Para lembrar, o governo de FHC pagou US$ 12 milhões por ele, e, até agora, a Marinha gastou aproximadamente US$ 90 milhões nas reformas. É muita grana sim, mas um porta-aviões novo custa bilhões de dólares. É como comparar o preço daquele fusca 1977 todo lascado com um novo Ford Focus. Um porta-aviões pode ser importante para estender a área de atuação das forças militares de um país. Pode ser usado em ações humanitárias –e isso pode ser estratégico para fortalecer a imagem do país como uma potência regional.

Comentário de um blog militar:

Eu perguntei ao professor Érico Duarte, do departamento de Relações Internacionais de URFRS, se vale a pena a investimento.

“Grupos combatentes de porta-aviões são meios ainda adequados para operações marítimas a grandes distâncias,” ele afirmou. “Nesse sentido, não são irrelevantes, principalmente porque são o principal meio para controle de passagens por oceanos e águas internacionais, além de possibilitar uma ampla gama de outros tipos de operações (humanitárias, por exemplo)”.

Perguntei se as reformas propostas vão habilitar a Marinha usar o RAe São Paulo estrategicamente. Ele respondeu que “um porta-aviões não opera sozinho, mas em um grupo que precisa ter outras e específicas capacidades operacionais. Nesse sentido, ter apenas um porta-aviões realmente tem poucas implicações práticas, e esse seria o caso brasileiro. Nesses termos, a manutenção do NAe São Paulo é desperdício de recursos, pois não é capaz de atender a qualquer objetivo estratégico, pois o Brasil não tem os outros requisitos para que o NAe seja um meio efetivo.”

Se, como o professor Duarte coloca, não há aplicação estratégica para o NAe São Paulo, por que o governo continua a investir nele? O Brasil é o único país na América do Sul e um dos únicos no mundo que tem um Navio-Aeródromo. Parece que ter um porta-aviões coloca qualquer país no clube das forças marinhas de elite. Será que ele fortalece a imagem do Brasil dentro espaços internacionais (como o conselho de segurança da ONU) o suficiente para valer a pena continuar gastando dinheiro e pôr os marinheiros em risco na sua manutenção? Talvez, como o Landau do meu amigo, seja melhor deixá-lo na garagem, só usando-o para tirar selfies e levar visitantes para pequenas voltas no bairro.

Um filme do NAe São Paulo quando ainda funcionava, em 2002.