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Racismo no Futebol: o Problema Também é do Brasil

O primeiro registro de racismo no futebol foi em 1914, quando Carlos Alberto, do Fluminese, pingava de suor – o que fez sua maquiagem desmanchar. Na arquibancada, a torcida gritava “Pó de arroz!”.

Foi apenas coincidência. Mas os insultos racistas sofridos por Tinga, volante do Cruzeiro, durante a partida contra o Real Garcilaso pela Libertadores no dia 12 de fevereiro, aconteceram quase 100 anos depois da primeira vez em que, no Brasil, a cor da pele de um jogador de futebol chocou-se com o preconceito de torcedores na arquibancada.

O caso está relatado no livro O Negro no Futebol Brasileiro, do jornalista Mário Filho, e é um marco quando o tema é racismo no futebol brasileiro. No dia 13 de maio de 1914, aniversário da Abolição da Escravatura, o rosto do jogador Carlos Alberto, do Fluminense, pingava de suor antes do match contra o América. Negro, usava pó de arroz para disfarçar a cor da pele. O suor desmanchou a maquiagem. Na arquibancada, a torcida gritou "Pó de arroz!". É o primeiro registro de um caso em que a cor da pele de um jogador de futebol foi motivo de chacota em um estádio brasileiro.

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Entre o século que separou os casos de Carlos Alberto e Tinga, jogadores continuaram a ser ofendidos ou ridicularizados por serem negros. No Brasil também, embora ganhem mais repercussão os casos ocorridos no exterior.

Difícil dizer se eles estão se tornando mais frequentes, mas o fato é que continuam acontecendo, apesar das campanhas de conscientização promovidas pela Fifa e entidades organizadoras do futebol em todo o mundo. Em 2013, a união das federações de futebol da Europa (UEFA) anunciou penas mais severas contra os clubes cujos torcedores ou jogadores cometerem atos racistas. A mais dura sanção foi contra o CSKA Moscou – um jogo com portões fechados e multa.

A Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol), porém, ainda engatinha em termos de punições de qualquer tipo aos clubes. No caso brasileiro, são mais conhecidos os casos de racismo entre jogadores dentro de campo, mas as ofensas partem também das arquibancadas – e sobre elas costuma pesar certo tabu.

Ilustração: Pedro G. / VICE

Dois dias depois do episódio contra Tinga, ocorrido em Huancayo, no Peru, a Conmebol anunciou a abertura de um expediente para investigar o caso e determinar eventuais punições ao Real Garcilaso, mandante da partida. O artigo 12 do regulamento da Libertadores diz que o clube cujos torcedores praticarem discriminação sofrerão multas de no mínimo US$ 3 mil – mas a punição pode se agravar para jogos com portões fechados, perda de pontos e até a desclassificação da competição.

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Não é da tradição da entidade punir clubes por episódios de racismo ou de violência nos estádios, a não ser com multas. Criado em 2012, o Tribunal Disciplinar da Conmebol multou clubes cujos torcedores usaram sinalizadores nos estádios. A pena maior foi imposta ao Corinthians depois da morte de Kevin Espada em Oruro, no ano passado: o clube foi multado em US$ 200 mil, mas a promessa de portões fechados até o final da Libertadores se resumiu a somente uma partida. Em 2014, a Universidad de Chile teve o estádio parcialmente fechado para a torcida devido ao uso reincidente de sinalizadores.

No caso Tinga, a repercussão internacional, que rendeu declarações públicas até da presidente brasileira Dilma Rousseff e do colega peruano Ollanta Humala, pode resultar em uma punição mais dura ao Real Garcilaso e, assim, criar um novo marco para o problema do racismo no futebol do continente. Até agora, no entanto, a postura da entidade tem sido quase complacente.

Também foi no Peru, em janeiro de 2011, que o atacante Diego Maurício, revelado pelo Flamengo, ouviu as mesmas ofensas ouvidas por Tinga durante uma partida da Seleção Brasileira no Sul-Americano Sub-20, disputado em Moquegua, sul do país andino. Na época, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) emitiu uma nota oficial e a Conmebol respondeu com uma faixa contra o racismo durante a competição e pedidos de respeito nos alto-falantes. O mesmo Diego Maurício denunciaria gestos racistas cometidos por torcedores do Santos no mesmo ano, no aquecimento antes de uma partida na Vila Belmiro. Como resposta, a CBF promoveu uma campanha de conscientização: uma "rodada contra o racismo" no Campeonato Brasileiro.

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Um dos casos mais marcantes dos últimos anos envolveu o atacante Grafite, então no São Paulo. Em uma partida pela Libertadores de 2005, no Morumbi, o brasileiro teria sido xingado de "negro de merda" pelo zagueiro argentino Desábato, então no Quilmes – Grafite reagiu, empurrou o adversário e foi expulso, ainda no primeiro tempo. No final da partida, o delegado de polícia Dejar Gomes Neto adentrou espetaculosamente o gramado do Morumbi, dando voz de prisão ao atleta argentino, que passaria dois dias na prisão. Pouco tempo depois, Grafite retirou a queixa contra Desábato. Em nota, a Conmebol criticou a ação do delegado, defendendo que o caso deveria ser discutido no âmbito esportivo.

Caso semelhante ocorreu em 2009, também em um jogo da Libertadores e também envolvendo um argentino e um brasileiro. Elicarlos, volante do Cruzeiro, acusou o argentino Máxi López, centroavante do Grêmio, de tê-lo chamado de "mono" (macaco, em espanhol). O caso foi parar na delegacia do Mineirão. O jogador gremista negou a ofensa racista e acusou o Cruzeiro de ter forjado a queixa na Delegacia. "Sou contra qualquer ato de racismo. Em um jogo de futebol, dentro de campo, nessas situações acabamos falando um monte de coisas sem pensar", disse o argentino já em Porto Alegre, após ser saudado pela torcida no aeroporto. Ficou por isso mesmo.

Casos de racismo entre times e jogadores brasileiros também são bastante frequentes. Em 2006, Antônio Carlos, então zagueiro do Juventude, se envolveu em uma polêmica ao esfregar os dedos no braço, no que se entendeu como uma provocação à cor da pele do volante gremista Jeovânio, com quem havia se desentendido durante jogo pelo Campeonato Gaúcho. Antônio Carlos recebeu, como punição, 120 dias de suspensão do futebol. Em entrevistas, o ex-jogador já afirmou que as coisas são ditas no calor do jogo, que se arrepende do gesto, mas que lhe "pegaram para Cristo".

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Em 2010, quando defendia o Palmeiras, o zagueiro Danilo ofendeu Manoel, do Atlético-PR, em partida pela Copa do Brasil. Uma câmera da TV o flagrou xingando o adversário de "macaco". Foi punido por 11 jogos e, três anos depois, condenado na Justiça Comum, com pagamento de multa e prestação de serviços comunitários.

Se, no calor de uma partida, os jogadores acham por bem chamar o adversário de "macaco", nas arquibancadas o xingamento também é bastante utilizado. Com a diferença de que não existe punição aos clubes e sobre os casos ainda pesa um tabu, por envolver as instituições e suscitar discussões acaloradas mais movidas pela rivalidade do que pelo bom senso.

Em 2010, o Atlético-MG treinava em Rio Branco, capital do Acre, para a partida diante do Juventus pela Copa do Brasil e alguns torcedores se dirigiram ao atacante Obina com gritos de "macaco" – na partida, sua estreia com a camisa alvinegra, Obina marcou cinco gols e o Galo venceu por 7 a 0.

Em um clássico Gre-Nal no estádio Olímpico, pela final do Campeonato Gaúcho de 2011, o meia colorado Zé Roberto ouviu imitações de macaco vindas da arquibancada do estádio tricolor. O jogador confirmou o caso em entrevista dois dias depois do clássico, mas não houve denúncia formal.

No Rio Grande do Sul, há uma discussão eterna sobre o caráter racista ou não do apelido "macacada", dado por torcedores do Grêmio à torcida do Inter em cânticos de estádio. Em Pelotas, na Zona Sul do Estado, o caso envolvendo Tinga reacendeu o mesmo debate, com torcedores do Brasil acusando os simpatizantes do Pelotas de recorrentes ofensas racistas nos clássicos Bra-Pel.

Em casos assim, a rivalidade dificulta uma discussão mais razoável, porque é mais alto o barulho dos fanáticos acusando o rival de uma coisa ou outra. A imprensa peruana recebeu críticas internas por não ter noticiado as ofensas contra Tinga – a maioria dos portais passou a publicar alguma coisa após a repercussão – o que seria um dos sintomas da falência do futebol do Peru.

Evitar o problema é uma maneira de perpetuá-lo. Por isso, uma das iniciativas mais louváveis dos últimos tempos partiu do Grêmio. Em 2013, o clube divulgou um vídeo com jogadores relatando episódios de racismo sofridos ao longo da vida e conclamando os torcedores para combater o racismo no futebol.

Se as punições ainda são brandas e não estão surtindo efeito, é bom que os próprios clubes encarem o problema, sem esperar a próxima vez que, num estádio, alguém considere que a cor da pele do adversário possa servir como ofensa. Não é só no exterior que os jogadores brasileiros são vítimas de racismo – o preconceito move muita rivalidade dentro do Brasil. O problema também tem que ser enfrentado aqui.

O Daniel Cassol e Murilo Basso escrevem no Impedimento, que, se você ainda não conhece, tá comendo bola.