ilustração de Ze Pedro, por Filippo Fiumani
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Obituario

Tributo ilustrado ao Zé Pedro

O gajo mais generoso do rock portugês. O gajo mais generoso. O mais puto de nós todos.

A primeira vez que vi os Xutos tinha 13 anos. Foi no Verão de 87, na Praça de Touros da Nazaré. Eu, o meu irmão e o Seco. Até me lembro de como é que estava vestido, mas adiante. Era a digressão do Circo de Feras, os Mão Morta tocavam na primeira parte, mas não chegaram a tocar, ou tocaram só uns minutos. Ou pelo menos é essa a memória enevoada que tenho do caos punk, perigoso, fervilhante daquele fim de tarde de férias grandes.

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Porrada na plateia, gajos a chutar cavalo nas bancadas. Portugal era um sítio fodido nos anos 80 e os Xutos eram uma banda fodida naquele Portugal. Punks párias, então já com quase quase 10 anos de carreira, mas pouco ou nenhum reconhecimento para lá do nicho, do Rock Rendez Vouz, das cassetes partilhadas no pátio do Liceu, do "1º de Agosto" cantado raivosamente de manhã antes de ir para as aulas.

Só que, nesse Verão, nesse 1987, as coisas já tinham começado a mudar. Na Praça de Touros da Nazaré, a par dos janados, da punkalhada e dos rockers das aldeias, também já se viam famílias, gente "normal", o mainstream. Aqueles que desde Fevereiro cantarolavam "Contentores", como antes cantarolavam "Playback" do Paião, ou "Chico Fininho" do Rui Veloso. O poder da rádio, à altura. O poder de uma canção. Pop Rock, diz-se.

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Mas ainda não interessava. Os Xutos começavam ali uma senda impressionante de um ano. Sim. Um ano. Um ano em que lançaram outro álbum, 88, carregado de sucessos, claro, e fizeram uma digressão nacional esmagadora de quatro meses, que culmina com três datas esgotadíssimas no pavilhão d'Os Belenenses e a edição de um álbum triplo com a gravação desses concertos históricos, Ao Vivo. Para mim, que saí da Praça de Touros da Nazaré e no dia seguinte já tinha um lenço vermelho ao pescoço que só tirava para tomar banho, foi também o culminar de uma paixão fulminante.

Aqueles cabrões tinham uma pinta incrível. Para mim era principalmente o Zé Pedro. O Cabeleira era um bocado too punk, o Tim meio híbrido, o Kalu talvez demasiado rocker. O Gui nem sempre tocava ao vivo na altura. O Zé Pedro, foda-se. Que classe. Vi-os pela segunda vez na passagem da Tour "88" pela minha cidade, Leiria, numa tenda a abarrotar, nas grades, com os punks do Liceu a espumarem, a beber às escondidas com medo que algum amigo dos meus pais me visse.

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Vê: "O rock de ginga na anca dos The Twist Connection"


E depois. Esvaiu-se-me o interesse. Passou. "A Minha Casinha" - apesar da magnífica edição em cassete-single - subtraiu-me os Xutos da equação musical em que me começava a embrenhar por essa altura. Os Pixies, os Cure, os Smiths, falaram tremendamente mais alto.

Ficou-me uma coisa difícil de descrever por palavras. Aquela sensação, aquele som dos concertos n'O Belenenses. Não estava lá, mas ouvia aquilo e conseguia sentir o que tinha sentido nos concertos em que tinha estado. Aliás, ainda consigo. Há uns anos, numa madrugada transformada em manhã, a RTP Memória estava a passar o concerto e voltei a sentir as canções. Tal e qual. Canto-as todas.

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Nunca mais os ouvi como nessa altura. Vi-os mais um monte de vezes, mas nunca mais os ouvi. Como eu, tantos. Mas uma coisa nunca perdi: a admiração absoluta pelo Zé Pedro. Está por todo o Facebook, está por todo o lado. Todos os teus amigos e os meus têm histórias com o Zé Pedro, fotografias com o Zé Pedro e a certeza universal que o Zé Pedro era o gajo mais generoso do rock em Portugal. O gajo mais transversal. O mais puto de nós todos. E, por uma vez, ninguém está a exagerar. Ninguém. Tudo o que o Zé Pedro fez para lá dos Xutos, do Johnny Guitar, à rádio, às campanhas de luta contra a droga ou de sensibilização para a hepatite C, aos DJ sets, às outras bandas todas, fê-lo com uma coisa a que, preguiçosamente, mas assertivamente só podemos chamar de generosidade. Olhava-se para ele e via-se.

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Nunca o entrevistei, embora seja uma coisa que tenho numa lista de "coisas a fazer" desde que cheguei à VICE há cerca de três anos. Estive várias vezes no mesmo metro quadrado que ele - incluíndo no concerto dos Guns em 92, em Alvalade, em que ficámos todos naquele modo, "foda-se tá ali o Zé Pedro, caralho!", numa altura em que não podíamos ver Xutos à frente (eu, nem os Guns, btw) -, mas só lhe falei uma vez. Foi em Paredes de Coura, acho que em 2009. O João Carvalho apresentou-nos com um "não conheces o Sérgio, do Imago?". O Zé Pedro respondeu, "o Sérgio não, mas o Imago conheço". E riu-se com aquele sorriso que desde ontem nos invadiu os ecrãs. Rimo-nos os dois e tirei-lhe uma fotografia com o meu amigo Serra (abaixo).

Um abraço Zé. Obrigado. X

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