Identidade

Objectos e sensações que fazem com que refugiados se lembrem de casa

"Estava com medo de também perder a minha cultura, mas algo tão pequeno como um tapete ajudou-me a agarrar-me a uma parte dela".
Mattea deixou a Bósnia com a sua família aos sete anos de idade
Mattea, da Bósnia.

Este artigo foi originalmente publicado na VICE Holanda.

A minha família fugiu do Iraque para a Holanda há cerca de 20 anos. Sempre me senti muito grato por ter desembarcado num país tão seguro, mas, definitivamente, há momentos em que sinto falta do meu país natal. Tinha apenas um ano de idade na altura, por isso não é por causa das minhas próprias memórias, mas por causa da comida - o dolma , bamia e quibe - que comemos em casa. E por causa das séries árabes que vemos na televisão e das pinturas da minha mãe dos locais icónicos do Médio Oriente que estão penduradas na nossa sala de estar.

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Queria descobrir se outros refugiados também têm objectos específicos que os fazem sentir saudades de casa, por isso, graças ao Buddy Film Project - uma organização que ajuda cineastas refugiados a levarem a cabo os seus projectos - conversei com cinco migrantes sobre as coisas que os relembram do seu país natal e que os fazem sentir em casa na Holanda.

Oday, 21, Síria

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"As minhas manhãs começam sempre com Qahwa sírio e um cigarro. Não podes compará-lo ao café de uma máquina - não apenas por causa do sabor, mas também porque este café em particular relembra-me o passado. A nossa rotina diária era tomar café juntos em família todas as manhãs antes do trabalho. Até que, há cerca de quatro anos e meio, os meus pais decidiram vir para a Holanda.

Acabei a viver com o meu pai quando os meus pais se divorciaram. Agora, posso fazer o que quiser na Holanda, o que é muito diferente da minha vida na Síria, onde todos se conheciam. Era bom, mas também significava que as pessoas sabiam tudo umas das outras. Eu não era livre para ter uma relação, beber ou fumar. Se o fizesse, todos na nossa comunidade falariam sobre isso. Aqui, no entanto, cada um faz o que quer.

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Quando penso na Síria, não penso em posses, mas em sentimentos específicos e nas recordações que lhes são inerentes, como a rotina do pequeno-almoço. Para proteger essa memória e continuar a tradição, compro sempre o meu café num supermercado árabe da cidade.

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Isso não significa que queira ficar preso ao passado; em vez de apenas sair com os sírios, quero conhecer o maior número possível de holandeses. Quero concentrar-me na minha nova vida, no novo Oday que surgiu na Holanda. Às vezes, perder algo pode significar encontrar algo melhor.

Yasir, 22, Somália

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"Fugi da Somália quando tinha seis anos, com a minha mãe e o meu irmão mais novo e acabei na Holanda. Passámos os 11 anos seguintes a mudar de centro de refugiados para centro de refugiados. Isso significa que, em criança, nunca tive a oportunidade de sentir que tínhamos assentado. Sempre que estava perto disso, tínhamos de mudar outra vez - apegar-me a objectos ou posses era inútil.

A comida da minha mãe era a única coisa constante em que podia confiar. É o que me faz pensar na Somália e me ajuda a sentir em casa aqui. Trabalho na indústria hoteleira e, quando tenho um intervalo, costumo comer batatas, legumes e alguma carne ou peixe. É bom, mas não é o chapati e o feijão da minha mãe.

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A minha definição de lar é em qualquer lugar com a minha família, o que significa que a comida da minha mãe também lá está. A minha família manteve-se unida durante esses anos difíceis, por isso, desde que os tenha à minha volta, a casa pode estar na Somália ou na Holanda.

Para além disso, na Somália, consideramos os nossos vizinhos como família e eu realmente sinto falta disso. Éramos muito pobres e comíamos todos os dias em casa do nosso vizinho, porque assim podíamos partilhar. Também tivemos refeições partilhadas no centro de refugiados. Aquele sentimento caloroso de comunidade era mais forte lá do que na casa em que vivemos agora.

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Muitos refugiados que vieram para a Holanda estão a viver uma boa vida e partilham a sua comida, mas pelas razões erradas: querem exibir-se. Esse não é o nosso estilo - a minha família e eu ainda não somos milionários, mas temos uma casa, comida e temo-nos uns aos outro. Essa é a coisa mais importante".

Matea, 33, Bósnia

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"Sempre que entras em minha casa, encontras três tapetes tradicionais. Mudei-me muitas vezes nos últimos anos; até a minha casa actual é temporária. Por causa disso, nunca me preocupei em decorar adequadamente, mas, graças aos tapetes, posso pelo menos preencher o espaço de alguma forma. Os tapetes fazem-me lembrar os meus pais e avós, que infelizmente faleceram. Ajudam-me a manter a Bósnia e a minha família vivas. Lar, para mim, é onde estão os tapetes.

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Nasci em Sarajevo, mas fugi com a minha mãe para a Holanda quando tinha sete anos. Tem sido difícil para mim sentir-me em casa desde então. Tive essa sensação durante um tempo, quando morava com o meu ex-marido, mas depois do divórcio foi como se estivesse de volta à estaca zero.

Quando saí da Bósnia, perdi a minha casa, amigos e família. Estava com medo de também perder a minha cultura, mas algo tão pequeno como um tapete ajudou-me a agarrar-me a uma parte dela. Vou mudar para um apartamento em breve e espero sentir-me assim novamente. Aconteça o que acontecer, podes ter a certeza de que os meus tapetes serão colocados num bom sítio".

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Raed, 28, Síria

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"Costumo tentar recriar os pratos da minha mãe. Agora estou a trabalhar no dolma. Ela cozinhava sempre para toda a família e colocava algo diferente na mesa todos os dias. A cozinha do Médio Oriente faz-me lembrar a minha família, a minha infância e a vida quotidiana na Síria. A comida sempre foi uma parte importante da nossa cultura e é a única coisa que me resta agora que moro sozinho na Holanda.

Decidi deixar a Síria há quatro anos e meio por causa da guerra. Os meus últimos quatro anos lá foram cheios de insegurança e sabia que tinha que sair se quisesse ter um futuro seguro que não envolvesse servir no exército. Planeei uma viagem para a Suécia, mas quando cheguei à Europa, mudei de ideias e fui para a Holanda. Toda a gente falava sobre como tudo está bem organizado e sobre o inglês ser como uma segunda língua. Também não conhecia ninguém na Holanda, o que preferia. Não queria que ninguém dissesse que me salvaram ou que não estaria onde estou agora sem eles. Queria descobrir as coisas por mim próprio".

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Quando cheguei à Holanda, tudo se tornou mais complicado do que esperava. Aqui, existem leis e regras para tudo. Na Síria, podes resolver tudo com dinheiro. E, embora esteja grato por viver na Holanda, tornei-me muito mais solitário - a minha família está espalhada por toda a Europa e Síria e eu não trouxe nada do país onde nasci.

Na Síria mudávamos-nos a cada três anos, por isso aprendi a não me apegar a objectos físicos. As memórias são as únicas coisas que podes levar contigo para sempre - isso e as habilidades culinárias da minha mãe, que felizmente herdei, pelo menos um bocadinho".

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Sally, 26, Síria

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"Cheguei à Holanda há dois anos, vinda da Síria. O meu marido já aqui estava há alguns meses e tinha tratado da minha papelada. Fugimos, porque o meu marido é muçulmano e eu sou cristã e isso significava que não podíamos estar juntos na Síria, até a minha família não aprovava. Ainda assim, continuámos juntos, até que um dia ele me pediu em casamento na praia. Mais tarde, nesse mesmo dia, apanhámos o autocarro para Damasco, onde comprámos anéis de casamento em Al-Hamidiyah Souq, o maior mercado turístico da Síria.

O meu marido partiu para a Holanda pouco depois. Os meus últimos meses na Síria foram muito difíceis - perdi a minha família e tive que me mudar. Foi muito solitário. Enquanto isso, a situação no país estava a piorar devido à guerra. Quando cheguei à Holanda, no princípio sentia um vazio, porque a minha mãe, as minhas irmãs e as minhas amigas estavam tão longe. Comecei a sentir ainda mais falta delas depois do nascimento do meu filho e de ter a minha própria família. Para mim, a casa é toda sobre família.

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O meu marido e eu casámo-nos na Síria, mas nunca tivemos uma cerimónia adequada. Quando cheguei ao aeroporto de Schiphol, estavam algumas mulheres à minha espera. Fiquei preocupada e não percebi o que estava a acontecer, mas uma delas disse-me que estava tudo bem e que tinha uma surpresa para mim. Fomos à casa-de-banho, onde encontrei um vestido de noiva à minha espera. Estava confusa, mas vesti-o. O meu marido, Ramez, estava do lado de fora do aeroporto. Tinha planeado um casamento para mim.

Os nossos anéis de casamento e os meus álbuns de fotografias são os meus bens mais preciosos. Quero poder de vê-los em casa o tempo todo - é por isso que três desses álbuns estão em cima da televisão".


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