Os incríveis autorretratos fashion de uma artista latina trans
Martine Gutierrez, Body En Thrall, p113 de
Indigenous Woman, 2018. © Martine Gutierrez; cortesia da artista e da RYAN LEE Gallery, Nova York. 

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Viagem

Os incríveis autorretratos fashion de uma artista latina trans

Martine Gutierrez explora sua identidade como uma mulher latinx trans de descendência indígena com uma revista de moda de 146 páginas que ela publicou sozinha.

Frida Kahlo uma vez disse “Sou minha própria musa. Sou o tema que melhor conheço”. É um sentimento que também descreve muito bem Martine Gutierrez, uma artista transgênero latinx que gosta de se apresentar no papel triplo de tema, artista e musa em seu eclético corpo de trabalho.

Estabelecendo uma prática de autonomia total, Gutierrez conceitualiza e executa cada detalhe dos dois lados da câmera - a artista tem controle completo de sua narrativa. Para sua nova exposição, Indigenous Woman, Gutierrez criou uma publicação de arte de 146 páginas (mascarada como uma revista de moda lindíssima) celebrando a “herança maia, a navegação pelas raízes indígenas contemporâneas e uma autoimagem sempre em evolução”, segundo a “Carta da Editora” da artista.

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“Eu queria questionar como a identidade é formada, expressa, valorizada e considerada como mulher, mulher trans, mulher latinx, mulher descendente indígena e mulher artista. É quase impossível chegar a respostas definitivas, mas para mim, esse processo de exploração é muito afirmativo”, ela escreve.

Gutierrez usa a arte para explorar as intersecções de gênero, sexualidade, raça e classe pelo modo como essas coisas informam sua experiência de vida. A artista, que mora no Brooklyn, usa fantasias, fotografia e filme para produzir cenas narrativas elaboradas, que misturam tropos da cultura pop, bonecas infláveis, manequins e autorretratos para explorar as maneiras pelas quais identidade, como a arte, é tanto uma construção social quanto uma expressão autêntica de si mesma.

Editoriais de moda com títulos como Queer Rage, Masking e Demons aparecem nas páginas de Indigenous Woman, além de propagandas de produtos falsos como bronzeador Blue Lagoon Morisco, com a legenda “Brown is Beautiful”. Gutierrez subverte o olhar tradicional masculino cisgênero enquanto simultaneamente levanta questões sobre inclusividade, apropriação e consumismo.

Enquanto a exposição dela acontece na Ryan Lee Gallery em Nova York, a VICE falou com Gutierrez sobre sua interrogação de identidade.

E: Martine Gutierrez, capa de Indigenous Woman, 2018. D: Martine Gutierrez, Covertgirl, p44, de Indigenous Woman, 2018. © Martine Gutierrez; cortesia da artista e da RYAN LEE Gallery, Nova York.

VICE: Que chapéus metafóricos você usou enquanto criava Indigenous Woman?

Gutierrez: Todos! A maioria das pessoas não leva em consideração todos os detalhes que formam uma imagem de alguém que não parece comigo ou não existe no mesmo mundo que eu, mesmo sendo eu. Sou uma criadora, fundadora, editora-chefe e escritora [risos]. Não havia um orçamento [para a revista], provavelmente por isso levei três anos para fazê-la.

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De um ponto de vista de revista de moda, é fácil nomear essas categorias porque elas existem para serem notadas naquele formato. Aqui pude destacar essa parte da minha prática que sempre esteve em silêncio: fazer o cabelo, maquiagem, styling, todo tipo de design gráfico, fotografia, modelar, procurar locações. O que é menos glamouroso é que também sou a equipe. Tenho que fazer o trabalho pesado.

As pessoas acham que é só uma imagem glamourosa, e é isso que quero. Eu queria que parecesse fácil. Eu não queria que você notasse as partes difíceis – porque há muitas, eu simplesmente as cobri. As pessoas sempre consideraram meu trabalho como algo feito pela indústria da moda, porque faço um acabamento muito polido. Acho que isso mostra muito cuidado e atenção.

E: Martine Gutierrez, Body En Thrall, p113 de Indigenous Woman, 2018. D: Martine Gutierrez, Del’ Estrogen , p2 de Indigenous Woman, 2018. © Martine Gutierrez; cortesia da artista e da RYAN LEE Gallery, Nova York.

Você pode falar sobre como seu trabalho inicial como uma artista performática de vanguarda se relaciona com seu papel como fotógrafa/modelo?

Vejo minhas sessões de foto como performances – elas são hipercontroladas e privadas. Como minha prática é solitária, as performances ao vivo são estruturalmente similares às minhas sessões de fotos e têm a beleza efêmera de se transformar num sentimento. A experiência pode pairar de um jeito que uma imagem não pode. Performance ao vivo é internalizada, então pode se manifestar em sonhos ou ser lembrada até a morte.

E: Martine Gutierrez, Queer Rage, Don't Touch The Art, p69 de Indigenous Woman, 2018. D: Martine Gutierrez, Queer Rage, Growing Up Bites, p65 de Indigenous Woman, 2018. © Martine Gutierrez; cortesia da artista e da RYAN LEE Gallery, Nova York.

Tem uma linha na revista sobre como você desenvolveu de uma xamã emo para um tipo de femme fatale – e você é elogiada por isso. Você pode falar sobre o papel do glamour no seu trabalho?

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Aquela foto minha na escola – sinto como se ninguém acreditasse em mim. Vejo a revista com um curador, e quando chegamos naquela imagem é sempre tipo “Essa é minha foto na escola”, e ele diz “Espera, não é uma sessão de fotos? Não é um momento recriado?”.

Não, é real, e é isso que acho tão engraçado. A revista toda é real de uma maneira fantástica e reimaginada. Ela tira elementos da minha vida e elementos da minha identidade que são confusos e difíceis mesmo para mim, e tenta compartilhá-los.

E: Martine Gutierrez, Queer Rage, P.S. Your Parents Are Nuts, p74 de Indigenous Woman, 2018. D: Martine Gutierrez, Queer Rage, Ghetto Boys Make Some Noise, p75 de Indigenous Woman, 2018. © Martine Gutierrez; cortesia da artista e da RYAN LEE Gallery, Nova York.

Adorei a entrevista que você deu para a revista. Quando você cita uma fala do filme da HBO Gia com precisão, eu ri e percebi como uma conversa sobre arte às vezes pode ser sem humor e seca.

Acho que há um ar de intelectualismo que a arte precisa para funcionar. Há necessidade de ser retórico no mundo da arte, para os museus, para o público que vai para essas exposições dizer “Isso é válido por quê…”.

Não sei se estou tentando mudar isso. Só sei que não gosto de agir assim. Estamos vivendo numa era onde minha existência é política, eu querendo ou não. Isso é difícil e tem um peso emocional, e o humor é meu salvador.

E: Martine Gutierrez, Masking, Green Grape Mask, p51 de Indigenous Woman, 2018. D: Martine Gutierrez, Masking, 24k Gold Mask, p46 de Indigenous Woman, 2018. © Martine Gutierrez; cortesia da artista e da RYAN LEE Gallery, Nova York.

Na parte Masking , você criou fotos de máscaras faciais caseiras que lembram o trabalho de Irving Penn, onde você usa frutas, flores e tratamentos de beleza para criar um novo rosto selvagem. Qual foi a inspiração para essa série?

Masking foi a primeira oportunidade para não ser nem humana, para disfarçar a conversa sobre gênero, e fugir das políticas de identidade. Eu tinha acabado de fazer um corpo de trabalho sobre manequins e muito disso era sobre pose. Eu estava fazendo a mesma coisa – pintando meu rosto com cores que achamos naturais: vermelho nos lábios, azul nos olhos, cor de pele no resto, cobrir a barba, acentuar suas melhores qualidades femininas. É exaustivo, mas também muito divertido e motivador continuar trabalhando assim.

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Eu queria fazer uma série que me permitisse ganhar bem-estar com essa prática. Eu estava pensando sobre coisas que acontecem depois de uma sessão de fotos – tirar tudo: a base, creme, azeite de oliva, mel, matcha, lama e as máscaras faciais que me ajudam a parecer e me sentir bem no mundo real. Eu pensei “E se isso fosse a maquiagem?” É excitante construir uma identidade baseada em formas alienígenas, procurando formas, texturas e cores em frutas, flores e vegetais que podiam criar o que reconhecemos como um rosto: duas coisas acima e uma linha abaixo. Somos treinados para procurar rostos, e quando vemos rostos somos treinados para os desmontar e perguntar “Que tipo de pessoa é essa?”

É um homem ou uma mulher? Qual a idade dela? De onde ela é? Construindo essa narrativa, olhamos para como a pessoa se veste, como ela anda, fala e se porta. Todos esses marcadores estão muito conectados com o gênero binário e como separamos as pessoas como uma ou outra. Há pouca oportunidade para não ser colocada nessas duas categorias, e Masking foi a oportunidade para tratar isso como um alienígena, sem ser ficção científica.

Qual a importância de ir além do binário?

Olhamos as coisas como preto e branco quando há muito cinza. Mesmo pessoas que acham que estão no preto ou no branco – elas têm um pé no cinza. Todos temos. É impossível não ter.

E: Martine Gutierrez, Neo-Indeo, Chuj Mini Gag, p26 de Indigenous Woman, 2018. D: Martine Gutierrez, Neo-Indeo, Legendary Cakchiquel, p32 de Indigenous Woman, 2018. © Martine Gutierrez; cortesia da artista e da RYAN LEE Gallery, Nova York.

Você pode falar um pouco sobre a perspectiva indígena?

Essa é parte da questão: Tenho isso? Acho que não. Sou uma norte-americana nascida em Berkeley, Califórnia, criada em Oakland e Vermont, e morando em Nova York. Tenho uma perspectiva ameríndia. É a perspectiva das culturas dos meus pais e de nenhuma, porque é minha própria bagunça. Já fui chamada de toda interação de “mestiça”, e não há dúvida sobre a origem do meu questionamento. Estou perguntando o que significa ser uma mulher real, autêntica e nativa?

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É uma crítica e uma investigação simultaneamente sobre o que assume esses rótulos, estereótipos e iconografias que tenho. Minha autenticidade nunca deveria existir singularmente, seja na questão do meu gênero, etnia ou orientação sexual. Minha verdade prospera na área cinza, mas a sociedade ainda não permite abrir a consciência para celebrar ambiguidade, e nos dizem quem devemos ser. Mas depende de você considerar tudo e ser aberto, ou como você vai saber se sua vida e real ou só uma encenação?

Martine Gutierrez, Demons, Tlazoteotl ‘Eater of Filth,’ p91 de Indigenous Woman, 2018. Martine Gutierrez, Demons, Xochiquetzal ‘Flower Quetzal Feather,’ p94, de Indigenous Woman, 2018. © Martine Gutierrez; cortesia da artista e da RYAN LEE Gallery, Nova York.

Na parte Demons, você se elencou como divindade astecas, maias e iorubás para examinar como o sagrado feminino nas culturas indígenas tem sido retratado no Ocidente. Como você pensou nessa série?

Eu pensava em chamar essa série de Goddesses, porque é assim que minha comunidade chama mulheres trans. Somos chamadas de “anjos” ou “deusas”, e imagino que é assim que somos vistas. Somos de outro mundo. E pensei “Vamos olhar para algumas das deusas dos meus ancestrais. Que papel elas tinham?”. A coisa mais próxima para mim são essas divindades. Gosto da palavra. Ela parece sem gênero para um indivíduo num lugar de poder.

Na literatura antiga maia, elas são chamadas de demônios. Talvez o establishment não pense nelas como pessoas existindo. É mitologia. Mas para mim – uma pessoa tentando se identificar com uma pessoa antiga que representava sua comunidade – elas são vistas como demônios, e mesmo minha reação a isso está ligada ao colonialismo. Essa negatividade te lança para o submundo. Os maias chamavam isso de Xibalba, o submundo, e era lá que muitas dessas figuras reinavam.

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Achei isso chocante e excitante. Especialmente porque eu já tinha começado a fazer coroas para essas divindades, e pensei “Ah, vocês vão parecer um pouco diferentes. Vocês são um pouco mais demoníacas”. Mas é uma mentalidade. Não tenho uma compreensão clara do que elas fizeram, porque seja maia ou asteca, tudo que temos foi traduzido para inglês, e a interpretação disso, por ser ocidental, é imediatamente filtrada pelos olhos da pessoa catalogando isso.

Seria como se eu estivesse escrevendo sobre música pop gospel ou competição de líderes de torcida. Seria algo muito fora de qualquer coisa com que estou familiarizada, ainda assim tenho o poder de autoridade de dizer “É isso que isso é”, e essa será a referência. As verdades da história são assustadoras para mim por causa disso. O que dizer de tantas verdades existindo? [Risos] Acho que isso é muito verdade.

E: Martine Gutierrez, Neo-Indeo, Unclockable In Ixinca, p21 de Indigenous Woman, 2018. D: Martine Gutierrez, Identify Boots, p98 de Indigenous Woman, 2018. © Martine Gutierrez; cortesia da artista e da RYAN LEE Gallery, Nova York.

Como identidade e representação te guiam como artista?

Só posso falar da minha vida, das minhas experiências. Acho que muitas das perguntas que coloco ou papéis que assumo são papéis com que luto na vida. Por isso são tão importantes de manifestar, e os manifestando, isso me ajuda a superar. Nem sempre, mas aprendi que a prática de fazer imagem, vídeo ou música é ver algo fora de mim ou como a sociedade não me vê – e de alguma forma isso se torna verdade. É como fazer um pedido, ou colocar uma mensagem numa garrafa, e isso te ajuda a superar.

Indigenous Woman fica em exposição na Ryan Lee Gallery, Nova York, EUA, até 20 de outubro de 2018.

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