A revolução mais feminista que o mundo já testemunhou

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reportagem

A revolução mais feminista que o mundo já testemunhou

Na Síria, um coletivo anarquista curdo liderado por mulheres está no coração da luta contra o ISIS.
MS
Traduzido por Marina Schnoor

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE UK .

Algo extraordinário está acontecendo no nordeste da Síria. É uma história pouco comentada que desafia as narrativas mais comuns sobre o país em conflito, Assad, guerra civil ou o ISIS. Nada menos que uma revolução política, que traz lições importantes para o resto do mundo. Nessa revolução, as mulheres estão na vanguarda, tanto política como militar, muitas vezes atuando como líderes da luta armada a ponto de sacrificar suas vidas contra o inimigo mais atávico e misógino que existe: o suposto Estado Islâmico — ou Daesh, como o grupo é depreciativamente chamado.

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Esse lugar se chama Rojava, o nome curdo para o Curdistão ocidental, localizado no nordeste da Síria. Depois do colapso do regime de Assad em 2012, partidos curdos começaram um projeto extraordinário de autogoverno e igualdade para todas as raças, religiões, homens e mulheres. Visitei Rojava no verão de 2015 para tentar entender o que estava acontecendo lá e fazer um documentário sobre anarquismo, que você pode assistir no iPlayer.

Poucos jornalistas visitam esse pedaço de terra ao longo da fronteira turca, que tem cerca de metade do tamanho da Bélgica. É difícil e caro chegar lá, o que exige uma longa jornada a partir do norte do Iraque, cruzar o Rio Tigre num pequeno barco até chegar a solo sírio. O Governo Regional Curdo no norte do Iraque (KGR) não é simpático aos curdos de Rojava, e torna o acesso muito difícil, às vezes até impossível.

Os poucos jornalistas que chegam até lá tendem a focar na luta contra o ISIS, acreditando que é nisso que o público ocidental está mais interessado. Rojava é mais segura que as principais zonas de combate na Síria, mas ainda sofre com ataques suicidas, e visitantes ocidentais dão uma ótima presa para sequestradores do Daesh.

Como resultado, muito pouco tem sido relatado sobre o incrível experimento político que é Rojava. Os pequenos comentários que aparecem geralmente são de segunda mão. Eles repetem em geral equívocos e espalham uma propaganda hostil do grupo, principalmente, pela Turquia, que se opõe ao principal partido dos curdos de Rojava — o PYD — e às forças armadas de Rojava, as Unidades de Autodefesa Popular, formadas pelo YPG, principalmente com soldados homens, e o YPJ, formado só por mulheres. Além do caráter político da revolução de Rojava não se encaixar nas narrativas familiares; isso também não é um projeto nacionalista curdo para um estado independente, nem marxista ou comunista, nem comandado por motivos religiosos ou étnicos.

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Talvez a coisa mais notável — e, infelizmente, única — é que essa é a revolução mais explicitamente feminista que o mundo já testemunhou, pelo menos na história recente. Antes, essa área era lar de tradicionais camponesas, havia casamento infantil e as mulheres eram mantidas em casa. Essas tradições foram derrubadas: casamento infantil, por exemplo, agora é ilegal. Há organizações de mulheres paralelas em cada campo, de uma milícia separada feminina, o YPJ, até comunas e cooperativas femininas paralelas. Autodefesa é um princípio da revolução de Rojava, por isso as mulheres são tão ativas na luta armada — mas o conceito se estende para o direito de autodefesa contra todas as práticas e ideias contra mulheres, incluindo aquelas da sociedade tradicional, não só contra a violência extrema do Daesh.

"Pelo que vi, essa transformação política vem recebendo apoio de todos: curdos, árabes, mulheres e homens, jovens e velhos. E por que seria diferente? O ponto é dar a todo mundo a chance de opinar no governo."

Além de garantir direitos iguais para as mulheres, as políticas feministas de Rojava visam quebrar a dominação e hierarquia em todos os aspectos da vida, reconstruindo as relações sociais entre todas as pessoas independentemente de idade, etnia ou gênero, com o objetivo de alcançar uma sociedade ecológica e socialmente harmônica. Em termos de comparação histórica, o projeto lembra mais o curto período de anarquismo testemunhado por George Orwell na República da Espanha durante a guerra civil espanhola, no final dos anos 30. Mas os representantes de Rojava também rejeitam o rótulo de anarquistas, mesmo que muito da inspiração para a revolução tenha vindo originalmente de um pensador anarquista de Nova York, Murray Bookchin.

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O coração político de Rojava está nas assembleias das comunas locais, nas quais os moradores tomam decisões por si mesmos sobre tudo: saúde, empregos, poluição… garotos andando de bicicleta muito rápido das ruas do vilarejo, como uma mulher reclamou numa das assembleias que visitei. Homens e mulheres têm voz igual. Mulheres são copresidentes em cada reunião e assembleia. Minorias não curdas, principalmente árabes, mas há também siríacos, turcomanos e assírios que recebem prioridade na lista de fala; na reunião que assisti, intérpretes foram fornecidos. Isso é autogoverno, onde decisões para a aldeia são tomadas na aldeia ou região. Se as decisões não podem ser tomadas num nível local, representantes participam de assembleias municipais ou regionais, mas esses representantes continuam responsáveis no nível comunitário e só podem oferecer visões aprovadas localmente. É uma tentativa muito deliberada de manter a tomada de decisão o mais local possível — uma rejeição ao estado de autoridade de cima para baixo.

Ironicamente, no entanto, a inspiração para e revolução é muito de cima para baixo. Abdullah Öcalan, o líder do PKK (o movimento de guerrilha curdo na Turquia), leu os trabalhos de Murray Bookchin numa prisão turca localizada numa ilha no Mar de Marmara (onde ele ainda está). Antes, um líder marxista-leninista e militarmente implacável, Öcalan se convenceu de que aquele autogoverno sem ajuda do Estado era o melhor caminho para o futuro do povo curdo. Ele moldou a filosofia de Bookchin para o contexto curdo, chamando isso de "confederalismo democrático". O PYD curdo sírio é associado ao PKK. Seguindo Öcalan, esses curdos adotaram o confederalismo democrático e o implementaram na Síria.

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Alguns acusaram o PYD de usar táticas dominadoras, particularmente no começo dessa revolução democrática. Essa conduta deu espaço para críticos descartarem injustificadamente o projeto todo. Pelo que vi, essa transformação política vem recebendo apoio de todos: curdos, árabes, mulheres e homens, jovens e velhos. E por que seria diferente? O ponto é dar a todo mundo a chance de opinar no governo — uma inovação radical em qualquer lugar, ainda mais na Síria, um país acostumado com ditadura e repressão. Falei com muitas pessoas aleatórias. Elas foram uniformemente positivas, e muitas argumentaram que o modelo Rojava, de governo altamente descentralizado, deveria ser adotado na Síria toda e até além. Mas esse ainda é um trabalho em andamento. Em algumas assembleias que assisti, mulheres e homens se sentam separadamente, um marco da jornada a partir das práticas tradicionais que essa revolução ainda está resolvendo.

Mas a revolução tem sofrido ataques consideráveis. A Turquia se opõe a Rojava e impede que suprimentos, comércio e ajuda humanitária cruzem a fronteira da região. Hoje, as forças turcas estão atacando o predominantemente curdo Forças Democráticas Sírias (SDF), associados ao YPG/YPJ e milícias árabes no fronte em comum contra o ISIS. O SDF tem sido o mais eficiente em lutar contra o ISIS e fez os extremistas do grupo recuarem centenas de quilômetros de território, ao custo de milhares de vidas. Agora, o SDF — liderado por uma comandante, Rojda Felat — começou um ataque à "capital" do ISIS, Raqqa. O SDF atualmente conta com apoio militar dos EUA e aliados, principalmente no suporte aéreo mas também com forças especiais em solo.

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Sendo assim, EUA e outros governo ocidentais estão envolvidos na grotesca contradição que permite que a Turquia, "parceira" da OTAN, ataque o SDF — seu aliado mais importante na luta contra o ISIS — enquanto ainda proclamam estar totalmente comprometidos em derrotar o ISIS. Graças à ausência quase total de cobertura pela imprensa, esse absurdo não gera polêmica nas capitais ocidentais. Os curdos temem, com razão, que quando Raqqa cair, os EUA vão abandonar os curdos às agressões turcas. E de fato, com ataques turcos contra o SDF se intensificando num cantão do norte da Síria chamado Afrin, alguns acham que essa traição já começou.

Ainda assim, as hipócritas manobras geopolíticas internacionais não devem obscurecer a importância da revolução democrática de Rojava. Graças a táticas horríveis, o ISIS atrai mais atenção, mas o fato é que Rojava carrega uma mensagem política mais importante para aqueles que se importam com a democracia. Rojava oferece uma alternativa e um exemplo prático onde as pessoas estão no comando, e isso funciona. Em vez de replicar os desastrosos governos centralizados no Iraque e na Síria de Assad, as instituições de autogoverno de Rojava estão propondo seu modelo para a Síria toda quando a ditadura de Assad terminar – Rojava até se renomeou como Federação Democrática do Norte da Síria para enfatizar seu caráter multiétnico e aceitação das fronteiras existentes da Síria, outra divergência da visão preguiçosa ocidental de que "os curdos" querem seu próprio estado separado.

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Mas graças a hostilidades da Turquia, representantes da Federação Democrática são excluídos dos diálogos da ONU sobre o futuro da Síria — uma injustiça a que EUA, Reino Unido e outros países fazem vista grossa. A ONU continua fingindo que "os curdos" são representados por um partido que na verdade é uma proxy do KRG do Iraque. Diz muita coisa que os oficiais internacionais — a maioria homens que nunca visitaram a área — ainda prefiram os estereótipos étnicos datados do que o caráter mais cosmopolita e feminista desse projeto.

Enquanto isso, o modelo de Rojava não é menos relevante para o ocidente, onde pouca gente pode dizer que a democracia vai muito bem, com desilusão e extremismo reacionário — e mesmo hostilidade aberta contra mulheres (expressada não apenas por Donald Trump) — estão em ascensão. E dezenas de ocidentais, como a Brigada Internacional de Republicanos da Espanha, se juntaram às fileiras do YPG e YPJ. Muitos perderam a vida, incluindo recentemente um ativista do Occupy Wall Street de Nova York. Alguns desses homens e mulheres são perseguidos quando voltam para casa, punidos por seu comprometimento com democracia e igualdade. Todos sofrem com a representação equivocada de sua luta em boa parte da imprensa internacional. Na cobertura da morte do ativista do Occupy, o Washington Post descreveu a revolução de Rojava como "pseudomarxista", quando é o exato oposto disso. Nessa democracia, não há lugar para o Estado, nenhum. As pessoas no governo funciona como a antítese do Estado comunista.

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O autor, Carne Ross, e Viyan, a quem ele dedicou seu documentário.

Milhares de combatentes do YPG e YPJ morreram por essa causa. Durante minha visita, conheci Viyan, uma jovem soldado do YPJ, na linha de frente da batalha — uma grande faixa de cascalho que se estende até o horizonte numa planície na Síria. A posição do ISIS ficava a algumas centenas de metros à frente. Com um rifle pendurado no ombro, ela me disse que nunca antes em seu país, ou na região, as mulheres foram iguais aos homens. Sem igualdade para as mulheres, não pode haver justiça na sociedade. Ela estava preparada para morrer defendendo essa igualdade. Tragicamente, Viyan morreu alguns meses depois da nossa entrevista, lutando contra o ISIS na cidade de Al-Shaddadi.

Nosso filme sobre a busca por uma democracia mais eficaz é dedicado a ela.

O documentário de Carne Ross, Accidental Anachist , está disponível no iPlayer . Esta matéria apresenta as visões pessoais dele.

Tradução: Marina Schnoor

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