A inovadora lei de direitos digitais no Brasil que busca proteger a privacidade de seus cidadãos e preservar leis de neutralidade na rede, o Marco Civil da Internet, está prestes a ganhar reforços em sua legislação. Agora, a Motion Picture Association, braço internacional de lobby da Motion Picture Association of America, está tentando se aproveitar dela para reprimir a pirataria.
Em uma contribuição enviada em março ao ministro da Justiça brasileiro, a MPA pediu que os legisladores alterem a linguagem no marco civil de forma a “[conter] casos de exceção à regra geral da neutralidade na rede” de forma a permitir que o governo brasileiro identifique que sites estão sendo usados no download de conteúdo ilegal e então solicitar aos provedores de internet que os bloqueiem.
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De acordo com Dennys Antonialli, diretor-executivo do grupo de pesquisa em tecnologia e direito brasileiro InternetLab, a MPA está tentando forçar a entrada da lei de direitos autorais em uma estrutura legal criada para proteger os dados dos cidadãos e manter a internet como um local justo.
“O artigo 19 [do Marco Civil] diz especificamente que violações de direitos autorais deverão ser regidas por legislação específica”, disse-me Antonialli. “Se a MPA conseguir com que seja feita esta exceção na lei, o assunto será regulado antes de haver qualquer discussão no congresso, o que é altamente questionável.”
O governo brasileiro está se preparando para reformar sua lei de direitos autorais, disse Antonialli, um processo que a MPA contornaria ao incluir a regulamentação dentro do Marco Civil.
O Marco Civil da Internet é uma obra de anos que só foi implementada em 2014. Durante seus estágios iniciais, a lei foi saudada como uma guia para o direito digital, mesmo não sendo perfeita, por conta de sua abordagem progressista quanto à privacidade digital, por grupos envolvidos com direito digital como o Access e a Electronic Frontier Foundation. Tim Berners-Lee – o criador da internet – também aplaudiu seu compromisso com a neutralidade na rede durante sua cerimônia no Brasil.
O esboço do Marco Civil era radical; ele até mesmo propunha que o Brasil forçasse empresas dentro de suas fronteiras a construírem datacenters locais e armazenassem informações lá, efetivamente isolando-se dos olhos observadores da NSA. Desde então, muito da rigidez do Marco Civil foi retirado, e o país se viu cercado de lobistas de todos os lados cujo objetivo é tornar a lei mais favorável aos seus interesses.
“Este é o mesmo argumento que criou uma internet ‘murada’ na China”
Vale notar aqui que a MPA é a extensão internacional da Motion Picture Association of America, e que há pouco os EUA implementaram leis de neutralidade na rede que proíbem provedores de internet de bloquearem acesso a conteúdo. No Brasil, a MPA ainda tem a chance de criar uma legislação mais favorável a ela.
De acordo com a contribuição da MPA, os poderes de remoção de conteúdo do país sob o Marco Civil atualmente só valem para dados armazenados no país. Se um filme pirateado estivesse armazenado em servidores suecos, por exemplo, o conteúdo então provavelmente seria protegido pelo Marco Civil. Para remediar a situação, a MPA quer que o governo brasileiro permita que provedores de internet impeçam usuários de acessarem sites hospedados internacionalmente.
“Em casos como este, os tribunais brasileiros só teriam uma opção: ordenar aos provedores do país que implementassem medidas técnicas para bloquear o tráfego da internet quando for estabelecido que tais serviços são ilegais”, diz o texto da MPA. “Sem uma cláusula clara para estas técnicas, em meio às regulações, a versão atual do Marco Civil priva os tribunais desta possibilidade, impossibilitando-os de tratarem tais ameaças.”
Jeremy Malcom, analista sênior de políticas globais da Electronic Frontier Foundation, acredita que este tipo de legislação abriria portas para uma censura da internet semelhante à de países como a China.
“A MPA argumenta com base na falsa premissa de que qualquer conteúdo que viole leis nacionais tem que ser bloqueado no nível [do provedor de serviço]”, disse Malcolm. “Este é o mesmo argumento que criou uma internet ‘murada’ na China, que fez com plataformas como o Twitter e o Facebook fossem bloqueadas de tempos e tempos, incluindo Paquistão e Turquia, só para citar dois países em que isso aconteceu.”
Se a proposta for bem-sucedida, não seria a primeira vez que a indústria de entretenimento conseguiria alterar o Marco Civil em benefício próprio. Em 2012, os legisladores brasileiros alteraram o texto da lei para eximir material protegido sob direitos autorais de proteções contra censura online após pressão da Motion Picture Association of America e demais grupos ligados à indústria de entretenimento.
Claramente, a MPA crê que não foi o bastante. E caso os legisladores brasileiros entrem na onda da MPA agora, isso significaria que interesses norte-americanos teriam tomado para si uma das legislações mais progressistas no campo da internet no mundo para protegerem seus direitos autorais.
Tradução: Thiago “Índio” Silva