A batalha diária de Diogo Silva, o Pantera Negra do taekwondo

Foto: Guilherme Santana/ VICE

No dia 15 de julho de 2007, o taekwondo do Brasil faturou o primeiro ouro nos Jogos Pan-Americanos. Quem ostentava no peito a medalha era o caiçara de São Sebastião, Diogo Silva. No pódio, o atleta de dreads aparecia como uma figura de resistência num esporte criado a partir de uma arte militar coreana e com severas restrições de conduta. Anos antes, em 2004, depois de perder a chance da medalha de bronze nas Olímpiadas de Atenas, o lutador cerrou os punhos e com uma luva preta na mão direita reproduziu o gesto que Tommie Smith e John Carlos imortalizaram em 1968. “Por mais que a gente batalhe, nosso sacrifício não é recompensado”, disse, à época. “Foi meu protesto para que o Brasil veja a dificuldade que o esporte amador enfrenta. A gente merecia mais apoio.”

Onze anos depois, a situação do taekwondo — e do esporte — no país pouco mudou. Diogo Silva, porém, está com o discurso mais afiado. No posto de maior nome brasileiro da modalidade e de uma voz ativa entre seus colegas, o lutador de 33 anos projeta suas últimas competições profissionais para 2016 e, ao mesmo tempo, se prepara para seguir suas batalhas fora dos tatames com o rap e os estudos. Formado em gestão esportiva e de volta ao curso de educação física — que iniciou há dez anos — e com um coletivo de rap, o Senzala Hi-Tech, o lutador tem planos para atuar nos bastidores ajudando na divulgação e amadurecimento do taekwondo no Brasil. Para isso, pretende estudar na gringa, entender como é feita a gestão esportiva do boxe e do MMA e ainda planeja trabalhar com a prevenção da obesidade. Diogo Silva talvez seja o headshot do taekwondo no Brasil e ele sabe disso. Acompanhamos um de seus últimos treinos de 2015 e trocamos uma ideia sobre Bruce Lee, Van Damme, luta, aposentadoria, dor, gestão, tretas, rap, racismo e muito mais. Saca aí:

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VICE SPORTS: Como foi sua primeira experiência com as artes marciais? Diogo Silva: Eu era fã de filmes de luta e apaixonado por Bruce Lee e Van Damme e queria fazer aquilo, mas não sabia nome, não sabia o que era o Kung Fu, não tinha noção nenhuma. Um dia comecei a procurar na cidade e achamos um clube que tinha três artes marciais: uma era judô, a outra era karatê — não me interessei por nenhuma das duas — aí quando vi o taekwondo falei: ‘é isso’.

Com que idade você começou?
Comecei com 7 anos de idade, em 1989, e nessa época, até mesmo em São Paulo, tinham pouquíssimas academias.

E o taekwondo foi o escolhido por que se parecia mais com os golpes do Bruce Lee?
O Bruce Lee e o Van Damme que colocaram essa fantasia na minha cabeça e eu queria fazer igual. Meu objetivo era conseguir imitá-los, então a busca durante o treino, mesmo criança, já era tão grande pra tentar fazer igual que fui criando perfeição, fui sempre querendo aprender mais.

Quando foi que você percebeu que podia levar isso a sério?
Minha mãe saiu de São Sebastião e foi pra Campinas estudar educação física na PUC. Lá ela começou a perguntar se alguém conhecia um professor e nos indicaram o treinador da época, que era o Mestre Tilico. Ele já fazia parte da seleção paulista.

Como foi essa mudança de treinador?
Eu tinha 11 anos quando entrei na academia nova. Quando ele me viu, percebeu que eu tinha uma aptidão grande pra performance, mas que ele tinha que corrigir muito base e a coisa da disciplina e da regra. Eu fui criado na rua, eu era sobrevivente de rua, essa coisa de desafiar, independente de quem era, já era da minha natureza. Na academia era diferente, tinha hierarquia, tem que respeitar a faixa, tem que respeitar o professor.

E quanto tempo você levou pra se adaptar a essas regras?
Ah, levei um tempo.

A maioria das artes marciais tem essa doutrina mais rígida, né? Uma hierarquia bem definida e tal.
Sim, e você precisa dar muita sorte porque você precisa de um professor muito bem orientado que consiga trazer a parte filosófica. Ele tem que te explicar desde o significado de não pisar de tênis no tatame até o porquê da roupa, o porquê de nos cumprimentarmos nos curvando. Você começa a estudar história, geografia. A academia é uma escola. Se você tem um bom professor, ele te ensina fisiologia, anatomia, história, outras línguas. O taekwondo é um esporte da Coreia do Sul, então nossa contagem é toda em coreano. E o Tilico já tinha um lado que puxava pra ioga. Ele me ensinou o controle da respiração, o controle da ansiedade, me ensinou como preparar meu corpo pra luta. Dos 11 aos 22 anos fiquei com esse treinador.

E quando você começou a competir?
Com 13 anos. Era do infantil. Com 14 já fui pro junior e com 16 já tava na seleção junior. Em 98 fui para o mundial junior e foi a primeira vez que saí do Brasil.

Em que lugar você ficou nessa competição?
Terceiro lugar. Daí eu já coloquei pra mim que isso ia ser a minha profissão.

Que ano rolou isso?
Isso foi em 98 e o taekwondo virou esporte olímpico em 2000. Quando decidi isso não sabia como ia trabalhar. Não tinha informação, não passava na TV, a gente não tinha parâmetro de outros lutadores pelo mundo, jornal não falava sobre isso, internet ainda era muito escassa. Nós não tínhamos informações. A gente só conseguia ver quando ia até o ginásio.


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Você era meio precoce, né?
Sim. Quando eu era infantil já participava do junior. Quando era junior participava do adulto. A minha entrada na seleção também foi precoce, com 19 anos entrei como titular. Isso foi em 2001.

Aí o taekwondo já era olímpico.
E foi a primeira vez que vi uma luta na televisão. E quando vi, pensei: ‘no próximo eu quero estar lá. É lá que eu tenho que estar’. Aí trabalhei minha carreira toda pra 2004, para a minha primeira Olímpiada.

Qual é a treta de sobreviver de um esporte sem popularidade?
É um desafio constante. Quando eu tava iniciando, ainda no junior, eu me graduei faixa preta com 14 anos. Dali pra frente minha família não tinha mais condições de me manter competindo porque os torneios eram em várias cidades diferentes e tinham um custo elevado. A primeira forma que pensei de sobreviver do esporte foi dar aula. A maioria dos atletas começam assim.

Então com 14 anos você já trampava para se sustentar?
Sim, com 14 pra 15 anos. Com esse dinheiro que eu ganhava, pagava as competições. E cada competição que você ganha, cada nível que você alcança vai ficando mais caro. Quando comecei a sair do Brasil e deixei de ser um atleta nacional para virar internacional, esses parâmetros ficaram imensos, gigantescos. A gente já tava cotando as coisas em dólar.

E como sobreviver nisso?
A única forma que pensei para sobreviver nesse esporte era sendo o melhor. Não me ensinaram e eu não sabia que tinham outros caminhos, que tinha edital, patrocínio. Isso era muito distante da nossa realidade. A única coisa que eu poderia fazer era ganhar títulos e esses títulos me dariam um retorno de imagem.

E o retorno financeiro dos títulos?
O primeiro torneio rentável do taekwondo foi criado em 2013, que é uma competição chamada grand prix, que só participam os 30 melhores do mundo. É parecido com o grand slam do judô. É um torneio televisionado e é paga uma quantia mínima, tipo uns 500 dólares, mil dólares. De 1970 – quando o taekwondo veio pro Brasil – até hoje, essa é a primeira geração que tá pegando um torneio rentável.

Como foi o apoio da sua família?
Isso foi um divisor de águas pra mim. Muitos atletas têm uma barreira grande dentro de casa. Nunca escutei o que a maioria deles escuta. “Isso não dá dinheiro”, “como é que você vai viver disso?”, “larga isso”. Hoje as famílias já conseguem enxergar isso de uma forma melhor, mas em 1990 era praticamente impossível. A arte marcial ainda tava muito relacionada a briga. Para os pais e para os avós, quem tava fazendo arte marcial tava brigando. A minha família já via o esporte como a única ferramenta de inclusão social, a única possibilidade de eu ter uma profissão. Eles não conseguiam me ver advogado, engenheiro. Minha família nunca conversou sobre isso comigo. A minha iniciação foi tão cedo e eu estava tão adaptado ao esporte que ninguém nunca cogitou eu ter outra profissão.

E como a faculdade de educação física da sua mãe te ajudou?
Ela já me ensinava os princípios da educação física. Eu tive orientação alimentar em casa. Não tinha refrigerante, não tinha comida gordurosa. Meu café da manhã, almoço e jantar já era de atleta. Eu não sabia, mas minha mãe já trouxe isso de seus conhecimentos. Ela tentou ser atleta de aeróbica, uma mistura de dança com ginástica olímpica. Ela era uma mãe forte. Eu via ela fazendo treino de musculação, via como funcionava, então fui criando uma memória de o que é treino. Quando comecei a treinar, eu já tinha um parâmetro.

E como foi esse período acadêmico da sua mãe?
Eu fui uma das crianças criadas dentro da faculdade. Isso já foi uma coisa que me despertou para o lado acadêmico, de ver como fazer esporte sem praticar, mas na teoria.

Você ainda está fazendo faculdade de educação física, né?
Os professores dela foram os meus professores em Campinas. Aí comecei a conhecer um outro lado que é a dificuldade de treinar e estudar. Entrei em 2003, mas já tava classificado para os Panamericanos e tranquei. Estudei seis meses. Aí vem disputa da vaga olímpica e Olimpíadas, é quase um ano e meio sem conseguir estudar. voltei para a faculdade no segundo semestre de 2004, estudei mais seis meses. Aí acabou meu contrato e eu fui pra outro time, outra equipe, outra cidade. A minha vida acadêmica sempre foi assim.


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Você está com 33 anos. Você pensa em se aposentar quando?
Eu vou parar ano que vem, isso já tá definido. Até porque, em questão de motivação pra competições, participei de todos os torneios que sonhei participar e ganhei todos que quis. Só não tenho dois títulos: campeão mundial e medalha olímpica, de resto todos eles eu ganhei. O mundial eu tentei seis vezes e, quanto às Olímpiadas, tentei três e consegui duas. Nas duas cheguei à semifinal.

Você falou que desde pequeno tem grande percepção do seu corpo. Como ele tem reagido ultimamente?
Chega uma hora que o corpo não aguenta mais. Então, quando acabei o ciclo de 2012, o meu corpo não estava aguentando mais. Pra poder estar entre os três do mundo, tive que atingir um ápice do corpo que é muito destrutivo. Chegou uma hora que, se eu continuasse, ia me destruir, ia ter uma lesão muito grave no joelho, tornozelo, coluna e ia viver ser aquele cara mancando pra vida toda.

Você sofreu muitas lesões até aqui?
Tenho quatro fraturas na mão esquerda, fiz cirurgia. Tenho fratura de quadril, fratura no pé. Chegou uma hora que eu não estava mais aguentando sentir dor.

Mas você sente dor pra treinar?
Quando faço um treino recreativo sem pensar em performance, eu não sinto dor, mas a partir do momento em que eu começo a treinar performance, forçando, forçando, forçando, aí não aguento. De 2012 pra 2016 tive que mudar a forma de treinar porque a resposta do meu corpo já era diferente. O ano que vem faço os meus últimos torneios nacionais e internacionais.

Quais serão essas competições?
Fora do Brasil, a gente tem torneios que fazem ponto pro ranking mundial. São torneios abertos. Ano que vem, tenho o campeonato mundial militar, eu sou 3º Sargento da Marinha. Vou fazer a minha base de preparação para esse mundial. Eu quero encerrar a minha carreira com esse título.

Você exerce alguma função militar?
A minha função na marinha é só ser atleta. Não tenho outra função.

Quando você começa a pegar mais pesado com os treinos?
A gente começa a temporada em janeiro começando a mexer o corpo, com fundamentos básicos de musculação e treinos técnicos. Em fevereiro a gente começa apertar um pouco mais e depois fica bem direcionado.


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Qual é a grande dificuldade do taekwondo hoje no Brasil?
Acho que falta liderança no taekwondo do Brasil.

Quais os problemas da gestão do taekwondo no país?
A confederação brasileira de taekwondo veio de uma associação chamada Associação Brasileira de Taekwondo e foi criada em 1970. Ela virou confederação em 1980. De 1980 até 2015 nós nunca tivemos uma gestão empresarial, a gente nunca falou em termos empresariais, contratação, equipe de marketing, equipe profissional. Essa conversa não existe lá dentro e lá é o topo da cadeia. Se o topo da cadeia tá todo bagunçado, tudo que tá embaixo fica bagunçado. Então os nossos torneios não são bem organizados. A gente não consegue vitrine porque os caras não pagam as cotas de televisão para os torneios serem transmitidos, a gente não consegue patrocínio porque a confederação tem um monte de processos. As empresas não entram. A única mudança que a gente precisa é no topo da cadeia.

Essa desorganização, acredito eu, acaba exigindo muito mais dos atletas.
Sim, os atletas que conseguiram se destacar no Brasil praticamente são todos empresários. Eles têm cabeça de empresário, eles aprenderam que precisavam cuidar das próprias carreiras.

Você é um deles?
Sim, nós somos a primeira geração a pensar assim. A gente transformou o taekwondo num mercado empresarial. Antigamente a gente chamava quem dá aula de professor, mestre. A gente mudou essa concepção. Hoje tenho o meu treinador e o meu preparador físico. A base de treinamento do taekwondo era a base do futebol e do atletismo. Não tinha preparador físico específico pra lutadores.

Porra, mas aí fica difícil. A luta exige outras respostas do seu corpo.
Exatamente. A gente tinha atletas que conseguiam correr 10 quilômetros, mas que não conseguiam chutar 20 minutos. Aí começamos a bater muito nessa tecla de que precisávamos de profissionais do nosso ramo. Fomos o primeiro grupo a falar que precisávamos ter empresas, contador. Fomos descobrindo isso com os tombos, mas hoje temos uma cabeça que conseguimos conversar com o empresário e falamos a mesma língua.

E como fazer isso?
Fui estudar gestão esportiva, me formei. Agora estou voltando a estudar educação física. Eu precisava tanto falar a língua deles que fui estudar isso primeiro. A nossa geração tem a cabeça muito boa. Se essa geração conseguir subir no topo da cadeia, de 2020 pra frente o taekwondo vai ter a cabeça mais empresarial.

Quanto tempo um atleta consegue competir em alto nível no taekwondo?
Se for para uma performance olímpica no máximo até 34 anos.

Mas quando é o auge de técnica, de amadurecimento?
Isso depende muito da maturação do organismo da pessoa. Depende também do país em que ele vive, da família que ele tem e como o corpo dele desenvolve. A maioria dos atletas vão para os primeiros jogos olímpicos com 19 a 23 anos, mas nem sempre é onde eles vão ganhar. Mas o segundo é onde ele chega, que é de 23 a 27 anos. É aí que ele começa a chegar na alta performance. Dependendo de como ele trata o corpo, se ele come bem, dorme bem, se cuida, essa maturação dele vai de 30 a 32 anos, mas a partir daí é impossível evitar a queda. Essa queda vai rolar, ela pode ser brusca ou gradual, depende de como ele conduziu o corpo até ali.


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Você falou muito da sua mãe na sua formação, mas e o seu pai?
Eu não fui criado com o meu pai desde pequeno.

Ele não teve grandes influências na suas escolhas então.
Não, a última vez que eu tinha visto ele foi com 7 anos. Ele não fez parte da minha construção. É pai biológico porque eu não tenho afinidade nenhuma. Não conheço, não sei hábitos, não sei nada. Os meus pais foram os meus treinadores, os caras que me educaram mesmo.


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Tem uma coisa que a gente tenta abordar em matérias, principalmente com atletas negros, que é o racismo. Você já passou por alguma situação racista no esporte?
O racismo no Brasil é cultural. Então, desde pequeno, se você escuta esses tipos de ofensas, chega um momento em que aquilo se torna cultural. É como chamar qualquer criança que tem sobrepeso de baleia, isso vira cultural. Já não é mais ofensa, faz parte. Quando o Brasil começou a falar de racismo e de injúria racial, o país começou a ter concepção do que era. Na minha infância e adolescência, muitas coisas estavam nessa cultura. Aquilo você sabia que era mais ofensivo e outras coisas eram mais sutis, eram um apelido, uma brincadeira. Você tem que lidar com isso diariamente.

E onde você sentia isso com mais frequência?
Como comecei a dar aula muito novo, com 14 anos, eu já tinha uma responsabilidade muito grande. Era uma distância muito grande. Demorava uma hora no ônibus para andar uma boa parte até chegar ao clube. A minha aula acabava nove da noite e eu tinha que pegar o ônibus pra voltar pra casa. Era um lugar escuro e eu tava sentado esperando o ônibus. Os carros iam passando, me vendo e levantando os vidros. Isso acontecia praticamente todo dia. No ônibus, na volta pra casa, às vezes tinha blitz policial. A polícia entrava no ônibus e sempre me escolhia. Me tirava do ônibus, olhava a minha mochila e me liberava. Se tem 30 pessoas no ônibus, os caras escolhiam quatro e os quatro eram praticamente iguais, ou estavam de boné, de bombojaco ou eram negros.

E como eram essas abordagens policiais?
Cresci na periferia do interior de São Paulo e as abordagens sempre foram muito violentas. A primeira vez que vi uma arma apontada pra mim foi um policial, não foi um bandido. Você tem que criar formas de se defender. Algumas pessoas acharam que a melhor forma era ser violento. Outras pessoas acharam que a melhor forma era fortalecer o crime porque podia combater isso. A minha forma era o esporte. A única forma que tenho de combater o racismo é o esporte. É a única coisa que vai me dar uma vitrine, uma visibilidade na qual vou poder falar sobre isso.

E como você aplicou isso no esporte?
Isso dava muita raiva, principalmente quando você está fazendo tudo certo, te dá uma angústia muito grande. Eu transformava essa raiva, essa energia, em treino. Isso me impulsionava. Era um combustível que eu tinha.

Era um puta combustível.
Exatamente. O meu treinador tinha que saber conduzir porque ele sabia que às vezes eu chegava transtornado com essas coisas. Era nítido porque o corpo fala e meu corpo reagia com aquela situação.

E depois que você começou a ganhar visibilidade e a aparecer na TV, isso mudou?
Não muito. Você fica conhecido, mas não como um jogador de futebol. Vindo pra cá há uns três meses, eu estava dirigindo, chegando aqui no treino às nove horas da manhã. Parei no farol, passaram dois policiais de moto, foram até a frente do carro, um deles voltou, ficou olhando pra mim, pra dentro do carro, e perguntou: ‘Você tem passagem?’. Eu já sabia o que aquilo significava. Então fui criando métodos para lidar com essa situação. Se você reage com o desprezo que está sendo aquele momento, tudo vai retornar pra você. Ele vai te prender, vai te machucar e eu sempre pensei que a minha vida é muito melhor que a desse cara. Ele é inferior.

E como você aprendeu a lidar com o racismo?
Acho que foram algumas etapas. Quando eu tinha 14, 15 anos eu não tinha ideia do que era isso. O que me fez discutir o assunto foi o rap. Eu já gostava, sempre gostei. Pelo rap comecei a participar de rodas de discussão sobre o racismo, pra falar sobre movimentos que já existiam, ali que eu conheci o Black Panthers (movimento de resistência negra dos Estados Unidos nos anos 1960). Foi a primeira vez que eu ouvi falar que isso existiu [Diogo no podio de seu ouro no Pan Americano do Rio, em 2007, repetiu a saudação black power feita pelos atletistas Tommie Smith e John Carlos nas Olímpiadas de 1968, no México]. Quando comecei a estudar que uma das vitrines desse movimento foram os jogos olímpicos. Isso na minha cabeça foi um turbilhão, cara. Era algo que ninguém me falou na escola, que meu pai e minha mãe não me contaram.

Por que não te falaram?
Eu sempre me questionei disso. Pensava muito. ‘Será que só eu tô fazendo isso?’. Não aparecia o João do Pulo como comentarista da Globo, não tinha nenhum negro no esporte que não fosse o futebol.

E tem grandes atletas negros que são omissos com relação a isso.
Totalmente. Mas é assim: aquilo que você se identifica é aquilo que você conhece. Muitos negros não conseguiam se enxergar. Por que alisa o cabelo? Porque o cabelo black não faz parte. Pô, se todo mundo fala que o bonito é o cabelo alisado e eu quero ser bonito, tenho que alisar. Vi minha mãe por duas vezes ficar careca de tanto usar química até que um dia eu falei pra ela que não dava pra viver daquele jeito. É uma constante frustração.

Como você foi se reconhecendo?
A coisa do cabelo estava relacionada a uma identidade. E a identidade que eles queriam que a gente tivesse eu não me identificava. Essas rodas de discussões me ensinaram muito porque eles me davam artigo pra ler, traziam outras pessoas pra discutir. A sorte que eu tive também é que, no bairro em que eu morava, tinham alguns centros culturais que desenvolviam o maracatu e o jongo. Quando conheci isso, comecei a ter uma identidade muito melhor e maior. Eu via um monte de gente parecida comigo, falando a mesma língua que eu falava e orgulhosa disso. Vários pais e mães nunca discutiram o fato de entrarem pelo elevador de serviço. As primeiras pessoas a discutir são novas. Os pais criavam os filhos pra não discutir, não debater, pra não perder o emprego.

Foto: Guilherme Santana/VICE

Seu cabelo, inclusive, acabou sendo uma resistência no esporte, certo?
Eu sempre fui o cara que desafiava. O taekwondo veio da Coreia do Sul com base militar, então tinhas os padrões: cabelo curto e barba feita. Se você olhasse os atletas na década de 90 eram todos com a mesma cara. A minha geração copiou isso e eu fui o primeiro que não quis e meu treinador foi muito carrasco com essa coisa. Ele falou: ‘Pra treinar aqui tem que ter cabelo curto’. Aí eu perguntava o porquê e ele não tinha essa resposta. Aí falava que o cabelo ia me atrapalhar, ia cair no meu olho, me deixar mais lento. Aí eu tinha que provar pra ele que não ia me atrapalhar e eu não ia ficar mais lento. Conclusão: eu tinha que treinar mais. Acabava o treino eu ficava mais 30 minutos, antes de começar o treino eu chegava 30 minutos adiantado.

Mas como você foi mantendo o visual que queria?
Cada vez que o cabelo ia ficando maior, incomodava mais. Primeiro que abria precedente para outros também fazerem. Sempre fui o mau exemplo porque eu despertava coisas que eles tinham proibido pra todo mundo. Chegou uma hora que eles permitiram. Eu ganhava título, comecei a ter expressão no Brasil e nada daquilo me atrapalhava. Só que com isso apareceram vários cabeludos. Já fui pra campeonato de black power, de trança. Eles sempre chegaram pra mim e diziam que queriam ter o cabelo daquele jeito e, quando eu apareci na TV, abriu uma brecha.

Foi a falha na Matrix.
Pois é. Eu tinha acabado de ganhar o título que nenhum brasileiro tinha ganhado e tava com o cabelo que todo mundo proibiu. Eles não tinham mais argumentos. Por um lado eu era odiado, mas por outro fui a primeira pessoa a desafiar essas regras. Quando eu tava de dread no Pan já fazia seis anos que eu não cortava o cabelo. Nesses seis anos a luta foi diária.

É curioso isso porque hoje os atletas, principalmente os jogadores de futebol, procuram algo que os destaque. Seja o corte de cabelo, uma tatuagem.
Hoje o mundo do esporte está ligado ao mercado. Você é uma marca. O cabelo do Varejão é uma marca. Hoje o próprio empresário já fala: ‘Deixa o cabelo crescer, faz uma tatuagem’. Isso cria uma identidade, que vira publicidade e comércio. Antigamente era muito a risca, era muito militar.


Foto: Guilherme Santana/VICE

Quantos atletas negros têm aqui onde você treina?
Aqui treinam diariamente o taekwondo, o rugby, o MMA. Fixos são esses três esportes, o restando vem uma ou duas vezes por semana. No taekwondo tem dois num grupo de quase 15 pessoas. No MMA é isso também, num grupo de 10 a 15 tem dois negros. No rugby tem um de 30. No atletismo é o que tem mais.

Mas chega a 50/50?
Não, em nenhum lugar.

Agora e na cozinha, na limpeza?
Aí praticamente 100%.

Esquisito, né?
Chega um determinado momento que você acha que não tem tantos negros, mas isso é impossível. Se você tem 200 milhões de brasileiros e a probabilidade é de 50 a 60% de negros e não estamos nos cargos de chefia. Tem alguma coisa estranha nisso. Aí você começa a estudar a história do Brasil, o comércio, até a política. Hoje você tem dois, três. Quando saiu o Joaquim Barbosa foi que perceberam que tinha um juiz. A gente ainda tá muito pra trás, muito, muito, muito.

E quando foi que você deixou de ser ouvinte de rap pra ser MC também?
Eu fazia parte dessas rodas de amigos que faziam o repente, o freestyle que começou como uma brincadeira. Na adolescência, tive o meu primeiro grupo com quatro amigos, mas sem futuro nenhum. Cada um fazia uma coisa diferente e não era o foco. O esporte me distanciou. Quando o Brasil ganhou a vaga dos Jogos Olímpicos de 2016, pensei em criar músicas para o esporte. Vamos fazer rap para o esporte. Uma amiga me apresentou o Sombra em 2006. Quando me mudei pra São Paulo em 2011, começamos e se ver mais. Aí eu propus a ideia pra ele e foi tudo se criando. O Ajamu veio pelo Sombra, o Junião e o Minari vieram por mim. O Da Lua morava perto do estúdio e colou também.

E qual é a proposta do Senzala Hi Tech?
A gente sempre pensou na ideia de coletivo em que exercemos outras funções. Eu puxo pro lado do esporte, o pessoal da música pra produção, os percussionistas ensinam tambpres regionais e no resgate dessas culturas e o Junião na arte visual. Nós somos quatro ferramentas que colocamos dentro da música. O resultado disso tudo é o nosso primeiro EP, lançado no dia 20 de novembro, e soltaremos o clipe em março do ano que vem. Nós também já aprovamos um projeto no Proac com a contrapartida do esporte e dos tambores regionais.

(Da esq. para dir.)Junião, Minari, Sombra e Diogo, o Senzala Hi-Tech. Foto: Bob Donask/Divulgação

E até onde você quer chegar com a música?
O meu esporte não é popular, eu me comunico com apenas uma pequena parcela do Brasil, mas o rap leva isso pra qualquer casa que tenha um rádio ou uma TV. Pensando em comunicação, a música é mais viável do que o esporte. Eu entro na casa das pessoas sem resistência. Muitas vezes em que eu vou falar de esporte tem resistência pela falta de conhecimento ou por não ter uma bola.

O MMA não mudou um pouco isso?
Sim, mas ela ainda é muito recente. O MMA ajuda os lutadores muito porque é uma vitrine. Saiu a imagem de briga que era uma imagem que os pitiboys passaram na década de 90. Eles destruíram a arte marcial porque nenhum cara queria patrocinar isso. Era sempre relacionado à violência, à briga. As escolas não abriam espaço, os clubes não abriam espaço. Sempre foi esporte de gueto, de periferia. Quem quer viver tomando porrada?

O que mudou nas artes marciais recentemente?
Antes não tinham profissionais qualificados, então a cabeça dos caras eram ruins. Ensinavam besteira para os alunos. Eles achavam que a força, a brutalidade e a violência eram o caminho. Até a gente conseguir colocar a ciência, o conhecimento do corpo, falar da educação física como conhecimento e colocar o esporte como entretenimento levou anos. Estamos falando isso há apenas cinco anos, seis anos. O Brasil já era sede das Olímpiadas, mas não fazia ideia de como comercializar Olimpíadas. O país está começando a entender isso há apenas quatro anos. Até porque não tem gestores. Você tem economistas na economia e administradores na administração, mas você não tem gestores esportivos na gestão esportiva.

E quando você se aposentar esse pode ser o seu caminho?
Eu acredito que sim. Vou utilizar todo o conhecinento da gestão esportiva, pretendo ir para os Estados Unidos e estudar a parte de marketing e publicidade principalmente no boxe e no MMA e trazer esse conhecimento. E vou seguir pelo outro lado, o cuidado com o corpo. O Brasil hoje, se eu não me engano, é o quarto país com alto índice de obesidade no mundo. Isso é muita coisa. E é um país em que eu vi os meus avós magrinhos, os meus tios magrinhos. Agora a maioria das crianças da minha família está com sobrepeso. São crianças de cinco anos que fazem dieta. Isso há 20 anos não existia.