A cidade brasileira onde a herança dos confederados norte-americanos ainda vive

Num dia de primavera do ano passado, perto de um antigo cemitério rural no sudeste do Brasil, um cara negro chamado Marcelo Gomes segurava as pontas de uma bandeira confederada norte-americana para uma foto de celular. Depois da foto, Gomes disse que não via problema em prestar homenagem à história dos Estados Confederados da América. “A cultura norte-americana é uma cultura linda”, ele disse. Alguns de seus amigos tinham sangue confederado.

Gomes e mais dois mil brasileiros estavam festa anual da Fraternidade Descendência Americana, a irmandade de descendentes de confederados no Brasil, num terreno próximo à cidade de Americana, colonizada por desertores do sul dos EUA 150 anos atrás. O cemitério geralmente fica vazio, fora o zelador e poucos devotos atraídos por sua capela de tijolos. Mas na manhã de abril da festa, um sistema de som público tocando a canção de batalha confederada “Stonewall Jackson’s Way” interrompia o silêncio do cemitério. Brasileiros de chapéu “ten-gallon” e jaquetas de couro se cumprimentavam.

Videos by VICE

Por vários quilômetros ao redor do cemitério, o sol batia nos campos de cana-de-açúcar, plantados por milhares de confederados que rejeitaram a Reconstituição e fugiram dos EUA depois da Guerra Civil – um exílio voluntário que a história norte-americana quase apagou completamente. Essa diáspora espalhada tem se reunido anualmente há 25 anos. A festa que eles realizam, com fundos do governo local, é uma reunião de família dos confederados, um dos últimos enclaves restantes dos filhos do sul não reconstruído.

As pessoas passavam por uma bandeira dos rebeldes com a máxima sulista: Herança, Não Ódio; fazendo fila numa barraquinha para trocar seus reais pela moeda da festa, notas impressas confederadas de US$ 1. (A taxa de câmbio era de 1:1 – a economia sulista norte-americana aparentemente sobreviveu.) Crianças corriam para a cama elástica e o pula-pula inflável. Os mais velhos se protegiam nas sombras de tendas brancas. Logo, a fila do frango frito ficou quase longa demais para tentar.

Sob uma das tendas, fiquei beliscando o frango frito e observando uma garota loira manobrar um enorme vestido com a bandeira confederada para sentar numa cadeira. Fiquei imaginando o que ela achava do símbolo. Ela se apresentou como Beatrice Stopa, uma repórter da Glamour Brasil. Sua avó, Rose May Dodson, comanda a fraternidade confederada. Ela disse que dançava na festa desde criança.

Perguntei se ela sabia que havia uma ligação entre escravidão e o sul norte-americano. “Nunca ouvi isso antes”, ela disse. Ela não sabia exatamente por que seus ancestrais tinham saído dos EUA. “Sei que eles vieram. Não sei exatamente o porquê”, ela disse. “É por causa do racismo?” Ela sorriu, envergonhada. “Não conta pra mim, vó!”

O Brasil aboliu a escravidão em 1888, mais de duas décadas depois do final da Guerra Civil Americana. Apesar dos esforços progressivos para apagar isso desde então, o país sofre para se livrar da instituição. O governo aprovou legislações fortalecendo a proteção aos trabalhadores, incluindo uma emenda constitucional de 1940 proibindo empregadores de submeter funcionários a “condições análogas à escravidão”. Mas enquanto o país se desesperava para se modernizar no começo do século 20, proprietários rurais passaram a coagir empregados assalariados e mantê-los em cativeiro. Recentemente, inspetores do governo encontraram trabalhadores presos por débito em carvoarias de Goiás, trabalhadores haitianos que morreram nos canteiros de obras da Copa do Mundo e imigrantes bolivianos em fábricas clandestinas no centro de São Paulo.

E a cidade construída pelos confederados foi pega nessa rede. Em 22 de janeiro de 2013, o Ministério do Trabalho orquestrou uma batida em Americana. Os funcionários do Ministério encontraram imigrantes bolivianos fabricando roupinhas de bebê sob o teto e supervisão de chefes bolivianos. O Ministério Público fechou a fábrica, e no processo que se seguiu, as condições em que os bolivianos viviam foram consideradas execráveis o suficiente para constituir escravidão.

De todas as pessoas com quem falei no festival de Americana, nenhuma tinha ouvido falar de escravidão em sua cidade.

Quase todo mundo veio para a festa vestido como norte-americano – jeans e botas, camisetas do Johnny Cash e camuflagem. Visitantes se acotovelavam em frente a uma barraca de lembranças sulistas: aventais, colchas, copos comemorativos, um exemplar gasto da Autobiografia de Malcolm X. Uma voz amplificada convidou a multidão a ocupar seus lugares no palco principal – uma laje de concreto com uma bandeira pintada e as palavras XXVI FESTA CONFEDERADA. O prefeito de Santa Bárbara d’Oeste, uma cidade próxima, cumprimentou seus eleitores e deu às boas-vindas aos representantes do estado na audiência. “É a primeira vez que tenho a honra de estar aqui como prefeito”, ele sorriu, se inclinando sobre o microfone enquanto descendentes de saiotes e uniformes confederados caseiros seguravam bandeiras atrás dele. “Mas já estive aqui muitas vezes como espectador, como fã.” As bandeiras de São Paulo, Texas, EUA e dos confederados balançavam languidamente com a brisa. “A imigração norte-americana ajudou a construir nossa região, ajudou a construir Santa Bárbara d’Oeste, ajudou a construir a cidade de Americana”, ele proclamou. “É isso que celebramos hoje.”

Em geral, os milhares de texanos, alabamos e georgianos que navegaram até Cuba, México e Brasil fracassaram. Eles criaram cidades e começaram plantações condenadas em lotes na floresta tropical. Em 1918, seu número tinha diminuído o suficiente para merecer estudo etnográfico, e a American Geographical Society despachou pesquisadores para estudar suas vidas.

Mas não em Americana. Liderada por um coronel do Alabama, seus colonos introduziram o algodão e transformaram a cidade numa potência têxtil. Por gerações seus filhos falaram inglês com sotaque. Hoje a cidade de 200 mil habitantes conta com a maior arquibancada de arena de rodeio da América Latina. A festa é um grande orgulho da cidade.

Caras vestidos de soldados lideraram a multidão no hino nacional: um deles tocou “Taps” desafinadamente no trompete. Nos EUA, reuniões como essa culminam numa encenação de batalha, mas esses confederados oferecem uma festa mais amena, com apresentações de dança encabeçadas por uma celebridade barbuda local, Johnny Voxx, que com seu chapéu preto, óculos escuros, calça de couro com franjas e botas de cowboy parecia mais um herói de western espaguete.

“Isso é quase perfeito… É isso que queremos. Não misture nada político. Eu gosto de negros.” – Philip Logan

Me passando seu cartão de visitas, Voxx disse que tinha pesquisado no Google antes de agendar o show confederado. “Estudei para saber se as pessoas aqui eram racistas ou não”, ele disse. “Mas como eles dizer ‘Herança, não ódio’. Eu não estaria aqui se isso fosse uma festa para celebrar o racismo.” Ele tropeçava no inglês – o pouco que sabia tinha aprendido com música e assistindo Bonanza – e eu fiquei imaginando como seria sua interpretação de música country. Mas quando ele cantou “Cotton Fields”, a multidão vibrou. Sua entonação era perfeita – o homem cantava igual a Hank Williams.

Eu não conseguia parar de mencionar as contradições históricas – para Voxx, para os descendentes, para um grupo local que tinha formado um clube de filmes western semanal. Mas ninguém parecia tão desconfortável quanto eu. “Nosso preconceito é muito pequeno comparado com o de outros povos”, me disse Pedro Artur Caseiro, membro do clube de cinema. Perguntei o que ele mais gostava nos westerns. Ele sorriu, sonhador, estufou o peito e colocou a mão sobre sua espada de madeira. “O bem sempre vence o mal”, ele disse. “É isso que se perdeu hoje, parece que as pessoas não acreditam mais no bem.”

Sulistas de verdade – entusiastas dos confederados – também fizeram a peregrinação. Andando pelo cemitério em seu uniforme, Philip Logan, um ator de encenações da Guerra Civil alto e gorducho de Centreville, Virginia, inspecionava as lápides: Ferguson, Cullen, Pyles. Nascimento: Texas. Morte: Brasil.

Acompanhado da namorada, uma brasileira usando bonnet e sombrinha que ele conheceu na internet, Logan exalou. “Isso é quase perfeito”, ele disse. “É isso que queremos. Não misture nada político. Eu gosto de negros.” Como um membro ativo dos Sons of Confederate Veterans, ele diz que há uma constante exploração de sua herança. “Há muito animosidade”, ele disse. “Aqui, as pessoas veem a bandeira confederada e ninguém se importa. Se eu levantasse uma bandeira russa, ninguém daria a mínima.”

Na entrada da festa, dois seguranças musculosos revistavam as pessoas, verificando braços e pescoços contra quatro folhas xerocadas com 42 símbolos supremacistas em português – a SS, a cruz de ferro, a suástica, KKK. Eles tinham sido instruídos a barrar qualquer um usando esses símbolos. Isso foi um problema nos anos anteriores.

Enquanto a festa ia acabando e os participantes voltavam para o campo onde os carros estavam estacionados, perguntei a Érico Padilha, um não descendente local, o que ele achava da conexão dos confederados com a escravidão. “Não gosto da ideia, comemorar algo sobre o sul, por causa da escravidão. Realmente não gosto”, ele disse. “Mas a festa aqui não tem a ver com política, acho. É algo cultural.”

Os confederados vieram para o Brasil por uma série de razões – seus filhos ainda discutem sobre o porquê. O Brasil estava tentando há anos alcançar o desenvolvimento agrícola dos norte-americanos e europeus, e o imperador Dom Pedro II viu nesses sulistas descontentes uma oportunidade de importar a prosperidade norte-americana. Ele criou agências de informação por todo o Sul dos EUA e ofereceu passagens subsidiadas para qualquer norte-americano interessado em emigrar. Anúncios em jornais oferecendo navios fretados apareciam quase todo dia, assim como editoriais zombando do plano, e os confederados aproveitaram a oportunidade de terras baratas onde construir novas plantações, fantasiando sobre restaurar a economia que eles viam desmoronar nos EUA. O que seria possível porque o Brasil iria permitir que eles continuassem com seus escravos.

Mesmo tendo proibido o tráfico de escravos no meio dos anos 1800, o Brasil demorou a banir a escravidão por completo. Os sulistas não conseguiriam produzir algodão a preços competitivos sem eles, e tanto os confederados quanto Dom Pedro sabiam disso. Mesmo antes da Guerra Civil, os sulistas já realizavam conferências sobre mudar a escravidão do país. Assim que eles emigraram, oficiais importantes confederados mexeram os pauzinhos para comprar fazendas operacionais já equipadas com seus próprios escravos. Algodão e tabaco não se davam bem no solo brasileiro, mas plantações estabelecidas como café, laranja e cana-de-açúcar cresciam.

Mas as relações de raça no Brasil chocaram os confederados o suficiente para mandar muitos imigrantes de volta para os EUA. “Os negros, que alguns admitem que um dia serão iguais a nós, já ocupam os principais e mais honrados caminhos na sociedade”, um mineiro escreveu sobre o Brasil na Galveston Tri-Weekly, depois de cotar terras no país. Ele acrescentou: “Enquanto os brancos temem que um dia eles depositem seus votos na mesma urna que nós, aqui eles não apenas votam, mas fazem leis – leis que governam os brancos que vivem aqui”.

“Tão clara foi a aversão deles”, escreveu o descendente Eugene Harter em A Colônia Perdida da Confederação, “que em 1888, quando um senador que fazia oposição à escravidão foi assassinado às vésperas da abolição no Brasil, os confederados foram os primeiros suspeitos”. O público, no entanto, pensava diferente. O folclore diz que multidões se reuniram para comemorar em frente ao palácio onde a princesa Isabel estava assinando a abolição, duas décadas depois do fim da Guerra Civil Americana.

“Nunca tivemos uma guerra no Brasil por causa da escravidão”, me disse João Leopoldo Padoveze, um confederado cujos ancestrais foram escravos. Como muitos, ele diz que a abolição foi pacífica porque o Brasil nunca teve um problema com racismo. O conceito do Brasil como uma “democracia racial” tem moldado a identidade cultural do país há décadas, um ponto de orgulho nacional. O sociólogo Gilberto Freyre cunhou o termo depois de testemunhar um homem ser linchado quando era estudante em Jim Crow South. Horrorizado, ele voltou para casa com uma apreciação recém-descoberta por seu país como um lugar onde etnias se misturavam livremente.

Mas mesmo que o Brasil tenha um racismo ao menos diferente, a escravidão continuou. Proprietários de terra, incluindo confederados com fazendas, contrataram trabalhadores remunerados para substituir seus escravos. Esses trabalhadores, por sua vez – trabalhadores rurais pobres – têm sido substituídos por uma força de trabalho que inclui dezenas de milhares de escravos, muitos deles imigrantes, que vivem no Brasil hoje.

Foi só nos anos 70 que ativistas rurais montaram centros de resgate para trabalhadores fugitivos e começaram a coletar histórias num esforço para erradicar a prática. Eles apresentaram suas descobertas – evidências de milhares de trabalhadores brasileiros cujo abuso e cativeiro tinham sido sistematicamente tolerado pelo estado – à Organização Internacional do Trabalho, e em 1995 a OIT declarou o Brasil em desacato com sua própria constituição.

Movido pela vergonha, o presidente Fernando Henrique Cardoso fez um famoso discurso no rádio naquele verão. “Em 1888, a princesa Isabel assinou a famosa Lei Áurea, que deveria ter acabado com o trabalho escravo neste país”, ele disse. “Eu disse ‘deveria’ porque, infelizmente, isso não acabou.” O Brasil criaria uma força-tarefa para encontrar e punir a escravidão em todas as indústrias. Nas duas décadas seguintes, o governo autuou companhias internacionais, como a Zara, e libertou 47 mil trabalhadores definidos legalmente como “escravos”.

As “operações de inspeção secretas”, como um folheto da OIT as chama, do Brasil são algumas das mais rigorosas do mundo. O Brasil tem reconhecido publicamente e se comprometido a reparar os abusos de trabalho de um modo que poucos outros ousaram. Em junho passado, por exemplo, um ativista ganhou uma batalha de 15 anos para aprovar uma emenda constitucional: o estado pode agora desapropriar a terra de negócios e fazendas encontradas usando escravidão – uma pena impensável nos EUA.

Beatrice Stopa, uma descendente confederada e repórter da Glamour Brasil.

Num escritório bege em Campinas, o inspetor trabalhista João Baptista Amâncio empurrou uma pilha de arquivos sobre escravidão em Americana sobre a mesa para mim. Uma batida tinha acabado num grande, e raro, sucesso. O escritório de Amâncio seguiu um caso até o topo da cadeia de fornecimento e multou em US$ 95 mil as Lojas Americanas. Apesar das operações antiescravidão no Brasil serem algumas das maiores, encerrar um caso com sucesso é um processo lento e árduo. As condições precisam ser flagrantes.

Amâncio, um burocrata de fala mansa usando tênis Reebok e calça cáqui, vasculhou a fábrica junto com outro inspetor, quatro oficiais da polícia federal, um promotor e um juiz. Eles estavam acompanhando um caso de 2011 onde acharam seis bolivianos sem documentos fazendo roupas numa fábrica clandestina, mas votaram não processar o caso como escravidão. Eles queriam ter certeza que a fabriqueta continuava fechada.

Em vez disso, os inspetores encontraram cinco bolivianos costurando roupinhas de bebê num galpão com paredes rachadas, infiltrações e um teto mofado caindo. Quatro mulheres jovens compartilhavam uma cela de concreto suja, dormindo em beliches improvisados, com as roupas espalhadas pelas camas e pelo chão. Elas não tinham nenhum móvel real e não podia fechar a porta do quarto. Amâncio disse que os bolivianos trabalhavam 12 horas por dia, seis dias por semana, costurando tecido em máquinas com defeito. Eles eram pagos, mas com irregularidade e baseado apenas na produção. Dois trabalhadores fugiram quando o Ministério do Trabalho chegou. O escritório de Amâncio nunca os encontrou – ele suspeita que eles tenham fugido para São Paulo. Fugas não são incomuns, me disse Amâncio. Os supervisores das fábricas convencem os imigrantes a ficar dizendo que as autoridades brasileiras vão deportá-los por trabalho ilegal, apesar do Brasil aceitar trabalhadores bolivianos como parte de seu acordo de livre comércio.

“Eles têm medo de serem pegos pelas autoridades”, disse Amâncio. “É isso que mantém eles aqui. Eles só confiam no patrão, o cara que os explora. Ele explora esse medo.” Os três que ficaram na fábrica de Americana citaram Gabriel Miffia Alanes, seu supervisor, como contato de emergência para o Ministério.

Os trabalhadores quase não falavam. Eles se encolhiam atrás de suas máquinas, se sentindo expostos, olhando para o chão, evitando perguntas. Os inspetores usaram de discrição, começando por assuntos mais sutis. Os trabalhadores olhavam para Alanes esperando alguma pista visual, no que os inspetores chamaram de “terror reverencial”. Mas o argumento decisivo foi a porta. Quando as autoridades pediram aos trabalhadores para ver as chaves que eles usavam para entrar e sair da fábrica, nenhum conseguiu produzi-las. A porta trancava por fora, e o ministério disse que isso mostrava que Alanes mantinha os empregados presos.

Um bairro da periferia de Americana.

O caso de Americana é, de certo modo, típico. Ele tem um paralelo com a história de outro imigrante boliviano que conheci uma noite em frente a um restaurante peruano perto da Cracolândia em São Paulo. Edwin Quenta Santos trabalhava ali como garçom – o primeiro emprego de verdade que ele teve desde que escapou da fábrica do primo violento em Guarulhos, não muito longe do aeroporto de São Paulo. Ele morava num vestiário sem janelas e infestado de ratos perto do restaurante e dormia numa cama infantil de plástico em formato de carro de corrida. Ele ainda não tinha sido regularizado, e ganhava só um salário-mínimo, mesmo quase sempre trabalhando algumas horas depois do final de seu experiente. “Podemos dizer que ainda é um pouquinho como escravidão”, ele disse, soltando uma risada.

Edwin chama sua história de “testemunho” – ele nunca falou com a polícia, nunca contou para a esposa e filhos o que passou. Ele seguiu em frente e tentou esquecer, mas ouviu rumores de que seu primo, Severo Oyardo Santos, estava comandando uma fabriqueta novamente. Então ele quis que as pessoas em seu país entendessem o que Severo fazia.

Em 2009, Severo visitou Edwin em La Paz, Bolívia. Severo já vivia em São Paulo há dez anos, e Edwin ficou chocado ao ver como ele parecia estar se saindo bem. Ele se gabava de ter uma fábrica que estava expandindo, e disse que estava procurando mais ajuda. Ele disse que Edwin podia triplicar sua renda se trabalhasse no Brasil. Edwin disse que emprestou cerca de 500 reais de Severo para uma passagem de avião e mais 500 para deixar com a família, até que pudesse mandar seu primeiro cheque.

“Eu pensei: ‘Se ele está me emprestando quinhentos reais assim, significa que tudo vai ficar bem lá’”, disse Edwin.

Quando chegou a São Paulo, atravessadores conhecidos como gatos se aproximaram de Edwin enquanto ele esperava pelo primo. Os gatos caçam bolivianos que chegam ao país sem conexões, oferecendo trabalho em fábricas de roupas clandestinas, escondidas nos fundos de prédios comerciais ou casas. Esse tipo de trabalho – exploração dispersa em pequena escala, diferente das torturas óbvias em fazendas por exemplo – está em expansão. Ano passado o Brasil registrou mais casos de escravidão urbana do que rural. “Eles ofereceram pagar meu hotel, disseram que tinham vagas disponíveis de trabalho. Eles ficavam insistindo”, disse Edwin. “Aí meu primo chegou.”

Severo levou Edwin até seu complexo perto do aeroporto e o apresentou a 20 e poucos outros membros da família estendida que já trabalhavam ali. Eles deram uma pequena festa de boas-vindas na cozinha lotada. A casa de concreto tinha três andares mas não uma porta da frente – só um portão com um cadeado, cuja chave Severo mantinha escondida. Severo estacionava seu carro na rua, reservando a garagem para seus cães de guarda. Se Edwin quisesse sair em algum momento além da viagem semanal permitida pelo primo, ele tinha que escalar o muro de trás e voltar antes que alguém percebesse. Ele sabia o tipo de punição que seu primo podia aplicar – ele disse ter visto Severo bater nos filhos. “Ele é maior que eu”, disse Edwin.

Os trabalhadores seguiam um cronograma rigoroso, levantando às 5 da manhã e trabalhando até a meia-noite, às vezes fazendo um almoço de apenas 15 minutos. Eles bebiam água de um poço coberto de algas e dormiam em seis num quarto no térreo do complexo, ou na própria oficina de costura, empurrando as máquinas de costura e colocando colchões finos no chão. Edwin não sabia costurar, então começou cozinhando e limpando enquanto o resto da família costurava.

De acordo com Edwin, quando ele perguntava ao primo sobre o pagamento, ele gritava que era Edwin quem devia dinheiro a ele. Eles falariam de salário só quando ele conseguisse pagar sua dívida da passagem de avião e do empréstimo para a família. Severo era evasivo e mentia para os familiares que queriam acertar as contas, se recusando a pagar tudo que devia de uma vez. Durante o tempo em que Edwin ficou na fábrica, só um trabalhador conseguiu convencer Severo a pagá-lo, mas só porque tinha um outro primo com documentos que ameaçava denunciar o chefe para a polícia federal.

Os trabalhadores seguiam um cronograma rigoroso, levantando às 5 da manhã e trabalhando até a meia-noite, às vezes fazendo um almoço de apenas 15 minutos.

Edwin sofreu para aprender a costurar. Ele tentava usar as máquinas, estragando tecido. Ele levava um mês para produzir o que os primos conseguiam em quatro dias. Um empresário que tinha um contrato com Severo costumava aparecer na casa e exigia produção mais rápida. “Se meu primo dizia que não dava, ele respondia ‘Problema seu, você tem que entregar isso amanhã’”, me disse Edwin. Uma noite, ele e os outros não tiveram permissão para dormir.

Sua família na Bolívia implorou que ele mandasse algum dinheiro. Eles acabaram tendo que se mudar para uma casa com aluguel mais barato, e sua esposa tirou as crianças da escola particular. Edwin mentia quando os filhos perguntavam o que ele estava fazendo; ele tinha vergonha de admitir sua situação. “Imagine que eu vim da Bolívia com o plano de melhorar a vida da minha família lá”, explicou Edwin. “Imagine como meus filhos reagiriam, ou minha esposa, meus pais. Por isso me fechei. Eu me sentia incapaz de fazer qualquer coisa.”

Foi ficando cada vez mais óbvio que Severo não tinha intenção de compensar ninguém de maneira justa, e eles lentamente pararam de trabalhar. Quando um primo ou sobrinho dizia que queria sair, Severo o mandava arrumar as malas, depois deixava o parente, sem um centavo, na rodoviária de Guarulhos. Edwin não sabe para onde cada um foi. Ele esperava, ainda devendo e sem conexões no Brasil, enquanto o trabalho na fábrica diminuía até finalmente parar. Só os filhos de Severo ficaram. Um dia ele encontrou suas malas na calçada. Edwin dormiu no vestiário de um campo de futebol por três dias, se recuperando antes de ir para São Paulo para procurar emprego. Então finalmente chegou ao restaurante peruano na Cracolândia.

Um dia depois de conhecer Edwin, fui até o complexo de Severo em Guarulhos e esperei ele chegar em seu carro. Um homem gordo com uma cara de pug bateu a porta e andou até o portão da garagem.

“Quem está me julgando?”, ele exigiu saber quando perguntei se ele tinha uma fábrica. “Eu tenho que saber.” Ele disse que não havia uma fábrica lá, só seus filhos e um ou dois primos visitando. Ele me mostrou a casa. No segundo andar havia uma sala azulejada vazia, cheia de máquinas de costura. Um monte de feltro estava num canto. Ninguém estava trabalhando, mas as máquinas estavam com os carretéis de linha prontos.

“São mentiras inventadas por gente invejosa, uns inúteis”, disse Severo.

Perguntei por que ele tinha tantas máquinas se não tinha uma fábrica. Ele tinha tido uma no passado, confessou. Mas a tinha fechado.

“Os costureiros querem trabalhar pouco e ganhar muito, e não pode ser assim, sabe?”, ele disse. “Então melhor acabar logo com tudo.”

O prédio de Severo Oyardo Santos em Guarulhos, onde Edwin Quenta Santos foi mantido em condições de escravidão.

Na manhã seguinte à festa confederada, dirigi cerca de 50 km do velho cemitério sulista até o endereço que o Ministério do Trabalho listava como a fábrica clandestina comandada por Gabriel Miffia Alanes e Eusebia Villalobos Tarqui, o casal boliviano pego com escravos em Americana. O GPS me levou até um terreno demolido, com um esqueleto de casa de compensado e ferro. Na esquina vi uma construção tosca de dois cômodos, as paredes marrons da mesma cor que a terra em volta. Fiquei tentando adivinhar, enquanto andava até um homem de chapéu cata ovo e botinas, se o barraco era a fábrica.

O homem apertou os olhos quando perguntei o que ele estava fazendo. Intrigado, ele disse que estava construindo um banco. Ele nunca tinha ouvido falar de fábrica nenhuma, mas alguns bolivianos moravam na casa do outro lado da rua. Ele não sabia nada sobre eles – quem eram, se trabalhavam – mas sabia que eles só saíam pela manhã e à noite. Eles andavam de cabeça baixa e nunca cumprimentavam ninguém.

Bati na porta de ferro vermelha da casa por vários minutos, antes que um homem de cabelo preto e bochechas amareladas esticasse a cabeça para fora. Seu braço, enfiado no bolso da bermuda, tinha uma tatuagem de escorpião. Atrás dele, roupinhas de bebê estavam penduradas num varal contra um muro de concreto.

Perguntei se tinha existido uma fábrica naquela casa. “Sim”, ele disse. “Mas foi fechada faz tempo.” O Ministério do Trabalho tinha aparecido alguns meses atrás. “Não tivemos problemas”, ele disse. “Todo mundo tinha documentos.”

Quando perguntei se ele tinha ouvido falar no caso de escravidão do outro lado da rua, ele se mostrou indignado. “Não é escravidão”, ele disse. “Quando cheguei da Bolívia, eu trabalhava das sete a meia-noite. Eu queria trabalhar aquelas horas. O dono nunca me obrigou. Se eu trabalhasse como os brasileiros, das sete às cinco, eu não ganharia dinheiro suficiente.”

Insistindo, mencionei Alanes, o vizinho boliviano pego com os escravos em sua fábrica no ano anterior. Ele o conhecia? Ele hesitou, depois disse “Sou eu”.

Claro. O endereço onde eu tinha procurado – o que estava nos registros do Ministério – era da casa onde Alanes e a família dormiam. Aqui era onde eles trabalhavam, a fábrica do outro lado da rua onde ele mantinha seus trabalhadores presos. Um ano depois da batida do Ministério, depois de ter libertado os trabalhadores e ligado o caso a uma cadeia nacional, a fábrica continuava funcionando, e Alanes ainda estava no controle.

Ele desapareceu dentro da casa, mas uma mulher de rabo de cavalo veio até a porta – Tarqui, sua esposa. Ela expôs a situação: as únicas pessoas trabalhando na fábrica hoje eram ela e o marido. Eles faziam shorts para uma escola particular de São Paulo, mas se mostrasse o logo, perderiam o contrato. Entendido isso, ela abriu o portão e fez sinal para que eu a seguisse.

Um ano depois da batida do Ministério, depois de ter libertado os trabalhadores e ligado o caso a uma cadeia nacional, a fábrica continuava funcionando, e Alanes ainda estava no controle.

Um caminho de concreto, passando por moradias pequenas de bloco de concreto, levava a um enorme pavilhão de telhado de zinco, apoiado em postes de compensado, no fundo do lote. Tecido, embalagens de plástico e caixas de papelão cobriam o chão. Dois pôsteres apagados – um do Palmeiras, e outro com uma vista aérea de La Paz – decoravam as paredes manchadas de umidade. Luminárias pendiam do teto. Parte do telhado tinha desmoronado e mostrava o céu. Uma dúzia de máquinas de costura amareladas estavam sobre mesas de baralho.

Tarqui virou para mim num canto do galpão, pegou um short atlético de nylon vermelho e cruzou os braços. Ela disse que a escola pagava 90 centavos por peça e que ela e o marido faziam cerca de R$ 2.000 por mês. Em troca, seus filhos frequentavam a tal escola. Ela insistiu que os filhos nunca tinham trabalhado. (Amâncio, o inspetor do trabalho, disse que suspeitava do contrário.)

Ouvindo Tarqui falar, parecia que ela tinha chegado à gerência da fábrica por acidente. Em 2001 ela se mudou para o Brasil, a convite de uma boliviana casada com um brasileiro que precisava de uma babá. Ela embarcou num ônibus e enfrentou a viagem de dois dias até São Paulo. Ela acabou largando o trabalho de babá para trabalhar numa fábrica; depois de um tempo, ela e o marido abriram seu próprio negócio. Eles pegaram um contrato para fazer 1.000 shorts em uma semana. Não era possível fazer tudo sozinhos, então eles foram encontrar bolivianos na praça da cidade. Eles contrataram um, depois outro, e em 2011 o Ministério do Trabalho bateu a sua porta.

“Aqui eu me sinto perdido”, me disse Alanes. “Cansado também.”

O Ministério ordenou que a HippyChick Moda Infantil, a companhia que vendia as roupas de Alanes e Tarqui para as Lojas Americanas, pagasse uma indenização por “danos morais” aos trabalhadores e donos da fábrica. Levou cinco dias para a HippyChick pagar os funcionários. Depois disso, eles pegaram um ônibus e foram embora de vez. Alanes não sabia para onde eles tinham ido. E essa ausência, mais do que tudo, marca o registro do caso de Americana, e as operações de escravidão em geral. Os trabalhadores não testemunham e não deixam rastros.

Quanto às chaves: primeiro Alanes disse que o Ministério estava mentindo. Mais tarde, por telefone, Tarqui admitiu que eles mantinham a porta trancada, mas insistiu que os trabalhadores tinham acesso às chaves. Ela disse que eles já tinham sido roubados. Em novembro do ano passado, o judiciário federal brasileiro abriu um processo contra Alanes por manter trabalhadores em condições análogas à escravidão, um crime punido com até oito anos de prisão.

Gabriel Maffia Alanes continua a operar sua fábrica clandestina, mesmo depois de ter sido condenado em 2013 por usar trabalho escravo.

Daniel Carr de Muzio, um genealogista confederado, empurrou a pesada porta de madeira de sua casa num condomínio fechado chamado Jardim Buru, nos arredores de São Paulo. Uma caminhonete com uma bandeira confederada estava na garagem. Muzio cresceu no Brasil, mergulhado em sua herança confederada. Sua avó se referiu a Abraham Lincoln como “aquele homem” até a morte, e seu avô jogou fora seus cartões de basebol de jogadores negros. Já adulto, Muzio continuou devotado a suas raízes norte-americanas, fazendo traduções do inglês para o português e falando com um sotaque sulista.

Dentro da casa de Muzio, lustres abriam caminho para enormes janelas do chão ao teto, com vista para o quintal cheio de eucaliptos e variedades subtropicais de limão. Em um aparador perto de um bar de vidro estavam três bandeiras em miniatura: do Brasil, dos EUA e dos confederados. Andando pela casa de bermuda xadrez e camiseta, Muzio me mostrou sua coleção de lembranças confederadas – livros, papéis e fotos antigas amarrotadas. Um exemplar manchado de Facts the Historians Leave Out: A Youth’s Confederate Primer estava perto do computador, junto com um livro chamado Lost White Tribes, onde Muzio era mencionado.

Sentado numa cadeira de balanço na varanda dos fundos, olhando para seu jardim verdejante, ele tentou me desenganar da noção de que os confederados vieram para o Brasil para continuar praticando a escravidão. Os escravos não tinham para onde ir depois da Guerra Civil, ele me disse. O Brasil parecia uma ótima opção. “Tenho certeza que eles vieram voluntariamente”, ele disse. “Essas pessoas, sabe, eram criadas por seus mestres – e elas não sabiam como sobreviver sozinhas. Elas provavelmente tinham muito medo de ficarem sozinhas.”

Para os confederados, o legado do Sul é totalmente inocente, sem contas a prestar.

Quando perguntei a Muzio se ele já tinha ouvido falar sobre escravidão contemporânea no Brasil, ele disse que sim – haitianos em canteiros de obras, bolivianos em fábricas. Ele franziu a testa enquanto jogava um carvão de eucalipto no forno. “Agora, isso não tem nada a ver com a gente”, ele disse.

Hoje os confederados são, na maioria, brasileiros brancos de classe média alta, o legado de poucos sulistas que conseguiram preservar o simulacro de suas plantações decadentes. Eles celebram uma mitologia que dificilmente sustenta o passado e estão cegos para o presente.

Na festa, encontrei Cindy Gião, uma visitante não descendente. Ela disse que não sabia quase nada sobre os confederados. Ela foi convidada por um amigo do pai, Robert Lee Ferguson. Gião achava que era descendente de italianos, espanhóis, portugueses e holandeses. Mas não tinha certeza. As pessoas não sabem, segundo ela, “porque somos muito misturados”. É isso que muitos brasileiros invejam nos confederados – a conexão com o passado.

Para os confederados, o legado do Sul é totalmente inocente, sem contas a prestar. Os Estados Confederados da América são uma coleção de sons, palavras e imagens: uma música do Johnny Cash, um filme western, uma bandeira. A amargura sulista derreteu em kitsch – ou negação, esquecimento. É essa cegueira que mantém a escravidão invisível hoje.

“Os brasileiros não gostam muito da nossa história”, disse Gião. “Estudamos isso na escola, mas não temos festas para celebrar o que nossos ancestrais fizeram por nós.” Nesse momento ela se voltou para o palco para ouvir uma versão de “Summertime” de Porgy and Bess, e assistir um homem hasteando a bandeira brasileira junto com a Stars and Bars, a bandeira oficial dos Estados Confederados da América.

ATUALIZAÇÃO: Uma versão anterior desta matéria afirmava que a festa acontecia próxima à Americana. Mais precisamente, a festa aconteceu em Santa Bárbara d’Oeste, que é próxima à Americana.

Tradução: Marina Schnoor