Quando os supremacistas brancos foram para Charlottesville, nos EUA, no ano passado, Emily Gorcenski decidiu protestar. A cidade era sua casa, e ela não queria ver fascistas marchando pelas ruas. No contraprotesto, porém, Gorcenski tomou spray de pimenta na cara de um dos palestrantes do comício. Christopher Cantwell, o responsável, mais tarde se declarou culpado de usar a arma e passou três meses e meio na cadeia.
Gorcenski, uma cientista de dados, decidiu fazer mais. Ela percebeu que seu treinamento poderia ajudá-la a formar uma ponte entre a polícia e a comunidade ativista. “Falando no geral, ativistas não confiam na polícia”, ela me disse por Skype. “Tomei a abordagem de deliberadamente me posicionar como a pessoa que pode falar com a polícia porque precisamos desse papel, dessa ponte.”
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Com ajuda de outros ativistas, Gorcenski montou a First Vigil, uma lista de casos nos tribunais ligados a nacionalistas brancos. A comunidade rastreia as acusações, os réus, dá links para os documentos do tribunal e fornece data e local da próxima audiência. Seu trabalho facilita que jornalistas e pesquisadores acompanhem os casos. Muitas vezes, diz ela, o que acontece no tribunal é tão importante quanto o que está escrito nos registros desses casos.
“Um dos meus interesses é rastrear supremacistas brancos enquanto eles passam pelo sistema judicial porque há muita informação útil nesses procedimentos que você não encontraria de outro jeito”, me disse Gorcenski.
“A história não é só o atentado. Tem muito mais coisa nisso.”
Documentos do tribunal são baús do tesouro de informação. Apesar de parecer que o movimento de nacionalismo branco norte-americano é uma rede grande e complexa, o grupo de pessoas envolvidas em violência de rua e marchas para o supremacista branco Richard Spencer na verdade é pequeno e íntimo. Segundo Gorcenski, ler os documentos do tribunal e ouvir os testemunhos ajuda a preencher as lacunas e montar uma imagem maior do movimento.
“Essas organizações são muito fluídas”, disse Gorcenski. “Para rastrear de maneira eficaz o que eles fazem, por que fazem, onde se encontram, com quem se encontram e quais são suas motivações, você tem que entender as dinâmicas internas de como trabalham. Então estamos tentando criar uma fonte que não é só uma base de dados, mas um jeito de contextualizar tudo isso.”
Gorcenski apontou uma matéria recente do New York Times sobre um atentando com arma de fogo depois de um comício de Spencer em Gainesville, Flórida. “Cem por cento das reportagens sobre esse incidente até aquele ponto falavam sobre as três pessoas que foram presas, mas havia quatro pessoas no jipe”, disse Gorcenski. “Então quem era a quarta pessoa?”
Gorcenski rastreou o relatório original de prisão e descobriu o nome da quarta pessoa. Ela também descobriu que este mesmo indivíduo deu um endereço falso durante a prisão que ligava a uma quinta pessoa, um conhecido nazista da área de Houston. O quinto elemento não estava no jipe, mas estava em Gainesville no momento do atentado. Gorcenski tinha descoberto outro elo da rede.
“Estamos descobrindo essas conexões enquanto fazemos esse trabalho”, ela disse. “A história não é só o atentado. Tem muito mais coisa nisso.”
Outubro de 2018 marcou um pico da violência de nacionalismo branco nos EUA: Proud Boys atacaram pessoas em Nova York; um homem matou duas pessoas num mercado em Kentucky enquanto dizia a uma testemunha que “brancos não atiram em brancos”; um homem mandou bombas pelo correio para democratas, jornalistas e George Soros; um atirador matou 11 pessoas numa sinagoga em Pittsburgh.
Grupos como o Southern Poverty Law Center (SPLC) e pessoas como a professora da Elon University Megan Squire também construíram e mantêm bases de dados para rastrear grupos de ódio, mas o SPLC se foca na imagem maior e a base de dados de Squire não está disponível para o público. A First Vigil é mais acessível e desenterra detalhes que o SPLC deixa de fora.
Os casos de tribunal são a primeira peça do que Gorcenski imagina como uma base de dados maior de produção coletiva. “Muitos projetos de ciência de dados se sobrepõem a construir infraestrutura para aplicações em nuvem”, ela disse. “O que aprendemos é como construir uma infraestrutura robusta para lidar com uma grande quantidade de dados.”
O objetivo de longo prazo de Gorcenski é transformar a First Vigil num lugar em qu as pessoas podem ir a uma marcha racista, tirar fotos dos participantes e postá-las. Ela quer arquivar e documentar nacionalistas brancos conhecidos online, para sempre.
“Os nazistas odiaram”, me disse Gorcenski. “As pessoas vão até as audiências… Tomam notas e me mandam fotos. E tudo isso vai ser parte do sistema eventualmente, para tornar todo esse conhecimento disponível.”
Doxing e humilhação pública são táticas populares tanto da direita quanto da esquerda agora, mas há perigos em fazer isso, independentemente de quem está sendo exposto. Quando você revela a identidade de alguém na internet num contexto inflamado como esse, mesmo quando são pessoas acusadas de crimes horrendos, você não tem controle sobre como o público vai reagir.
Mas Gorcenski acredita que, como a First Vigil usa documentos de tribunal públicos, o jogo é limpo. “A First Vigil é baseada inteiramente em dados de registros públicos, tirados diretamente do sistema judicial”, ela disse. “Portanto isso não pode ser usado como ferramenta de doxing, já que cobre coisas que já estão em registros públicos. A ferramenta não fornece nomes ou endereços, números de contato, conexões familiares, informações das testemunhas ou vítimas, nada assim. A linguagem da First Vigil deixa claro que todas as pessoas são inocentes até que se prove o contrário. Isso não pode ser mais uma fonte de assédio que o PACER [uma ferramenta que permite aos usuários acessar registros públicos de tribunal eletronicamente].”
A primeira coisa que o usuário vê quando abre o First Vigil é uma lista de casos pendentes seguida por uma tabela de conteúdos e um aviso. “Nossa esperança é que essa informação seja usada para salvar vidas”, diz a First Vigil. “Isso não é um endosso da polícia, da violência do estado ou da intervenção do estado. É simplesmente um repositório da informação mais precisa possível, tirada de registros públicos, jornais e audiências no tribunal.”
E finaliza: “Todas as pessoas nessa lista são inocentes até que se prove o contrário num tribunal. Prisões, acusações e inquéritos não são considerados provas de infração. Todos os réus apresentados têm direito a um processo justo. O público também tem o direito de saber a disposição desses casos.”
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