O governo colombiano publicou um projeto de lei que vai permitir a volta de um programa controverso de fumigação aérea de plantações de coca usando glifosato, uma herbicida que pode causar câncer em pessoas expostas a ele regularmente e em altas doses.
“O retorno da fumigação vai aumentar a capacidade do estado colombiano de confrontar tráfico de drogas em menos tempo e de maneira mais efetiva”, disse o ministro da Justiça da Colômbia numa declaração anunciando o decreto no final de dezembro.
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O decreto, similar em status legal a uma ordem executiva nos EUA, pede um programa de novos voos de fumigação, com supervisão da polícia nacional. Os planos estão nos estágios finais para serem aprovados com lei, e os voos devem começar “na segunda metade deste ano”, disse Ricardo Vargas, especialista em fumigação de plantações e coca da Universidade Nacional da Colômbia.
A proposta do presidente colombiano, Ivan Duque – depois de cinco anos de hiato de fumigação de plantações de coca – está sendo criticada por oficiais do governo locais, ambientalistas, especialistas em políticas de drogas e comunidades rurais no caminho dos voos tóxicos.
A estratégia vai agradar o presidente americano Donald Trump, que ano passado criticou o governo colombiano por não agir contra um recorde de plantações de coca. Num discurso ano passado, Trump disse que Duque não tinha feito “nada por nós” sobre cocaína. Trump também ameaçou cortar auxílios e tirar o certificado da Colômbia, a nação mais amistosa com os EUA da América Latina, como aliado na guerra às drogas se a nação não fizesse mais.
Oficiais da embaixada americana em Bogotá chamaram a ação de “um passo crítico”. “Os EUA apoia os esforços do governo colombiano para atingir nosso objetivo compartilhado de diminuir pela metade o cultivo de coca e produção de cocaína até o final de 2023”, dizia uma declaração da embaixada. Semana passada, no que pareceu um presente para Duque, oficiais dos EUA anunciaram um programa de auxílio rural de US$ 5 bilhões para a Colômbia, através do novo U.S. Internacional Development Finance Corporation.
Glifosato é um componente agrotóxico usado como herbicida mais conhecido e usado no mundo todo, mas em concentrações menores do que geralmente usadas na Colômbia. Mas tribunais americanos determinaram que o químico causa câncer em três casos. A firma alemã Bayer é dona da Monsanto, que vende o químico em sua linha Roundup de herbicidas para milhões de lares americanos há décadas. A Bayer agora deve pagar centenas de milhões de dólares em danos.
Em maior de 2019, um júri de Oakland, Califórnia, ordenou que a gigante de agroquímicos Monsanto pagasse mais de U$ 2 bilhões para um casal que contraiu linfoma não-Hodgkins, um tipo de câncer, depois de usar Roundup. Um júri determinou que Roundup fez Alberta e Alva Pilliod ficarem doentes. A Monsanto apelou, e o casal eventualmente aceitou um acordo de US$ 86 milhões em julho de 2019.
Esse foi o terceiro veredito contra a companhia por causa do produto. Dewayne Johnson, um ex-zelador de escola com câncer terminal, ganhou um processo de US$ 289 milhões ano passado, e Edwin Hardeman, que usava Roundup em casa, ganhou US$ 80 milhões.
A Colômbia já destrói plantações de coca usando erradicação manual, onde trabalhadores arrancam as plantas pela raiz, e fumigação de glifosato por drones em menor escala.
Mas o maior produtor de cocaína do mundo suspendeu as fumigações aéreas com aviões por contratados americanos em 2015, depois que um estudo da Organização Mundial de Saúde descobriu que glifosato era cancerígeno.
Durante quase 25 anos, no Plano Colômbia de guerra às drogas liderado pelos EUA, pilotos americanos e a polícia colombiana jogaram glifosato em 4.240.000 acres de território colombiano, disse Adam Isacson, do WOLA, o Washington Office on Latin America, uma organização de pesquisa e ativismo. A escala da nova campanha de fumigação ainda não foi decidida.
Em agosto de 2018, Kevin Whitaker, o então embaixador americano, disse ao Wall Street Journal que “de sete a oito aviões usados em plantações de coca continuam na Colômbia. Eu disse para a equipe da embaixada e aos colombianos a mesma coisa: Precisamos estar prontos para reiniciar”.
A produção de cocaína cresceu apesar das esperanças de que o histórico acordo de paz com as guerrilhas FARC em 2016 pudesse cortar isso. Como parte do acordo de paz, que colocou um fim no conflito civil mais longo do mundo, o governo prometeu ajudar os agricultores de coca a passarem para a agricultura legal. Mas isso não aconteceu na maioria dos casos – e assim o comércio de coca floresceu, com os preços da cocaína caindo e a pureza aumentando para níveis sem precedentes nos EUA e União Europeia.
Mais de 120 líderes comunitários, alguns deles que vinham pedindo por investimentos alternativos em desmilitarização de áreas incluindo alternativas para a cocaína, foram mortos na Colômbia este ano numa onda de execuções extrajudiciais, segundo uma pesquisa divulgada esta semana do grupo de direitos humanos Frontline Defenders.
Vargas disse que comunidades não tiveram a ajuda que precisam para parar o comércio de coca, e agora vão sofrer com o novo programa de fumigação. “Muitos líderes locais que vêm promovendo a substituição da coca estão sendo ameaçados e mortos. O governo não dá segurança física a eles.
“Fumigação atrapalha a estabilidade das pessoas pobres vivendo nesses territórios, polui a água, afeta a saúde das pessoas, gera deslocamentos forçados e a falta de renda causa revoltas sociais. Isso afeta as florestas e cria conflitos e incertezas em todas as comunidades.”
Hoje a Colômbia está produzindo um volume gigantesco de cocaína, com a ONU informando que 1.379 toneladas foram produzidas em 2017 – um terço a mais que em 2016. A UNODC também diz que a área de cultivo de coca na Colômbia triplicou nos últimos cinco anos, chegando a 169 mil hectares no final de 2018.
E pessoas estão criticando o retorno da fumigação antes mesmo dela começar.
“O retorno da fumigação aérea é tão eficiente quanto passar rodo no mar”, disse Sanho Tree, diretor do Drug Policy Project do Institute for Policy Studies, uma think tank americana. Tree diz que o ciclo de pobreza rural e plantação de coca foi exacerbado pelos programas de fumigação, e que investimento em estradas seria muito mais eficaz.
“Agricultores de coca vivem em áreas remotas sem acesso à infraestrutura necessária para levar centenas quilos de safras de alimentos para o mercado. Um quilo de pasta de coca é fácil de transportar e vender”, disse Tree. “Quando o estado destrói o meio de vida deles, eles acabam em insegurança alimentar mas ainda precisam alimentar suas famílias. Que plantação eles sabem como cultivar que não exige infraestrutura moderna de transporte? Coca! Lave, enxágue, repita”, ele disse.
Vargas disse que fumigar plantações é 83 vezes menos eficiente do que auxílio do estado: “O que é observado na Colômbia é que o meio e fumigação aérea de longo prazo não significa diminuição da oferta”, ele disse. “Pelo contrário, segundo uma avaliação da UNODOC na Colômbia, coca é replantada em 0,6% das vezes quando um agricultor recebe planos voluntários de substituição de plantações, mas erradicação forçada eleva os níveis de replantio para quase 50%.”
A nova ação pode obrigar agricultores de coca a plantar em parques nacionais isolados, onde fumigação de qualquer tipo continua ilegal. Monocultura de coca e limpeza de terras nessas áreas intocadas podem causar perdas de habitat devastadoras; a Colômbia é um dos países mais biologicamente diversos do mundo, lar de 10% das espécies do mundo.
Eleonara Davalos, professora de políticas públicas na Universidade EAFIT em Medelim, Colômbia, disse que os planos de fumigação de plantações com aviões era “uma estratégia de curto prazo”. Ela disse que apesar dos 25 anos de campanha de fumigação e outros esforços de erradicação, a maioria das áreas de cultivo de coca nos anos 1990 continuam produzindo coca hoje. “Cerca de 90% da coca cultivada na Colômbia hoje cresce nas mesmas áreas que no passado”, ela acrescentou.
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