Cultos à carga, como qualquer outro culto, são malucos pra caralho. Eles se originaram nas comunidades tribais de várias ilhas do Pacífico no começo do século XX. Seus seguidores acreditam que tanto um soldado norte-americano da Segunda Guerra Mundial chamado John Frum, quanto o racista favorito da galera, Príncipe Philip da Inglaterra, virão de alguma forma com toda a comida, roupas e armas que o Ocidente possui atualmente e entregarão tudo pra eles. Os cultos à carga acreditam que, uma vez que isso tenha acontecido, o resto da população do mundo vai desaparecer, deixando-os no controle do que acreditam que é deles por direito.
Infelizmente esses cultos desapareceram, exceto em Tanna, uma ilha remota perto de Fiji e da Nova Caledônia, onde as pessoas continuam acreditando fortemente nessa quase fofa ilusão. O fotógrafo russo Vlad Sokhin passou uma semana vivendo entre os membros do culto a John Frum em Tanna, juntando-se a eles durante suas festividades anuais, em que todo mundo pinta “USA” no peito e marcha com rifles de bambu e AKs-47 de madeira na esperança de que um soldado americano de 75 anos atrás volte para enchê-los de presentes e matar todo o resto da humanidade.
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O Vlad visitou a vila de Yaohnanen, onde fica a base do Movimento do Príncipe Philip. Conversei com ele sobre a história dos cultos à carga.
VICE: Oi, Vlad. Me conta, por que esses ilhéus acabaram adorando um soldado americano e o marido da rainha da Inglaterra?
Vlad Sokhin: Tudo começou no início do século XX, quando os ocidentais começaram a chegar nas ilhas malásias, como Papua-Nova Guiné, Vanuatu e Ilhas Salomão. Quer dizer, imagina ver aviões e barcos pela primeira vez na vida. Para eles, era literalmente um milagre vindo do céu — seres estrangeiros apareceram nessas coisas enormes e barulhentas e deram rifles, roupas e comida aos locais.
Até entendo isso, mas depois que os ocidentais explicaram quem eram, os ilhéus começaram a ter uma ideia do que estava acontecendo, não?
Sim, eles explicaram, mas profetas locais passaram a dizer que os ilhéus eram aqueles que realmente mereciam toda a carga — que isso tinha sido dedicado a eles pelos deuses — mas que os ocidentais tinham sido espertos e tomado posse de tudo injustamente. As pessoas começaram a acreditar que, se eles imitassem os ocidentais, receberiam as mesmas coisas. Aí os ilhéus construíram carcaças de aviões de madeira, fizeram pistas de pouso no meio da selva e esperavam nessas pistas o dia inteiro com bandeiras, tentando guiar um avião pra lá.
Suponho que nenhum avião veio.
Não. E isso só aconteceu em Tanna. Depois que o culto fracassou em todas as outras ilhas, eles pararam de fazer isso aqui também, já que aviões trazendo turistas e dinheiro continuaram chegando à ilha toda semana, do mesmo jeito. No entanto, algumas pessoas mais velhas continuam indo para o aeroporto todo dia pra esperar os aviões, na esperança que John Frum esteja em algum deles.
É, me fale sobre o John Frum. Ele foi uma pessoa real? Ou só uma criação dos profetas das ilhas?
Acredito que ele tenha sido um homem de verdade. Vanuatu era uma colônia britânica e francesa nos anos 30 e, em 1937, um homem chamado John Frum aparentemente chegou em Tanna. Ele era um soldado negro, provavelmente da América, mas não sei se o nome dele de verdade era John Frum. Acho que ele deve ter dito: “I am John from America”, e os locais entenderam “John Frum”.
Mas o que o transformou nessa divindade dos ilhéus? Eles tinham visto muitos outros soldados antes, não?
Sim, mas ele era o soldado de mais alta patente na ilha, então os ilhéus viram soldados brancos engraxando os sapatos de um homem com a mesma cor de pele deles e acharam que isso era uma prova do plano original de Deus — que eles eram os donos da carga por direito.
Aí eles começaram a rezar pra ele?
Sim, aparentemente ele disse aos ilhéus pra parar de usar todas as coisas que os ocidentais davam pra eles — parar de tomar o vinho e fumar cigarros —, assim a carga voltaria pra eles. Toda noite de sexta-feira é a noite de John Frum, os seguidores se reúnem e tocam música com violões. Parece um pouco com música country americana, e as letras falam sobre os apóstolos de John Frum, Jerry Cowboy e Jimmy Cowboy, dois personagens de filmes norte-americanos antigos de bangue-bangue.
Uou. E eles têm o dia de John Frum também, com uma grande celebração, né?
Sim, todo ano, no dia 15 de fevereiro, todos eles se vestem com uniformes da marinha norte-americana, marcham ao estilo norte-americano, com bandeiras de estrelas e listras, e pintam a ponta de suas lanças de bambu de vermelho pra que pareçam rifles norte-americanos. Alguns esculpem armas mais elaboradas, como AKs-47 de madeira. A ideia é que John Frum vai retornar no dia 15 de fevereiro com um suprimento infinito de carga, significando que Tanna será o paraíso na Terra, enquanto o resto do mundo vai desaparecer. Mas eles não sabem em que ano isso deve acontecer, então fazem a comemoração todos os anos.
O que acontece quando ele não vem? Acho que eles já se acostumaram com isso, né?
É, Isaac Wan, o homem mais velho da vila, é o líder do culto a John Frum, então é ele quem faz as orações em todos os eventos. Ele sempre fica um pouco chateado, mas depois dá de ombros e diz que espera que John Frum volte no ano que vem.
Curti o otimismo. Então, você estava dizendo que o culto a John Frum rejeita a cultura norte-americana, mas eles continuam se apropriando disso nos uniformes, bandeiras e armas.
Eles acreditam que os símbolos norte-americanos são significados universais de carga, então os usam, mas não aderiram ao estilo de vida, se é que isso faz sentido. Todas as roupas que eles usam são de segunda mão, então parece que aceitaram a cultura ocidental superficialmente, mas as roupas são praticamente a única coisa similar à nossa cultura. Só duas pessoas na vila têm painéis solares, para carregar celulares, mas não há TVs, nenhuma outra forma de eletricidade, nenhuma mídia e definitivamente nada de internet.
Então, como o Movimento do Príncipe Philip começou se eles nunca viram esse cara antes?
Pra ser honesto, não tenho certeza. Sei que a Rainha e o Príncipe Philip fizeram uma visita oficial a Vanuatu nos anos 70, o que com certeza fortaleceu o movimento. Mas sei que o culto começou pelo menos uma década antes. É bem menor que o movimento de John Frum, mas você tem razão, isso ainda não explica como começou.
Estranho. No que eles acreditam?
Eles acreditam que o Príncipe Philip é irmão de John Frum e que ele nasceu em Tanna, mas acabou indo para o ocidente e casando com uma mulher muito poderosa. Eles acreditam que quando morrer, ele retornará para Tanna em forma espiritual e trará toda a fortuna da coroa britânica com ele.
Eles realmente adoram o Príncipe como um deus?
Bom, eles têm retratos dele e oram pra esses retratos, mas como alguns membros da vila foram levados para Londres por um programa de televisão para se encontrar com o Príncipe, acho que hoje em dia eles o respeitam mais como um ancião.
Como eles demonstram seu apreço por ele?
Eles realizam uma grande festa todo ano no dia 10 de junho — o aniversário do Príncipe —, do mesmo jeito que acontece com o culto de John Frum. Mas não há insígnias norte-americanas, só a bandeira do Reino Unido e muita dança. E eles fazem a adoração em Nakamal, o lugar sagrado deles, ou no túmulo do fundador do culto. Ele morreu alguns anos atrás, agora o filho dele é o líder do movimento.
Os dois cultos se dão bem?
Sim. Quer dizer, não há animosidade, porque o Movimento do Príncipe Philip acredita que ele é irmão de John Frum, mas eles não se visitam nem nada assim.
E os cristãos da ilha? Como eles se sentem quanto a isso?
É uma coisa interessante, na verdade. Há uma igreja chamada Unity of John in Christ, que é basicamente uma igreja que tentou converter os seguidores de John Frum ao cristianismo, mas falhou, então eles simplesmente misturaram as duas crenças.
E como isso funciona?
Eles basicamente adicionaram John Frum à Bíblia e dizem que ele é um apóstolo, mas ainda tentam de todo jeito converter todo mundo ao cristianismo. Sem muita sorte, devo dizer.