Zara Pinto é uma pessoa transsexual não binária que desde sempre se interessou pela captação de imagens, quer em vídeo quer em fotografia. Através das lentes, explica à VICE, brinca com os ângulos “para moldar uma história, para captar alguém da melhor maneira e ir mais além daquilo que está à vista”. Pelo enorme fascínio que nutre pelo mundo queer, drag, burlesco e erótico – e aproveitando o facto de trabalhar no mítico Trumps, em Lisboa – nasceu o 2squarefeetproject.
O camarim do Trumps pode ter apenas cerca de dois metros quadrados [Nota do editor: a conversão de pés para metros não é literal, caso contrário estaríamos a falar de menos um metro quadrado, não se exaltem que fomos verificar!], mas é espaço suficiente para Zara conhecer e registar quem por lá passa. Com a câmara do seu Huawei em punho e de forma atrevida, Zara fotografa desde drag queens, a gogo dancers, DJs, performers… “Se passar pelo Trumps e me chamar a atenção, peço para fotografar”, diz.
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O resultado final – sempre num preto e branco profundo e contemplativo – é exposto na página de Instagram do projecto e dá-nos um vislumbre, íntimo, daquilo que são os bastidores de uma dos locais mais marcantes da cultura LGBTQ em Lisboa. Usar a câmara do telefone, salienta, traz-lhe mais liberdade: limita-se a disparar, experimentar, observar e conhecer. Zara conta-nos tudo.
VICE: Olá Zara. Com que idade começaste a fotografar?
Zara Pinto: Desde a minha infância que o vídeo e a fotografia estiveram sempre presentes. A minha mãe e o meu padrasto participavam em maratonas fotográficas e viajavam muito, trazendo sempre imagens dos locais que visitavam, as quais depois víamos em formato de cassete VHS, no leitor de vídeo. Sempre vi a captação de imagem como algo fascinante. Gostava tanto, que me ofereceram uma daquelas máquinas automáticas com rolo. Sempre que ia a alguma visita de estudo levava-a comigo e disparava sem parar. Mais tarde, tive uma Sony handycam vídeo 8, com a qual gravei os meus primeiros vídeos.
Foi quando ingressei na António Arroio que aprendi sobre fotografia analógica e descobri as Pinhole, com que participei em maratonas de formato analógico em Lisboa. Contudo, em 2004 comecei a estudar cinema na Universidade Lusófona e o vídeo acabou por ganhar mais peso na minha vida. Mas, tanto num formato como noutro, o que mais me atrai é a maneira como o enquadramento e a escolha de ângulo podem mudar e melhorar a forma de contar uma história.
Como surgiu a ideia do projecto 2squarefeet?
Surgiu de forma espontânea, não foi de todo planeado. Trabalho na discoteca Trumps há quase sete anos, comecei por fazer bar e, passado pouco tempo, ofereceram-me formação como light jockey – posição que ocupo até hoje, juntamente com a criação de todo o conteúdo audiovisual do clube. A minha cabine é colada ao camarim, tornando inevitável ir espreitando o que se passa naquele metro quadrado. Via os gogo boys e as drags a vestirem-se e despirem-se, a olharem-se ao espelho, a brincar uns com os outros e, à medida que fui ganhando intimidade com aquele espaço, passei a estar mais presente dentro do mesmo.
Houve um dia em que me pediram para tirar uma fotografia, passaram-me o telemóvel, eu disparei… e ficámos doidos com o resultado! Não pela técnica da coisa, mas porque parecia que, quando disparava (modéstia à parte!), captava mais além do que o que estava visível. Para mim, esta sensação nasce dos laços que crio com quem fotografo. Sinto que quando não existe conexão a foto não tem o mesmo peso. E assim, pouco a pouco, comecei a pedir para fotografar. Sempre com o telemóvel, porque é algo espontâneo, sem ensaio, que parte de um flirt recíproco e de uma admiração enorme da minha parte por estas pessoas.
O que pretendes contar e dar a conhecer através das tuas imagens?
As fotografias são, primeiramente, para mim. São um momento de voyeurismo, em que me permito olhar aquela pessoa através de um dispositivo, que acaba por ser uma maneira menos agressiva de observar alguém. Não pretendo, pelo menos não conscientemente, mostrar alguma coisa. É um projecto muito pessoal, que me serve a mim e à pessoa fotografada, quase como uma troca da qual cada um retira o que precisa: as pessoas que fotografo ficam com um registo seu num tom que lhes agrada, enquanto eu posso explorar, através da fotografia, este mundo de arte e de temas queer que me apaixona.
Em algumas fotografias procuro o corpo, o traço suado e trabalhado. Noutras procuro o género, a transformação, o contraste. E ainda há aquelas que são como um “xoxo”, um beijo e passa ao próximo. Mas, em qualquer uma, o que mais me agrada é como todos chegam a este camarim de mala às costas, depois de um dia de trabalho e, numa questão de horas, vestem uma nova personagem.
Considero drag uma arte violenta, em que alguns rapazes se sufocam com corpetes, enfiam os testículos para dentro e puxam o pénis para trás, vestem camadas de collants, demoram-se na maquilhagem, colocam toucas e ganchos, prendem perucas, colam unhas, dançam em saltos durante cinco horas seguidas… mas, sentem-se incríveis. Interrogo-me, como pessoa trans, se alguns deles gostaria de ser assim sempre, ou se é apenas uma fantasia que vivem durante aquelas horas e se vivê-la aquele tempo lhes é suficiente. Converso com eles sobre as suas personagens, é engraçado ver como são diferentes e como a nossa relação varia consoante estão em drag ou não.
Com os gogo boys é diferente. Por norma são rapazes confiantes que adoram o seu corpo e que gostam de ser olhados. Quando os fotografo retiro o máximo que posso deles, exploro sem barreiras – a centímetros dos rabos, dos genitais, peitorais e lábios. É um exercício de confiança, a partir do qual encontramos ângulos provocantes e eróticos para, no fim, nos rirmos com o que acabou de acontecer. Tudo isto cabe em pouco mais de dois metros quadrados, numa cave em Lisboa. Poder partilhar isso com o mundo virtual agrada-me bastante.
Porque é que só fotografas no Trumps?
Trabalho no Trumps três noites por semana e no meu trabalho diurno cinco vezes por semana, por isso sobra-me pouco tempo para fotografar. Tenho um enorme interesse pelos mundos LGBT+, BDSM, burlesco, decadente, erótico e sexual – e estes não existem propriamente ao virar de cada esquina. Para além de que não gosto de fotografar ou gravar alguém que nunca conheci, com quem nunca falei. Prefiro sempre ficar a conhecer, ter uma conversa, só depois partir para a imagem.
Em que direcção gostarias de levar o projecto?
O que pretendo com o projecto é que sirva para contar a história do camarim do Trumps, uma casa com 36 anos da qual faço parte há sete. Imagina, se todos os colaboradores que por ali passaram tivessem feito o mesmo que eu, teríamos hoje uma coleção de babar – um livro que eu gostaria de ter!
Gostava de ver o 2squarefeet numa galeria, num tom cru combinado com as instalações, em que mostraria também clips de vídeo que gravo com as drags e gogo boys. Imagino este espaço com uma disposição peculiar, quase como uma recriação do camarim – mas para já são só ideias. Pensei, também, em criar um livro de bolso, bem pequenino. Assim como se fosse um snack que tens guardado e que, quando vem o apetite, trincas com força.
Sonho em poder levar este projecto, assim como outros que tenho em mente, a mais clubes da Europa e pessoas LGBT+ por toda a parte, mas ainda não se proporcionou (quem sabe talvez com a VICE?). Pondero mudar o formato do projecto, passar do smartphone para a minha A7s, ou comprar uma Contax G, mas ainda estou em negociações comigo próprio.
Para já, exploro aqueles dois metros quadrados desde vários ângulos, conhecendo pessoas diferentes e desafiando a forma de reportar aquele pequeno espaço. Para mim, o mundo são as pessoas e as suas histórias – o resto é ruído.
Abaixo podes ver mais imagens de Zara Pinto para o 2squarefeetproject. Acompanha o projecto aqui.
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