A meditação não é a cura que todos gostariam que fosse

Cuidado, ioga: a meditação está prestes a roubar seu lugar de prática milagrosa. Pode fazer o teste: basta ir a qualquer livraria e será fácil achar obras sobre “mindfulness” e “atenção plena”. Na internet não é diferente: dezenas de artigos, posts e textos defendem os benefícios espirituais, mentais e fisiológicos da meditação. Empresas gigantes, como o Google, oferecem cursos e espaços para que os funcionários se dediquem ao exercício mental de mais de 2.500 anos. Gurus corporativos como Gabriel Goffi prometem que, com apenas alguns minutos por dia, você se torna uma máquina de produtividade (#BoraPraAction). O aplicativo Headspace, que oferece aulas e sessões avulsas de respiração, compaixão e outros assuntos, tem quase 20 milhões de usuários em todo o mundo. Por aqui, a Natura acabou de lançar seu próprio app que ensina técnicas de respiração e concentração com áudios em português. A milenar técnica de origem hindu e budista é definitivamente pop — e o pop não poupa ninguém.

O hype nunca esteve tão forte, mas começou no final dos anos 60, quando jovens americanos e europeus voltaram da Índia com algo mais que batas na bagagem. Traziam também a meditação, vista na época como uma maneira de transcender (além do LSD, claro). Até os Beatles embarcaram nessa e a prática teve sua primeira onda de fama no mundo ocidental. Alguns praticantes, como o médico americano Jon Kabat-Zinn, da Universidade de Massachussetts, nos EUA, levaram a coisa a sério e, além de meditar diariamente, começaram a vislumbrar o uso da técnica para lidar com dores, estresse e doenças mentais.

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Em 1979, o médico abriu a Clínica de Redução do Estresse na universidade, por onde já passaram milhares de pacientes com dor crônica nas costas, câncer, paralisias e vítimas de acidentes. Ali, as pessoas aprendem a meditar num programa de oito semanas. De acordo com Kabat-Zinn, focar a atenção na respiração ajuda pessoas a lidar com dores físicas e emocionais. Ele é um dos principais responsáveis pela ascensão da meditação que vemos hoje.

Embora pesquisadores como Jon Kabat-Zinn, Richard Davidson, da Universidade de Winsconsin, e Daniel Goleman, psicólogo formado em Harvard, investiguem há décadas as possibilidades dessa técnica, apenas recentemente a ciência passou a se dedicar ao assunto. A partir dos anos 2000, milhares de artigos científicos passaram a ser publicados a respeito dos benefícios da meditação. E foi isso o principal impulso que a levou ao estrelato.

“Na raiz dessa fama está a ciência”, afirma Dan Harris, jornalista, praticante e autor do livro 10% mais feliz. “Antes, e ainda hoje, a meditação era vista como esquisita ou algo feito apenas por budistas, hindus etc. Ela tinha uma reputação ruim. Isso ainda não foi inteiramente resolvido, mas quando a ciência começou a aparecer, as pesquisas começaram a olhar o que a meditação faz com seu cérebro e o resto do seu corpo. E esses achados a deixaram mais atraente para o mainstream. Em seguida, figuras aspiracionais da sociedade começaram a adotá-la: militares, atletas, CEOs, artistas, e isso levou a coisa para outro nível.” O mundo se apaixonou pela meditação. E esse crush se refletiu na ciência.

Até 2016, haviam sido publicados 6838 artigos (em inglês) em toda a história da pesquisa em meditação. Apenas em 2014, foram publicados 925; no ano seguinte, foram 1098. Em 2016, o recorde: 1113. Uma aceleração espantosa. Embora possa parecer que isso é uma coisa necessariamente boa, a realidade é outra. Quantidade não significa qualidade, já diria o ditado. E foi isso o que aconteceu com a meditação. A pressa em apresentar uma solução simples e eficiente para todos os males resultou em trabalhos pouco rigorosos e de baixa qualidade. De prática ligada a religiões orientais, ela se tornou mais uma “cura” para todos os males. Não por acaso, um dos responsáveis por popularizar a meditação criticou o que chamou de “McMindfulness“. Ou seja, a massificação acrítica da técnica.

Para Richard Davidson, o público em geral está esperando demais da meditação. “Ela não surgiu para cuidar de doenças”, afirma o pesquisador. “As expectativas são irrealistas. Essa é a primeira vez em que está sendo aplicada a doenças. Ela não vai curar tudo”, diz, em entrevista ao Motherboard Brasil por telefone.

O que a meditação pode causar?

Um terreno particularmente espinhoso tem sido o mundo do trabalho. Empresas têm apostado que funcionários mais tranquilos e pacíficos irão ser melhores e mais produtivos. No entanto, um estudo feito por Kathleen D. Vohs, professora da faculdade de administração da Universidade de Minnesota e Andrew C. Hafenbrack, professor-assistente da Universidade Católica Portuguesa, alega justamente o contrário: a meditação diminui a motivação e pode ser contraprodutiva no ambiente corporativo. Davidson, em artigo publicado no site Thrive Global em parceria com Arianna Huffington, criticou o trabalho. De acordo com ele, os pesquisadores não souberam definir com precisão os termos “meditação” e “motivação”. Mais grave, argumenta, os participantes fizeram uma única sessão de mindfulness ouvindo a uma gravação on-line (e não tinham controle a respeito das condições em que a prática era realizada). “Para tudo há uma época. E para todas as tendências culturais há uma reação negativa”, afirma a dupla no artigo.

Mas essa não é a única crítica que a meditação tem recebido. De acordo com outros estudiosos, ela pode ajudar a desencadear processos psíquicos como depressão, bipolaridade, ataques de pânico e outros males. O psiquiatra Florian Ruths, especialista em mindfulness no National Health System britânico, afirma que, quando um paciente tem um histórico de doenças mentais, o ideal é que comece a fazer a prática sob a supervisão de um profissional especializado. Em entrevista ao The Guardian, Ruths explica que o raciocínio é o mesmo de quando um paciente vai começar a fazer exercícios: ele precisa de orientação e observação constante para não se lesionar ou piorar a condição pré-existente.

Para deixar a questão mais nebulosa, não está claro ainda o que a meditação consegue ou não fazer — e quais são os seus riscos. É preciso mais estudos e mais tempo para verificar quais são os efeitos da prática na saúde mental e física dos adeptos.

Por isso, Davidson e Goleman resolveram fazer uma revisão completa de toda a literatura científica já publicada sobre o assunto. O resultado é o livro A ciência da meditação, publicado no Brasil no final de 2017. “Revisamos 6 mil artigos publicados em revistas científicas e achamos 60 que são excelentes de verdade”, diz Goleman ao Motherboard Brasil por Skype. Para Davidson, o livro nasceu porque é necessário saber de fato o “que a meditação consegue ou não fazer”. “Ser direto e transparente é o certo a se fazer”, defende.

Quais foram, então, os reais achados da ciência em relação à meditação?

“Em primeiro lugar, a meditação melhora a atenção”, afirma Goleman. “Faz sentido porque é um exercício de atenção. Sua mente divaga e você a traz de volta. Você aprende a lidar melhor com as distrações e a pesquisa mostra isso. Todas as dimensões da atenção estudadas até agora parecem melhorar. Quanto mais você pratica, maiores são os benefícios. Em segundo lugar, há um efeito calmante. Quanto mais você medita, menos dispara o gatilho do sistema “fight or flight” do cérebro e mais rápido se recupera desse pico. Isso funciona para a maioria dos tipos de meditação.” Por último, explica o pesquisador, existe uma variedade da meditação que consiste em cultivar a capacidade de desejar o bem das pessoas. “Essa parece fortalecer o circuito cerebral para o altruísmo, a generosidade.”

Em resumo, o que o pente fino de Davidson e Goleman encontrou foi que (1) a prática de meditação do tipo mindfulness (baseada em prestar atenção à respiração ou a sensações corporais) pode reduzir o estresse diminuindo a atividade da amígdala cerebral, região responsável pelo processamento das emoções; (2) duas semanas dessa mesma prática (somando 10 horas) melhora a atenção e a memória; (3) a chamada “bondade amorosa” (modalidade na qual se pratica cultivar pensamentos afetuosos em relação a outras pessoas) pode ajudar a tratar de doenças como depressão e transtorno do estresse pós-traumático com uma eficácia um pouco inferior a de remédios; (4) a prática bondade amorosa também está a ligada à diminuição da atividade de genes que desencadeiam processos inflamatórios.

Embora os achados sejam impressionantes, Goleman é cuidadoso: “A ciência sempre precisa de mais dados. Pode ser que ocorram surpresas ao longo do caminho”. Ele vê um exagero na promoção da técnica milenar, o que pode criar expectativas irrealistas de leigos em busca de soluções milagrosas. “Algumas pessoas que estão vendendo a meditação e prometendo demais rápido demais”, opina. “Existem muitos aplicativos de meditação, as pessoas querem que os benefícios apareçam de imediato. De maneira surpreendente, os benefícios que aparecem mais rápido são a generosidade e o querer bem. Demora um pouco mais para o efeito calmante e o foco aparecerem. Eles podem não dar as caras durante vários meses e você precisa praticar todos os dias.”

O pequeno número de estudos de qualidade encontrados pela dupla de cientistas (1% do total) também tem explicação na maneira pela qual a ciência é feita atualmente. “A maneira pela qual nós recompensamos pesquisadores em todas as ciências não dá importância para os não-achados. Com a meditação, como com qualquer outra coisa, queremos saber o que funciona e o que não funciona. Mas isso não tem sido reportado na literatura científica”, diz.

Davidson vê com bons olhos o que parece ser um retrocesso para a prática: “A repercussão negativa é sadia”, diz. “Acho que ela será aplicada de maneira mais inteligente a partir de agora. Nós certamente não temos visto falta de interesse. Pelo contrário, vemos crescer. Há um interesse particular na meditação que está baseada em ciência cuidadosa.” O cientista crê que o pop vai poupar a meditação no longo prazo. “Tenho muita confiança de que iremos sobreviver ao hype. Ela está por aí há 2.500 anos e tenho confiança de que vai durar mais 2.500 anos. Acho que existem evidências suficientes para sugerir que ela tem utilidade em diversas áreas.”

Na opinião do jornalista Dan Harris, o saldo até agora é “extraodinariamente positivo”. Ele vai além: “creio que será uma revolução na saúde pública”. “Fazer exercícios se tornou algo muito popular nos últimos 30 ou 40 anos e isso teve muitos benefícios para pessoas com problemas cardiovasculares. Escovar os dentes teve repercussões positivas para toda a sociedade.”

Agora, sob o incansável escrutínio da ciência séria, a meditação terá sua chance de provar que não se trata de moda passageira nem de promessa genérica de cura para todos os males.

GLOSSÁRIO DA MEDITAÇÃO

Mindfulness: prestar atenção a processos mentais e corporais, um aspecto essencial da meditação. Você pode praticar mindfulness de várias maneiras: prestando atenção à respiração, aos seus pensamentos, às sensações do corpo. O termo pode ser usado para se referir ao ato de prestar atenção ao seu entorno ou à uma atividade específica (como comer, andar).

Bondade amorosa: prática que consiste em cultivar pensamentos amorosos e altruistas em relação a pessoas de quem você gosta e de quem não gosta.

Varredura corporal: técnica de meditação focada basicamente em sentir as diferentes regiões do corpo, uma a uma.

Mantra: palavra ou frase que é repetida mentalmente em algumas técnicas, como a meditação transcendental.

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