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A nova série de Gordon Ramsay é uma tentativa meia-boca de seguir os passos de Anthony Bourdain

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Quando saiu a notícia da série de Gordon Ramsay para a National Geographic Uncharted ano passado, os críticos chamaram a ideia, com razão, de “a última coisa que o mundo da culinária precisa agora” e uma “bagunça colonialista”, e descreveram Ramsay como não sendo “nenhum Anthony Bourdain”, que tinha morrido apenas um mês antes. O impetuoso chef britânico respondeu exatamente como era de se esperar. “Julgue [Uncharted] quando tiver assistido”, ele disse ao Entertainment Weekly, “mal posso esperar pra fazer esses caminhoneiros amargos que não têm mais o que fazer da vida engolirem suas palavras”.

Uncharted estreou com um piloto passado no Vale Sagrado dos Incas no Peru, onde Ramsay escala uma montanha com o aclamado chef Virgilio Martínez Véliz, aprende a preparar pratos locais como porquinho-da-índia assado, e depois apresenta pratos inspirados no que ele aprendeu para os idosos locais. A série de seis episódios passa por Nova Zelândia, Marrocos, Havaí, Laos e os pântanos do Alasca. Uncharted tem algumas partes engraçadas: Ramsay faz piadas consigo mesmo (“Sou o Gordon James, não James Bond”, ele diz quando vê o penhasco que vai ter que escalar); ele anda de moto, e cozinha a céu aberto em grande altitude. Ainda assim, depois de assistir três episódios, acho que é justo dizer: Uncharted parece menos engolir aquelas críticas e mais como mastigar cartilagem – tedioso e sem graça.

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Como muito disso aconteceu durante um ano inteiro, vamos revisitar a polêmica. Como descrito no press release, o então em pré-produção Uncharted teria três partes: “mostrar os segredos da culinária de uma cultura” através de exploração, “rastreando tradições de alta octanagem, passatempos e costumes específicos de uma região na esperança de descobrir o não-descoberto”, e “testar Ramsay contra os locais, colocando suas próprias interpretações de pratos regionais contra clássicos testados e aprovados”.

Essa inclinação para “antropologia através da culinária” dependia de uma fundação do colonialismo, Alicia Kennedy escreveu no Washington Post. O que já não era uma boa ideia para a plataforma que acabou de reconhecer publicamente sua história racista e seus efeitos nas pessoas que cobriu. Havia essa ideia de que culturas estrangeiras não são válidas ou reais até que experimentadas por ocidentais – “Esse é definitivamente território não-mapeado”, Ramsay diz no final da apresentação da série, apesar de ter sido levado para as comunidades por guias locais – e também a ideia de que o conhecimento ocidental é necessário para melhorá-las.

“O ridículo da premissa de Ramsay se baseia na crença falha de que as técnicas culinárias do Velho Mundo são o padrão pelo qual todos os pratos devem ser medidos. O que absolutamente não é verdade”, disse a agora crítica de restaurantes do San Francisco Chronicle Soleil Ho no artigo de Kennedy. As notícias de fevereiro passado da abertura do restaurante Lucky Cat de Ramsay em Londres – descrito como “o destino definitivo para culinária asiática autêntica e refinada – geraram sentimentos parecidos.

Para outros, a ideia de que um homem conhecido principalmente por xingar adoidado podia abordar viagens com o mesmo nível de cuidado e respeito que Bourdain também parecia improvável. “O som que você ouve é Bourdain, que morreu em junho”, escreveu Tim Carman, também no Washington Post, “tentando convencer São Pedro a deixar ele descer pra Terra por um dia para estapear alguma noção em Ramsay, que aparentemente não leu o memorando Colombo sobre homens brancos ‘descobrindo o não-descoberto’”.

Bourdain ganhou o respeito das pessoas das culturas que cobriu porque ele se sentava, dividia o pão e ouvia. “Pessoas negras amavam aquele cara porque ele não se apropriava, quando se tratava de nós, tudo que ele fazia era celebrar. Ele disse ao mundo que nós éramos o centro da culinária do sul dos EUA e do Brasil, e nos deixou falar por nós mesmos”, tuitou o historiador de culinária Michael Twitty, que acrescentou que Bourdain “nos desafiou a ver não o bom ou o mau, mas o humano”.

As críticas precisam ser discutidas porque, assistindo Uncharted, parece vagamente que o canal levou algumas delas em consideração. O aspecto controverso da competição, por exemplo, não é tanto um desafio de cozinha estilo Master Chef, mas Ramsay se sentando casualmente com um grupo de idosos peruanos, servindo a eles o que ele aprendeu sobre sua culinária, e tendo que ouvir que sua carne mal passada não era uma escolha popular. “Quero cozinhar o que entendi”, diz Ramsay, antes do desafio de culinária. E em vez de gritar com as pessoas, as obscenidades de Ramsay são reservadas para situações: pendurado na beira de uma montanha, ou sendo surpreendido por um porquinho-da-índia, por exemplo.

Mesmo sendo impossível saber que decisões aconteceram nos bastidores, a série ainda parece um recuo. Ela meio que belisca pedaços de outras séries – a autenticidade de Parts Unknown, os ramsaynismos de Kitchen Nightmares, o fator de choque de Man vs. Wild – sem nunca realmente se comprometer com nenhum deles. O resultado é uma série que não é de todo ruim, mas meio chata de assistir. Para alguns, imagino, isso é um alívio quando o se esperava era algo completamente ofensivo. Mas se uma série de viagens parece perdida, qual o ponto?

Do ponto de vista do espectador, um programa de viagens de sucesso vem com um apresentador que consegue transmitir experiências que podemos não ter a chance de experimentar. Sem Reservas e Parts Unknown funcionavam, por exemplo, porque Bourdain parecia no controle da narrativa; ele estava lá para fazer as perguntas, não para respondê-las. Em Uncharted, Ramsay não parece seguro de qual é a narrativa e seu papel nela – ele deve ser o Ramsay Legal, ou o Ramsay que todo mundo aprendeu a amar (e odiar)?

Ramsay, na versão mais vendida, o chef machão branco autoritário e enraivecido, não é o amigo de bar compreensível de Bourdain. Se Bourdain nos ajudou a ver “não o bom ou o mau, mas o humano”, como escreveu Twitty, Ramsay, através de Kitchen Nightmares, opera no binário de bom e mau, com pouca consideração pelo colateral humano no meio disso. Para Ramsay funcionar no contexto de Uncharted – dependente do conhecimento e experiência local de outros, em lugares mais desafiadores que a cozinha – a série precisava de ainda outro Ramsay.

Essa mudança, claro, é boa. Mas parece que para Uncharted, tem um problema aí: Ramsay fica preso entre dois mundos. Há um desejo claro da parte dele de aprender e crescer com outras culturas, mas ainda há a capa da personalidade de longa data de Ramsay, construída sobre a fundação de ser entendido como a única pessoa na sala que vale alguma coisa. No contexto de como conhecemos Ramsay, a consideração da série parece forçada e tênue. Como resultado, o programa não consegue se decidir também, o que o torna uma experiência não muito atraente.

As partes cheias de adrenalina e a disposição de Ramsay de seguir a deixa de qualquer coisa que seus coapresentadores joguem nele empurram a série, mas no final das contas, não há muito impulso por trás da história. Qual o ponto de Ramsay ouvir que sua comida é boa ou ruim, além de sentir uma certa satisfação pelo seu comportamento escroto em outros programas? E claro, Ramsay presta atenção nos locais ensinando seus costumes e tradições, mas é fácil imaginar se ouvir foi tão tedioso pra ele quanto é assistir a série.

Talvez Uncharted estivesse condenado desde a concepção, talvez os críticos tenham colocado muita pressão na criação, talvez Ramsay não tenha pego o sentimento da coisa. Em qualquer caso, o programa não honra o legado nem de Parts Unknown nem de Kitchen Nightmares. Essas duas séries, pelo menos, tinham um pouco mais de coração.

Matéria originalmente publicada na VICE EUA.

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