Craig Mazin não nasceu na União Soviética. Ele não fala russo. Ele não estava lá, em 1986, quando o Reator 4 da Usina Nuclear de Chernobyl explodiu, soltando uma quantidade sem precedentes de radiação no ar e matando de centenas a dezenas de milhares de pessoas – um número ainda debatido 33 anos depois. Ele não estava lá para ver a explosão tornar cidades inteiras inabitáveis, acelerar o colapso da URSS, e remodelar para sempre nosso relacionamento coletivo com o poder aterrorizante do átomo. Mas de algum jeito, em sua minissérie de cinco partes para a HBO Chernobyl, ele conseguiu capturar esse desastre, seu rescaldo e as vidas dos afetados com tanto poder que é difícil acreditar que ele não viveu tudo aquilo.
Mazin, criador, roteirista e produtor-executivo de Chernobyl, conta muito mais que a história do que deu errado na usina nuclear que abastecia quase 10% da Ucrânia Soviética nos anos 1980. Sua dramatização é sobre as falhas do sistema soviético, e o conjunto único de problemas impossíveis de resolver que esse sistema criou. A série é sobre “o preço das mentiras”, uma frase que encontramos na primeira cena, e o perigo de um mundo sem verdade. Mas mais que qualquer coisa, isso é sobre humanidade: Na exploração de Chernobyl das pessoas responsáveis pelo desastre, os primeiros chamados para ajudar que morreram combatendo o fogo, e os cidadãos comuns cujas vidas mudaram irrevogavelmente depois disso, a série nos dá um retrato da humanidade em toda sua complexidade – tão horrível, e bela, quanto a coisa real.
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Chernobyl consegue isso, em parte, aderindo o máximo possível ao fato histórico. Cada personagem principal, menos um – uma física nuclear interpretada por Emily Watson – tem um equivalente da vida real, do cientista no comando dos esforços de limpeza (Valery Legasov, interpretado por Jarred Harris), até a esposa de um bombeiro na cena da explosão (Lyudmilla Ignatenko, interpretada por Jessie Buckley). As roupas que os personagens de Chernobyl usam, os carros que dirigem, os cigarros que fumam, os copos de onde bebem, o papel de parede de suas casas – tudo é incrivelmente preciso, um produto de mais de dois anos e meio de pesquisa.
Então como Craig Mazin, um roteirista de 48 anos do Brooklyn, conseguiu contar tão bem a história de Chernobyl? Por que ele se sentiu tão atraído pelo caso, e por que estava tão comprometido em acertar cada detalhe, até os botões do uniforme de um bombeiro? Essas perguntas, imagino, estão na cabeça de vários espectadores de Chernobyl; elas estavam na minha desde que o nome dele apareceu na tela no final do primeiro episódio.
Liguei para Mazin para conseguir respostas. Antes do final de Chernobyl na segunda-feira, falamos sobre a obsessão dele por precisão, até onde ele foi para consegui-la, e a importância de contar a verdade numa história sobre mentiras.
VICE: Como você começou a pensar sobre o desastre de Chernobyl, e como foram os primeiros estágios de ler e pesquisar sobre o caso?
Craig Mazin: Eu tinha 15 anos quando Chernobyl aconteceu, então sempre pensei vagamente nisso na maior parte da minha vida. Mas por volta de 2015, me ocorreu que eu não sabia como o acidente tinha acontecido, o que parecia um lapso bizarro no meu entendimento do mundo e como ele funciona. Então comecei a ler. Eu honestamente só queria saber, de um ponto de vista científico, o que exatamente deu errado naquela noite. E o que descobri enquanto continuava lendo foi algo chocante, marcante e que não saía da minha cabeça. Foi um pouco como se eu tivesse descoberto uma guerra sobre a qual ninguém tinha escrito profundamente. E aí, claro, descobri que as pessoas tinham escrito – era só que isso não tinha cruzado a consciência coletiva. E fiquei obcecado.
Sei que você leu Vozes de Chernobyl de Svetlana Alexievich. Quão importante como fonte foi esse livro, e quais outras fontes primárias você usou para construir sua compreensão do que aconteceu?
Usei todas as fontes que consegui encontrar. Li artigos de jornais científicos; li relatórios governamentais; li livros escritos por cientistas soviéticos que estiveram em Chernobyl; livros de historiadores ocidentais que pesquisaram sobre Chernobyl. Assisti documentários; li depoimentos em primeira pessoa.
E aí você tem Vozes de Chernobyl, que é único. O que Svetlana Alexievich fez aqui, acho, foi capturar um aspecto da história que raramente vemos, as histórias das pessoas que de outra maneira você nem saberia que existiram. Costumamos ver a história pelo ponto de vista dos grandes participantes, e ela mostrou a história através dos olhos dos seres humanos. Eles são iguais a ela: Sejam generais, líderes de partido ou gente comum, não importa. E achei isso maravilhoso. O livro realmente me inspirou.
Quanto tempo levou o processo de pesquisa até você realmente se sentar para escrever Chernobyl?
Eu diria dois anos e meio. De pesquisa, preparação e estruturação. Claro, esse não era meu único trabalho – eu estava escrevendo filmes, reescrevendo filmes, e sendo marido e pai – então tinha muita coisa acontecendo. Mas eu finalmente estava pronto para mergulhar na escrita em 2016.
Por que era tão importante pra você fazer uma série o mais precisa e autêntica possível?
Bom, no cerne dessa história está uma pergunta sobre o que acontece quando nos desconectamos da verdade. E o sistema soviético era basicamente um monumento à mentira útil. Eles transformaram mentir numa arte: Eles mentiam uns para os outros, mentiam para as pessoas acima dele, mentiam para as pessoas abaixo, e faziam isso por um senso de sobrevivência. No final das contas, isso se tornou uma coisa esperada, e a verdade foi degradada. Quando a verdade ameaçava emergir, ela era atacada. Então achei que o pior jeito possível de contar essa história seria contribuindo com o problema: ficcionalizar demais ou dramatizar demais.
Você tem que fazer mudanças. Você não pode descrever dois anos em cinco horas e não fazer mudanças. Essa é outra razão para eu ter feito um podcast acompanhando a série com Peter Sagal: para falar sobre as mudanças e por que as fiz.
Quanto você baseou os diálogos no seu material de fonte? Sei que várias vezes durante a série, os personagens dizem o que seus equivalentes na vida real disseram quase palavra por palavra. Por que você fez essa escolha?
Algumas vezes as pessoas disseram coisas que achei marcantes. E quando eu achava algo marcante, bom, qual o ponto em mudar? Então quando [o supervisor do Reator 4 Aleksandr] Akimov diz “Fizemos tudo certo”, e imediatamente depois da explosão diz “Algo estranho aconteceu” – ele disse isso mesmo. Foi exatamente isso que ele disse: “Algo estranho aconteceu”. Não consigo pensar numa frase melhor que essa. E por que iria querer? Essa é a coisa mais incrivelmente humana para se dizer, sabe?
Como roteiristas, nosso trabalho é tentar criar, num espaço falso, algo que parece verdade. É isso que é ficção: Inventar personagens que não existem; fazer parecer que eles existem. Se você descreve um personagem que existiu mesmo, e você tem frases assim, você precisa usar.
Falei recentemente com Slava Malamud, um jornalista freelance que está escrevendo uma análise exaustiva de cada episódio. Ele nasceu e cresceu na URSS, e se lembra bem de Chernobyl. Ele me disse que o jeito como esses personagens falam – mesmo falando inglês com sotaque – era o jeito como as pessoas daquela época, daquele lugar, falavam. Como você conseguiu isso?
Vi que ele disse isso, e fiquei emocionado, foi muito gratificante de escutar. Não sei como fiz isso, honestamente. Acho que simplesmente li e absorvi muito. Assisti vários documentários. Olhei os rostos. Tinha algo que – não sei se era soviético ou algo do Leste Europeu, algo eslavo, russo, ucraniano – tem uma sensibilidade ali. E admiro isso. Acho que essa é a coisa mais importante: admiro como eles pensavam e agiam. É lindo.
Sabe, nosso diretor, Johan Renck, trabalhou pesado com os atores para ter certeza que eles ocupassem um certo físico soviético. Tem um peso ali. A experiência das pessoas soviéticas em 1986 era de quase um século de dificuldades, miséria, guerra e fome, então isso está nos ossos deles. E aí você tem mais essa coisa: Chernobyl.
Você já disse que pessoas que viveram na União Soviética durante Chernobyl revisaram seus scripts – particularmente uma mulher, que leu todos eles – e que você fez mudanças baseadas nas opiniões dela. Você pode falar um pouco mais sobre sua relação com essa mulher, e como foi trabalhar com ela?
Falei com várias pessoas, mas sim, teve uma mulher especificamente com quem trabalhei de maneira muito próxima. Eu não a conhecia pessoalmente antes, mas um roteirista disse: “Sabe, minha esposa cresceu na Ucrânia Soviética; ela estava lá em 1986, se você quiser falar com ela”. Então fiz algumas perguntas, meio que a entrevistei. E ela se mostrou alguém muito consciente, atenciosa e inteligente.
Tento viver sob o princípio de que se você vai contar uma história que não viveu, conte com o máximo de respeito possível com as pessoas que viveram. E esse foi um dos jeitos de mostrarmos nosso respeito: acertar os detalhes. Ficamos obcecados com isso. Ela foi incrível, ela captou coisas que acho que nunca saberíamos sem ela. E claro, tivemos o benefício de ter uma equipe com muito lituanos. Muitos deles cresceram na União Soviética, então às vezes eles diziam “Olha, vocês deveriam fazer isso, não aquilo”.
Com quem mais você falou que tinha um conhecimento em primeira mão de Chernobyl e viveu na União Soviética?
Bom, nos encontramos com pessoas que moravam em Pripyat na época do desastre. Falamos com muita gente. Falamos com antigos liquidatários. Mas falei com algumas das pessoas mais influentes antes de escrever a primeira palavra, mesmo antes de ir para o Leste Europeu. Os cientistas. A primeira pessoa com quem falei, em termos de pesquisa para o projeto, foi um físico nuclear da USC, que concordou em passar uma hora me explicando o básico de como o acidente aconteceu.
Pelo que sei, vocês continuaram consultando cientistas nucleares para garantir que sua descrição de como o Reator 4 funcionava, e como explodiu, fosse precisa. Por que era tão importante acertar as especificidades do que deu errado num nível científico?
Porque respeito a ciência, e respeito os cientistas que resolveram aquele problema. E respeito o conhecimento, o que acho que atualmente… não sei, está fora de moda? Então meu sentimento era, se você fazer essa série, e há ciência nela, quero que cientistas assistam e digam “Sabe de uma coisa? Obrigado. Bom trabalho”. [Risos]
Em se tratando de ciência, as pessoas geralmente dizem “OK, ele se importou. Ele se importou o suficiente para ser preciso”. Se você não entende a ciência subjacente de uma história que é científica em pelo menos um aspecto significativo, então não escreva. É assim que me sinto.
E foi um processo intensivo pra você, tentar entender toda a ciência?
Sim, mas foi um trabalho de amor. Eu tinha uma tendência científica na universidade, então entender muito disso foi um prazer. Não posso fingir que sou um físico nuclear qualificado. Ainda há aspectos de um reator nuclear, ou pelo menos daquele reator, que são complicados pra mim até hoje, particularmente como a água e o vapor se movem – posso falar disso até ficar chato. Mas o essencial já é incrível. E continuei pesquisando, fazendo perguntas difíceis quando não entendia alguma coisa e achava que era importante entender.
“Tento viver sob o princípio de que se você vai contar uma história que não viveu, conte com o máximo de respeito possível com as pessoas que viveram. E esse foi um dos jeitos de mostrarmos nosso respeito: acertar os detalhes.”
Vamos falar um pouco sobre o design de produção. Não só, digamos, os uniformes dos bombeiros são réplicas exatas, mas as mochilas das crianças, as xícaras, as porções que os personagens comem, o papel de parede – é tudo muito preciso. Quão difícil foi o processo de acertar tudo isso?
Bom, eu adoraria dizer que pesquisei os papéis de parede e as xícaras, mas não pesquisei. O design de produção foi liderado por Luke Hull, que fez um trabalho inacreditável. E ele tinha uma equipe por trás dele trabalhando nos acessórios de cena, decoração, construção de cenários e papel de parede. Mas boa parte disso já estava nos locais de filmagem, que sabíamos que não tinham mudando muito desde a era soviética, e aprendendo com isso. Tínhamos um entendimento geral desde o começo: precisão é tudo para nós. Eu queria que as pessoas da Ucrânia, Rússia, Bielorrússia assistissem a série e dissessem “Você nos viu; obrigado por isso”. Em vez de “Esse é só outro sonho americanos de como era ser um cidadão soviético”.
Quantos americanos vão notar que as placas de um carro rodando pela União Soviética tinham a abreviação correta para Kiev Oblast? Doze? Não sei. Mas quero que eles saibam! As pessoas que sabem, quero que elas vejam e digam “Uau, eles se importaram”. Essa foi uma tragédia horrível para elas. Quão estranho seria se outro país fizesse um filme sobre o 11 de Setembro e, sei lá, os bombeiros estivessem usando figurinos esquisitos?
Se o objetivo era que o pessoal da antiga União Soviética gostasse de Chernobyl , parece que você conseguiu.
Pelo que posso dizer, tocamos num ponto sensível na Ucrânia e Rússia. Essa é a parte mais gratificante, ter feedback de ex-cidadãos soviéticos dizendo “Obrigado” e “Vocês acertaram direitinho isso”. Sim, vamos ouvir reclamações dos – não sei como chamá-los – apologistas soviéticos, pessoas que veem com carinho os velhos dias da URSS, uma frase estranha de se dizer. Mas no geral, a maioria das pessoas parece ter tido uma impressão positiva, porque – como eu disse muitas vezes – sim, o vilão dessa história é o sistema soviético. Mas o herói dessa história, coletivamente, é o povo soviético. E espero que eles sintam orgulho assistindo a série.
Chernobyl se afasta algumas vezes dos fatos restritos. Qual a razão por trás de fazer pequenos ajustes ao que realmente transpirou e o que foi dito, ou inventar um personagem aqui e ali?
Tínhamos uma regra básica: se você precisasse fazer uma mudança para contar a história, narrativamente, essa era a única razão para mudar alguma coisa. Não podíamos mudar as coisas para torná-las mais assustadoras; não podíamos fazer mudanças para torná-las mais dramáticas, ou mais sensacionais, mais horríveis. Acho que a verdade do que aconteceu lá já é horripilante e perturbadora o suficiente. Mas deixei claro para a HBO e a Sky, antes de filmar qualquer coisa, que minha intenção era fazer um podcast acompanhando a série, onde eu me responsabilizaria por essas mudanças. Nunca quis que as pessoas achassem que tomei atalhos, ou estava tentando me safar de alguma coisa. Nenhuma dessas mudanças foi feita para aumentar o drama.
Especialmente depois de ter se aproximado tanto do fato histórico por boa parte da série, você sentia um conflito em fazer algumas dessas intervenções e mudanças?
Sim. [Pausa] Às vezes eu pensava “Bom, tem uma diferença entre o jeito perfeito de fazer alguma coisa em termos de precisão histórica, e o jeito perfeito de fazer algo que as pessoas vão assistir e apreciar o que importa”. Não dá para ter os dois, pelo menos não nesse formato. Você pode escrever um livro enorme, onde fica o mais perto possível dos fatos, porque esse é o propósito do meio. Mas para esse meio, não. Acho que ninguém ia querer assistir, não sei, 100 horas de Chernobyl brutalmente detalhadas, nem me dariam dinheiro para fazer a série. Então você tem que fazer escolhas. Mas sim, posso dizer o seguinte: Senti toda vez que precisei mudar alguma coisa. E tentei, todas as vezes, não mudar. Então [ajustes] assim – doía um pouco sempre que eu fazia. E uma coisa que me fez lidar com isso era saber que eu poderia falar livremente sobre as mudanças depois, para as pessoas saberem os motivos e detalhes.
Muita gente que assiste Chernobyl, termina um episódio e imediatamente começa a pesquisar a história do acidente. Como você se sente com essa reação comum – que você estava inspirando as pessoas a procurar por esse evento?
Eu adorei. Não por uma questão de ego. As pessoas não estão fazendo isso porque estão fascinadas por mim; estão fazendo isso porque estão fascinadas pela mesma coisa que me fascinou. Chernobyl. É uma história marcante. Além disso, acho que no Ocidente nunca tivemos uma compreensão apropriada da mentalidade e do cotidiano real dos cidadãos soviéticos no meio da Guerra Fria. Não era necessariamente o que sempre nos disseram: Havia risos. Havia felicidade. Havia amor. Havia muito da experiência humana. E também havia coragem, e um espírito forte. E acho que as pessoas ficam fascinadas por isso tanto quanto com o resto da história.
Governo são diferente, filosofias são diferentes, mas quando se trata da vida, uma professora de escola é uma professora de escola. Um açougueiro é um açougueiro. Somos pessoas. E somos muito mais comuns do que podemos imaginar.
A entrevista foi editada e condensada para maior clareza.
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