Até a coisa descarrilhar, o filme de Danny Boyle de 2000 A Praia parece só outra história clichê sobre ocidentais viajando pelo Sudeste Asiático. Leonardo DiCaprio estrela como Richard, um jovem americano branco aparentemente bem de vida que vai pra Tailândia na busca do senso efêmero de exploração que – segundo a lógica de todos os ocidentais brancos jovens aparentemente bem de vida que fazem esse tipo de viagem – só pode ser alcançado através de noções idealizadas do Sudeste Asiático e seu potencial de aventura. Quando Richard e seus amigos encontram a praia pristina, os locais deixam eles ficarem com a condição de manter a praia em segredo, para não atrapalhar a vida de quem já morava lá. Richard, claro, trai a confiança dele e conta para outras pessoas sobre a ilha, levando a uma rede de mentiras, mortes e o fim de sua comunidade “perfeita”.
Apesar do elenco notável do filme, com DiCaprio no meio de sua fama pós-Titanic, A Praia não foi bem de crítica. Escrito como uma história confusa e exagerada que só olha pro próprio umbigo, o filme só tem 20% no Rotten Tomatoes, e ganhou o posto de empreendimento pior recebido de Boyle. Vinte anos depois, essas marcas continuam.
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Mas a mensagem de A Praia ganhou um novo sentido na era da cultura influencer. A polêmica cercando A Praia e seus efeitos nos ambientes locais só serviu para prever um tema comum das notícias hoje em dia; o filme não só retrata a corrupção de um paraíso tailandês pouco conhecido, mas levou a destruição na vida real da praia onde foi filmado, e nos últimos anos, enquanto caçadores de conteúdo e “nômades digitais” tomaram nossos feeds, uma situação parecida vem acontecendo globalmente em destinos antes intocados. Através das lentes de 2020, o Richard de DiCaprio é só outro influencer na Tailândia, pouco se fodendo para a vida dos locais e causando caos em locais remotos, enquanto usa a experiência como uma “aventura” inspirada. Mas quando A Praia foi filmado, ele não tinha um celular para mostrar cada movimento seu por likes.
Quando Boyle e sua equipe foram para a Tailândia para filmar A Praia, eles escolheram a Baía Maya de Ko Phi Phi Le para as cenas mais icônicas. De lá, os danos causados pela produção do filme vieram em fases: primeiro, eles tinham que fazer a Baía Maya parecer um destino tropical incrível para turistas ocidentais. Em 1999, antes mesmo do filme ser lançado, John Vidal do Guardian escreveu que os problemas já tinham começado; o local – apesar de a Baía Maya ficar num parque nacional “intocado” – não atendia os padrões que a equipe de Boyle tinha em mente na época, e com a permissão do governo tailandês, a equipe do filme mudou a paisagem sem consultar ambientalistas ou locais que contavam com a praia para turismo. Eles tiraram arbustos, apesar de avisos de que eles eram necessários para evitar erosão, e plantaram palmeiras no lugar; eles limparam a terra e aumentaram a praia. DiCaprio e a Fox, que distribuiu o filme, garantiram aos locais que ia tudo dar certo.
Depois que a filmagem de A Praia acabou, os efeitos do redesign pioraram mais do que os produtores esperavam, segundo Vidal. Sem aqueles arbustos, a areia erodiu depois de várias tempestades. As plantas da área foram devolvidas, mas logo morreram, assim como os corais do mar.
Apesar da recepção morna da crítica, o retrato do filme da praia linda causou um boom de turismo. Pelos 18 anos seguintes, mais de 300 barcos levaram 5 mil turistas para a Baía Maya todos os dias, segundo o South China Morning Post. O fluxo constante de turistas e motores de barcos mataram recifes e peixes, e assustaram os pássaros locais. “Herdamos um ecossistema 100% morto”, o conservacionista de corais Anuar Abdullah disse ao SCMP.
Estranhamente, o fluxo destrutivo de turistas é quase igual ao que A Praia criticava. Em março de 2018, depois de quase duas décadas de danos, o Departamento de Parques Nacionais e Vida Selvagem da Tailândia anunciou que ia fechar a Baía Maya para turistas por quatro meses todo ano, para tentar recuperar o equilíbrio dos recifes de coral e vida marinha da ilha. Em dezembro, a Tailândia estendeu o fechamento para mais dois anos. Quando conservacionistas reconstruíram os jardins de coral na baía, a vida animal, incluindo tubarões, peixes e pássaros, começaram a retornar. “Tirando o fator humano, a natureza prospera”, Abdullah disse ao SCMP.
O excesso de turismo na Baía Maya veio antes das redes sociais, mas na era de vlogs de viagem e geotags, histórias similares vêm acontecendo em todo o mundo. Enquanto o filme de DiCaprio pode ter sido usado para alimentar o buzz de grandes viagens nos 00, qualquer um no Instagram e YouTube agora serve como #goals. As redes sociais aceleraram o problema, gerando interesse em destinos que não estavam preparados para um massacre turístico.
Depois de décadas de problemas com turistas descuidados, a Filipinas fechou temporariamente a praia de Boracay em 2018. Ano passado, o governo da Indonésia considerou proibir totalmente a entrada de turistas na Ilha Komodo, numa tentativa de conservar a população de dragões-de-komodo, e instagrammers foram culpados por perturbar a vida selvagem da Poppy Reserve do Antelope Valley da Califórnia saindo da trilha para tirar a foto perfeita.
Não é surpresa que publicações como a Travel +Leisure, Conde Nast Traveler e New York Times tenham questionado se viagens de geotag para o Instagram estão acabando com as maravilhas naturais do mundo. Desde 2018, o Leave No Trace Center for Outdoor Ethics vem listando as melhores práticas para desfrutar da natureza, e na versão moderna do pedido dos locais para Richard, alguns destinos agora pedem que os visitantes não façam geotag de sua localização.
“Se os entusiastas da natureza pararem pra pensar sobre os impactos em potencial e as consequências associadas com uma ação em particular, isso pode ajudar muito a proteger nossos espaços compartilhados ao ar livre”, diz o guia do Leave No Trace. “Pra isso, encorajamos os viajantes a pensar sobre suas ações e as consequências de postar fotos, dados de GPS, mapas detalhados, etc. nas redes sociais. Pedimos para as pessoas pensarem na proteção e sustentabilidade dos recursos e nos visitantes que virão depois deles.”
Vinte anos depois, muita gente pode não lembrar de A Praia ou achar que a Baía Maya era só mais uma ideia de férias passageira. Mas para os locais, os efeitos do filme só agora estão começando a desaparecer. Talvez a coisa mais terrível e memorável do filme é como ele ainda retrata nossa capacidade de pegar uma coisa bela e destruí-la completamente.
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