Na cidade de São Paulo, não é nada incomum ver pessoas vivendo nas ruas e embaixo de pontes, mas um processo curioso tomou conta da região do Viaduto Bresser, no bairro do Belenzinho. Em uma das saídas que beira a Radial Leste, mais de 90 barracos foram construídos com madeiras, lonas e telhas no canteiro da via e começaram a formar mais um bairro sem CEP.
Quando Anderson Zaca, fotógrafo e documentarista, me falou sobre sua ideia do projeto CEPs Invisíveis, não achei que íamos experimentá-lo tão logo. No primeiro dia que vi a Comunidade do Cimento, como é conhecida, eu e Zaca caminhávamos observando a variedade de cores e formatos da construção dos barracos. Alguns levavam frases religiosas na faixada, outros propaganda, tags de pixação e um, ironicamente, o rosto do Luciano Huck.
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Construídos lado a lado sobre a calçada em uma ocupação que começou a se formar em 2012, os barracos estão apoiados no muro de um terreno usado por uma empresa de logística que beira a linha do trem. Justamente por causa dessa empresa é que a região começou a atrair pessoas desempregadas. Muitos dos moradores ganham dinheiro com eventuais ajudas em descarregar os caminhões que chegam.
Nosso primeiro contato com um dos moradores foi abordando Weslei e Jonatan, um casal que estava do lado de fora do barraco. Sentado em um sofá, um deles lavava roupas em uma bacia, mais uma forma de conseguir dinheiro por ali. Perguntamos se havia alguém que coordenava a construção dos barracos ou liderava o dia a dia, mas eles disseram que não. Apenas que havia, embaixo do viaduto, um equipamento da Secretaria Municipal de Assistência Social desativado, mas que ainda era usado pelos moradores – lugar onde havia água e eles mesmo se organizavam para criar as regras de uso para tomar banho, lavar roupas e usar o banheiro.

Os que tinham conhecimento de eletricista, também ajudavam a compartilhar o “gato” de energia do poste para os barracos, mas não havia nenhuma liderança oficial. Ele contou também que há poucos dias haviam numerado todos os barracos, menos com o intuito de organizar, mas principalmente para contabilizar. Em março desse ano, a prefeitura também divulgou que 266 famílias estavam morando ali.
O lugar tornou-se ponto de referência para pessoas desfavorecidas. Famílias de diversas partes da cidade chegam nos finais da semana para receber as doações que chegam de organizações filantrópicas. Weslei também fez questão de comentar sobre o Padre Julio Lancelotti, pároco da Igreja São Miguel Arcanjo no bairro da Moóca que ajuda as famílias da região e é defensor da comunidade LGBT.

Muitos dos moradores da Comunidade do Cimento estão ali porque sofreram homofobia dentro de casa e resolveram seguir a vida sem a pressão da família.
Resolvemos voltar no final de semana para ver como a coisa funcionava nos dias mais movimentados e fazer nossa própria doação, imprimindo alguns dos retratos de quem se interessasse e começar a formatar o projeto de CEPs Invisíveis, que foi idealizado por Zaca e que busca documentar as diversas formas de moradia informal nas cidades, porém sempre com um olhar focado na dignidade e não na miséria usual desse tipo de registro.

Quando chegamos, no domingo, por volta das 11 da manhã, uma fila de pessoas assistia a um culto evangélico improvisado de uma kombi de doações. Primeiro a reza e depois a doação, me explicou Weslei mais tarde, dizendo que nem todos fazem isso.
Fomos diretamente ao barraco deles e batemos palmas. Em menos de um minuto Wesley saiu alegre, desculpando-se pela demora. Dissemos que havíamos trazido a impressora para fazer os retratos da comunidade e a notícia correu rapidamente. Barba, o vizinho, puxou uma extensão para ligarmos a impressora e se apressou um abrir um Guaraná para todos que estavam em volta. Um evento oficial estava criado em menos de cinco minutos.

As mães com seus filhos pequenos foram as que mais se interessaram por nossa doação incomum, e logo colocaram vestidos e laços na cabeça das meninas. Muitos também queriam fotografar seus animais de estimação.
Tivemos de acalmar os ânimos porque a impressora demorava para entregar as fotos finalizadas, mas a espera também fez com que pudéssemos conversar um pouco mais com as famílias. Enquanto Zaca fotografava e fazia algumas imagens em vídeo para o projeto, eu visitava os interiores dos barracos e gravava em áudio as histórias das pessoas que estavam ali. Todos desempregados, muitos com problemas de drogas e álcool, alguns com passagem na polícia, desavenças familiares de todos os tipos, mas todos com esperança das coisas mudarem logo.
O fato de não ter um comprovante de residência dificulta conseguir um emprego com carteira assinada. O problema do álcool ficou bem evidente quando fomos embora e as pessoas calmas que nos receberam agora estavam enrolando as palavras e envolvendo-se em discussões.

A falta de um CEP oficial também dificulta acesso à assistência básica. Renata, uma ex-auxiliar de cozinha, foi uma das que me disse que chamar o SAMU ali é inútil. “Eles não vem, você morre aqui mesmo”, disse. Mais um sinal da invisibilidade social e um problema comum da população moradora de rua.
“Agora que os barracos estão numerados, fico pensando o que vai acontecer se pedirmos uma pizza”, comentou Weslei, esperançoso com o início da organização do lugar. Mesmo sem questionar sobre os abrigos da prefeitura, ouvi explicações principalmente sobre a dificuldade de manter as famílias unidas nesses abrigos. Muitas vezes, disseram, não há vagas para todos juntos.

Depois de alguma horas de conversa, saímos entre abraços de agradecimento pela doação diferente e fomos convidados para voltar e conhecer mais dos barracos da Comunidade do Cimento.
Quando voltei 15 dias depois para falar sobre a possibilidade de expandir o projeto e dizer que Zaca planejava voltar, descobri que Weslei e Jonatan não estavam mais lá. Um dos vizinhos disse que tinham voltado para o Sul para resolver um problema de família, mas haviam deixado o número de celular anotado no muro onde antes ficava seu barraco. Além disso, ele me contou que no dia anterior a Tropa de Choque da Polícia Militar havia feito uma ação na comunidade e a situação havia ficado feia.
Em um dos barracos, enquanto revistavam um rapaz, sua esposa e mãe de seu filho de três meses resolveu reagir à truculência dos policiais e levou um tiro no peito. O incidente fez que com a rua mudasse de clima imediatamente. Barreiras de madeira em chamas ocupavam o asfalto enquanto os policiais lançavam bombas de efeito moral pelos ares. Apenas nessa hora entendi por que meus lábios estavam ardendo desde quando cheguei.

Os boatos de que um arrastão acontecia no local se espalhou rapidamente pelos moradores dos prédios da região que filmaram o caos do momento e enviaram para os jornais da cidade. O motivo do caos que impedia a passagem dos carros que vinham da Marginal era, no entanto, a revolta pela atitude da polícia. Desde então, todas as notícias sobre a Favela do Cimento parecem ter como objetivo retirar os moradores do local. Um CEP que de invisível vai para nulo, uma comunidade que se desmembraria. Enquanto desenhamos os próximos passos do projeto, queremos também entender qual é o destino dos moradores da comunidade a partir de agora.
Mais fotos do Anderson Zaca no Instagram.
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(Photo by Silas Stein/picture alliance via Getty Images)
