Por dentro da produção de orgânicos num assentamento do MST
O almoço sendo preparado. Foto: Débora Lopes/ VICE

FYI.

This story is over 5 years old.

Munchies

Por dentro da produção de orgânicos num assentamento do MST

Uma visita ao assentamento de Franco da Rocha, em SP, para provar queijos, leite e hortaliças sem conservantes ou agrotóxicos.

São 6h da matina e já estou de pé, pronta para ir até um assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) desfrutar de uma experiência gastronômica na qual será possível entender melhor a relação dos assentados com a plantação, venda e o consumo de alimentos orgânicos. Saio de casa em jejum, pronta para encher o bucho – não vou negar.

A expedição começa no SESC Bom Retiro, na região central de São Paulo, já que o evento integra o Experimenta, projeto que aconteceu em outubro para promover debates e oficinas sobre alimentação saudável e suas questões culturais e sociais. Um monitor alerta a todos: "Lá, podem haver algumas falas radicais, mas peço que respeitem. É a casa deles, e estamos sendo recebidos gentilmente".

Publicidade

A recepção foi feita pelo são bernardo Zangado. Foto: Débora Lopes/ VICE

Um ônibus de excursão pique CVC leva cerca de 30 pessoas que se inscreveram na expedição até Franco da Rocha, na região metropolitana de São Paulo. A viagem dura mais ou menos uma hora e, logo de cara, somos recebidos por um dog da raça são bernardo extremamente dócil. Dou risada quando descubro que seu nome é Zangado. Depois, me contam que ele veio de uma ONG de animais abandonados, assim como outros cães que existem por lá.

A primeira parada é na casa de Jesce e Daniel, casal que recebe o bando de famintos com uma mesa de café da manhã invejável. Ali, o leite e o queijo orgânicos que eles mesmos produzem são oferecidos. A textura do queijo minas é parecida com a do que compramos no mercado, mas menos úmido. Ainda assim, é extremamente suculento. E sem conservantes.

O queijo orgânico servido no café da manhã. Foto: Débora Lopes/ VICE

"Pode chover ou fazer sol. Tirar leite e tratar dos bichos é sagrado. Eles são como a gente, precisam comer", diz Daniel, contando sobre a rotina da família, assentada há três anos ali e com a produção dedicada aos derivados animais: ovos, leite, frango, linguiça e queijo.

Ele acorda todos os dias às 5h para ordenhar as vacas enquanto Jesce leva os três filhos pequenos à escola. "Quando você fala que é sem-terra, a pessoa acha que você anda com um facão", diz o agricultor.

A criação de animais de Daniel e Jesce. Foto: Débora Lopes/ VICE

Há dois anos, a família recebe excursões de estudantes de todas as idades em sua residência. Para eles, além da importância de ter jovens e crianças entendendo melhor e experimentando alimentos orgânicos, há também uma quebra de barreiras e preconceito. "A televisão só mostra sem-terra baderneiro, que vai quebrar praça. Mas eles não vêm mostrar aqui quem tá produzindo", menciona Daniel.

Publicidade

Os assentados Daniel, Jesce e seus três filhos. Foto: Débora Lopes/ VICE

Para Mariana Meirelles Ruocco, da equipe de curadoria do projeto Experimenta, o objetivo da ida até o assentamento é, também, promover essa proximidade entre população urbana e trabalhadores do campo. "E o contato das pessoas com a origem dos alimentos frescos, in natura, orgânicos, agroecológicos que, conforme o Guia Alimentar para a População Brasileira, são os que devem fazer parte das nossas refeições", justifica.

Cacho de banana orgânica. Foto: Débora Lopes/ VICE

Enquanto tomamos café da manhã, o almoço já está sendo preparado. É aí que surge Tio Mauro, um sujeito boa-praça de 56 anos que será nosso monitor e que pede para ser chamado assim – "nada de senhor Mauro". Ele nos conduz até um anfiteatro, onde explica melhor sua história pessoal e a do MST. Conta que conheceu o movimento quando morava nas ruas e era alcoólatra.

Durante um longo papo, as pessoas tiram suas dúvidas sobre o movimento e sobre a plantação. "O que encarece o orgânico no Brasil não é a produção no campo, mas, sim, o atravessador. Ele ganha 100, até 150 vezes a mais do que o produtor. Justamente porque ele não tem o conhecimento ou o tempo de expor seus produtos", explica Mauro.

Sem precisar os números da produção, parte do grupo de assentados obtém renda com o que é cultivado.

As alfaces orgânicas do MST. Foto: Débora Lopes/ VICE

No ano passado, estivemos na abertura da loja de orgânicos do MST em São Paulo, e o papo foi parecido. Hoje, os assentados pensam em novas formas de expandir a comercialização de seus produtos para além das feiras de orgânicos que participam. Tio Mauro conta que o assentamento Dom Tomás Balduíno está começando a viabilizar uma cesta de orgânicos para entregar na casa dos clientes.

Publicidade

Logo em seguida, retornamos para a casa de Daniel, onde é servido o almoço.

O picadinho servido no almoço. Foto: Débora Lopes/ VICE

Ovos cozidos, arroz, feijão, picadinho de carne moída, salada de tomate, alface verde e roxa, linguiça e farofa. Esse foi o cardápio do dia, exalando a mais brasileira das essências de comida caseira pelo ar. Fico entretida em fazer fotos e, quando chega minha vez de montar o prato, reparo que os ovos já acabaram. Bate, sim, uma leve tristeza, mas, diante de tantas delícias, não dá pra reclamar.

Um dos pratos durante o almoço. Foto: Débora Lopes/ VICE

Logo após o rango, Daniel e Jesce nos levam até um cômodo no qual funciona uma lojinha. Ali, são vendidos os produtos da família e outras coisas, como mel e doce de leite de outros assentamentos.

Fazemos uma longa caminhada debaixo de sol para conhecer uma das hortas do MST de Franco da Rocha e, durante o caminho, nos deparamos com pés de amora carregadíssimos.

As amoras que colhi. Foto: Débora Lopes/ VICE

As frutas estão super doces, então, coloco várias delas num copo plástico para comer depois. Acontece que elas se esparramaram dentro da minha mochila e rola uma lambança desagradável. Controlem a gula se um dia estiverem por lá.

Tio Mauro, assentado do MST em Franco da Rocha. Foto: Débora Lopes/ VICE

Quando chegamos à horta, são pés e mais pés de alface, almeirão, coentro, cebolinha, couve e repolho. Confesso nunca ter visto uma plantação de repolho de perto antes, e, Deus do céu, que coisa linda. Principalmente os repolhos roxos. Parecem flores gigantes. Bate um amor só de lembrar.

Nei, assentado responsável pela horta, atende as pessoas, que levam sacolas e mais sacolas de hortaliças.

Publicidade

Plantação de repolho roxo. Foto: Débora Lopes/ VICE

Quem parece feliz da vida é o chileno Hugo Sepulveda, que mora há 40 anos no Brasil. Amante de coentro, diz que vai usar o tempero para preparar o molho pebre, tradicional em seu país. "Faço todo domingo. Deixa a refeição com sabor do mar", conta. Pergunto se ele está gostando da visita e a resposta é sim. "Conheci muitas coisas que eram desconhecidas. Foi reconfortante saber que existe esse tipo de trabalho feito pelo MST."

Peço para Nei um pé de alface verde, um de alface roxa e 12 folhas de couve. Tudo dá R$ 6. Nos mercados de São Paulo, somente um pé de alface orgânico custa praticamente esse valor.

O chileno Hugo Sepulveda, feliz com seu pé de coentro. Foto: Débora Lopes/ VICE

Quando pego minha alface roxa nas mãos, rola uma alegria única. Lembro de quando era criança e vivia na estufa do sítio de um tio meu. Amava aqueles cheiros e texturas, e amava também observar a vida das minhocas, ainda que elas me dessem certa gastura.

Eu, meu pé de alface roxa e larvas. Foto: Débora Lopes/ VICE

Minutos depois, ainda caminhando pela horta do MST com minha nova amiga alface, sinto uma beliscada nos dedos. Quando olho, percebo pequenas larvas andando pelas minhas mãos e uma delas, provavelmente, me cutucou. Tento demonstrar minha aflição para Nei, que rebate: "Orgânicos, né".

Deixamos o assentamento com o sol se pondo, cheios de comida na barriga e nas sacolas. Antes de ir embora, vejo uma cena curiosa. Algumas senhorinhas, que pareciam muito desconfiadas quando botamos o pé no assentamento, fazem questão de tirar uma foto segurando juntas uma enxada nas mãos.

Siga a VICE Brasil no Facebook , Twitter e Instagram.