Os primórdios da propaganda subliminar no Brasil
"O Dr. Baskarán numa de suas atitudes dominadoras, olhos penetrantes e capazes de fazerem adormecer as mentes mais rebeldes, em tempo recorde”, dizia a Revista da Semana em 1951. Imagem: Reprodução/Revista da Semana

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Os primórdios da propaganda subliminar no Brasil

Técnica mobilizou publicitários e psiquiatras, foi tema de um programa de TV, pautou o debate político na Guerra Fria e inspirou um dos mais estranhos filmes do cinema nacional.

O filme Férias de Amor, dirigido por Joshua Logan em 1955, é um inventário do sonho norte-americano. A história gira ao redor de um triângulo amoroso entre um andarilho recém-chegado a uma pequena cidade do Kansas, a moça mais cobiçada dos bailinhos locais e o rico herdeiro de uma fábrica de elevadores. Subúrbios arborizados, automóveis vistosos, famílias prósperas, piqueniques, orquestras de swing, corpos bronzeados e entregadores de jornal montados em bicicletas são apenas alguns dos ícones a brilharem no technicolor de seus fotogramas. Mas, quase três anos depois de sua estreia, o melodrama da Columbia Pictures se tornaria símbolo de uma faceta bem mais controversa dos EUA.

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Durante um mês e meio, os espectadores que assistiram ao longa-metragem no Fort Lee Theater, em Nova Jersey, foram supostamente bombardeados por mensagens invisíveis. Sobre os rostos de William Holden e Kim Novak teriam sido projetados, 12 vezes por minuto, anúncios com duração inferior a três milésimos de segundo. As propagandas, sorrateiras, ordenavam: “Coma pipocas”, “beba Coca-Cola”.

"As propagandas, sorrateiras, ordenavam: 'Coma pipocas', 'beba Coca-Cola'"

Por trás do experimento estava James Vicary, pesquisador de marketing e diretor da Subliminal Projection Company, empresa voltada a um novo e estranho ramo – a publicidade subliminar. Segundo Vicary, a bomboniere do cinema teria registrado um aumento de 57,5% na venda de pipocas e 18,1% no consumo de Coca-Cola. Embora imperceptíveis ao olho humano, os anúncios seriam interiorizados pelo subconsciente, misturando-se aos desejos secretos da plateia. “A técnica é tão eficaz”, declarou o empresário à Billboard, “que não nos surpreenderíamos em ver o governo envolvido na sua regulamentação”.

Manchetes publicadas pelos jornais brasileiros em 1958. Imagem: Reprodução/Revista Intervalo

As circunstâncias em torno do experimento eram nebulosas. As datas de sua realização nunca foram confirmadas, e os detalhes do episódio flutuavam ao sabor das circunstâncias – as primeiras menções a Férias de Amor e à Coca-Cola surgiram apenas em 1958, nas páginas da revista Life. Intimado pela Comissão Federal de Comunicações a realizar uma demonstração pública, Vicary não obteve nenhum resultado conclusivo.

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Ainda que todos os indícios sugerissem um engodo, a mera possibilidade de intervenção tecnológica na psique das massas bastou para acionar o gatilho da paranoia coletiva. A onda de pânico, desconfiança e entusiasmo que se espalhou pelo mundo não demorou a assolar o Brasil.

Escravizará a vontade do comprador

Os primeiros rumores sobre a inserção de mensagens ocultas em sessões de cinema chegaram ao país em 11 de junho de 1956. Uma nota da AFP (Agence France-Presse) reproduzida pela Tribuna da Imprensa, do Rio de Janeiro, anunciava o “nascimento da publicidade invisível” nos EUA. Segundo o informe, o sistema havia proporcionado a uma marca não identificada de sorvetes um aumento de 60% nas vendas de seus produtos.

A notícia provocava certo estranhamento, e não sem motivo. Jingles, outdoors, letreiros luminosos, garotas-propaganda, reclames multicoloridos nas contracapas das revistas – nada disso era feito para passar despercebido. O caráter aparentemente contraditório dos anúncios invisíveis não divergia, porém, da tendência que vinha se tornando base de uma indústria multimilionária – o casamento da publicidade com os estudos da psique humana.

"Cada vez mais, as agências recorriam a psicólogos, psiquiatras e psicanalistas no desenvolvimento de campanhas."

Cada vez mais, as agências recorriam a psicólogos, psiquiatras e psicanalistas no desenvolvimento de campanhas. A busca incessante por símbolos capazes de provocar reações positivas às mercadorias transformaram a anamnese, a hipnose, os testes de Rorschach e as teorias freudianas em preciosos aliados no comércio de cigarros e sabão em pó. O consumidor, asseguravam os institutos de pesquisa, jamais adquiria um produto por suas qualidades intrínsecas, e sim por enxergar no objeto uma extensão de sua imagem pessoal.

Mas o surgimento das mensagens subliminares levantava certos questionamentos. Seriam elas capazes de nos induzir a consumir aquilo que detestamos? Qual o real alcance do invento sobre as emoções coletivas? Sua aplicação poderia ocasionar novos tipos de neuroses? Estariam as agências de publicidade condenadas a uma revisão total de seus procedimentos?

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Mensagens subliminares sobre os fotogramas do longa-metragem Férias de Amor. Imagem: Reprodução/ Life, via Google Books

Essas e outras dúvidas foram debatidas numa mesa redonda promovida pela ABP (Associação Brasileira de Propaganda) em sua sede, no Rio de Janeiro. O evento, realizado no dia 11 de abril de 1958, contou com a presença de diversos profissionais do ramo.

Eliezer Burlá, diretor da McCann Erickson, considerava a propaganda subliminar antiética e temia que ela aniquilasse os postos de trabalho dos ilustradores e diretores de arte. O publicitário, um dos principais responsáveis pela disseminação da Coca-Cola entre os brasileiros na década de 40, alertou os demais participantes: “A nova técnica não deve ser usada antes de ser convenientemente estudada, e seu uso deve ser controlado, por tirar do comprador a possibilidade de dizer 'não quero, não preciso'”.

Ney Peixoto do Vale, assessor de imprensa da Esso Standart Oil, transbordava de empolgação: “Acho que estamos diante de uma nova e formidável técnica de publicidade, fadada a todo o sucesso. Essa técnica, quando aperfeiçoada, escravizará a vontade do comprador”. Caio Domingues, gerente comercial da Ducal, a maior rede brasileira de vestuário masculino na época, não parecia tão entusiasmado assim: “Acho que a subliminal poderá servir como veículo auxiliar, e não como um de base, e que será boa sobretudo para anunciar produtos que se vendem por impulso”.

A bomba de hidrogênio é pinto

A polêmica ganhou as páginas da imprensa, tornando-se um dos tópicos mais discutidos de 1958.

Manoel Maria de Vasconcellos, diretor da revista especializada PN – Publicidade e Negócios, demonstrava total ceticismo aos repórteres do jornal O Globo: “As provas arguidas em favor da propaganda subliminar são tão destituídas de fundamento, que só se pode acreditar nela como se acredita em alma do outro mundo”.

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Especialistas em saúde mental, no entanto, manifestavam preocupação.

José Leme Lopes, catedrático da Faculdade Nacional de Medicina e futuro presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, ao ser questionado pelo Diário Carioca sobre a influência dos anúncios invisíveis nos índices de alcoolismo da população, afirmou: “A grande maioria das pessoas não tomaria conhecimento do estímulo. A ação subliminar poderá, entretanto, fazer aumentar o consumo de bebida entre as pessoas inclinadas ao seu uso”. Já Fábio Leite Lobo, professor da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, declarou ao Diário de Notícias: “A propaganda subliminal, sendo utilizada no setor da influência de opiniões, pode estimular no indivíduo impulsos e instintos antissociais”.

Atônito, Ferreira Gullar escreveu em sua coluna no Jornal do Brasil: “Para mim, a bomba de hidrogênio é pinto em face de uma arma capaz de desintegrar-nos por dentro, sem que o saibamos”. Clóvis Salgado, então ministro da Educação, fazia eco às especulações catastróficas do poeta: “Sou totalmente contrário ao emprego da propaganda subliminar. O único meio viável de impedir que seja prejudicial é proibi-la, em virtude dos graves perigos nela encerrados”, vaticinou ao Diário Carioca.

Maurício de Medeiros, ministro da Saúde entrevistado pelo mesmo jornal, tinha opinião similar à do colega: “Desde que a publicidade subliminar se desvie para sugestões do tipo ideológico, seja qual for o campo dessa ideologia, será evidentemente perigosa”. O prognóstico refletia um boato corrente naqueles tempos – o de que a propaganda invisível estaria a um passo de ser utilizada nas campanhas eleitorais.

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A técnica, diziam alguns, faria de nosso cérebro a mais nova trincheira das batalhas legais. Pelo menos era nisso que acreditava o jurista Antônio Evaristo de Moraes Filho, que profetizou ao Diário da Noite: “Na marcha que vai, não é difícil prever que as futuras Constituições, ao estabelecerem os direitos e garantias individuais, criarão ao lado dos postulados que garantem a inviolabilidade do domicílio e da correspondência, um novo, garantidor da inviolabilidade do subconsciente humano”.

Outros, como Augusto de Ângelo, diretor da J. Walter Thompson, encaravam o invento como uma potencial ameaça doméstica: “Tudo indica que a publicidade subliminal é de ação efetiva. Seria defensável se houvesse um meio de controlá-la. Do contrário, significaria um desastre. Não gostaria de ter essa publicidade invisível entrando pela casa adentro, sem que nada pudesse fazer”, disse ao Última Hora.

De certa forma, os medos do publicitário estavam prestes a se concretizar.

A mais arrojada experiência do século

Carlos Pedregal, o introdutor da propaganda subliminar no Brasil, tinha apenas 21 anos ao desembarcar pela primeira vez no país. Vinha da Argentina peronista, terra natal de sua mãe, e carregava um visto temporário emitido em julho de 1947 pelo Consulado Geral do Brasil em Buenos Aires. De acordo com o documento, era solteiro, espanhol, exercia a profissão de jornalista e viajava com autorização paterna – um perfil não condizente com a persona que adotaria no início da década seguinte.

Para o grande público, Pedregal era ninguém menos que Professor Baskarán, “hipnotizador e psicólogo de fama mundial”. Fantasiado de mago hindu, apresentava números de quiromancia nas boates de Copacabana, sentando-se à mesa dos frequentadores e aplicando-lhes “testes psicológicos”. Em entrevistas, alegava ter nascido na cidade chinesa de Nanjing e levado uma vida aventureira ao redor do mundo. Suas experiências, dizia, já haviam sido realizadas em todos os países, “com exceção dos EUA e parte da Austrália”.

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Revelações do Subconsciente, o programa que comandava na Rádio Globo, estreou em abril de 1951. De segunda a sexta-feira, sempre às 9h30, o jovem imigrante oferecia aos ouvintes a “revelação de seus dados psicanalíticos”, um “traçado completo de sua personalidade” e “esboços, em base científica, de seu futuro”. Tudo isso ao custo de uma simples passadinha na Galeria Silvestre, “o palácio das donas de casa”, em cujos balcões o público carioca deveria preencher um questionário de participação.

Em periódicos como Última Hora e Revista do Rádio, o autoproclamado professor discorria sobre grafologia e linguagem corporal, fazia as vezes de conselheiro amoroso e respondia a cartas de leitores deprimidos, religiosos em crise de fé, mulheres ciumentas, homens indecisos e todo tipo de desajustado social. Também traçava “flashes psicológicos” de gente famosa – artistas, socialites, atletas, réus de crimes de grande repercussão e, sobretudo, políticos. Acabou caindo nas graças de Ademar de Barros, para quem trabalharia como assessor ao longo dos anos seguintes – é de sua autoria o bordão “rouba, mas faz”, lançado no intuito de amenizar a pecha de corrupto que recaía sobre o ex-governador paulista.

Os primeiros experimentos televisivos do Professor Baskarán ocorreram em outubro de 1951, no programa Psicologia Experimental, exibido às terças-feiras pela TV Tupi. O show, que consistia em breves sessões de hipnotismo transmitidas pelo vídeo, teria provocado sono profundo em centenas de telespectadores. Às cobaias, o enigmático Baskarán solicitava: “As pessoas submetidas à experiência devem concentrar-se o máximo possível e esquecer tudo à sua volta, para prestar atenção exclusivamente às palavras que eu pronunciar. Devem os telespectadores olhar para os meus olhos, no vídeo, e colaborar com a força do pensamento e da vontade com o agente, que serei eu”.

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Em junho de 1958, no auge da polêmica levantada pelas mensagens subliminares, Carlos Pedregal se despojou do antigo pseudônimo e retornou às telas da TV Tupi para apresentar um novo programa, exibido nas noites de sexta e batizado, sem modéstia alguma, de A Mais Arrojada Experiência do Século. Nos três meses seguintes, realizaria nos estúdios da emissora uma série de experimentos em torno da recepção inconsciente de estímulos visuais ou sonoros.

As duas mensagens veiculadas na primeira edição do programa A Mais Arrojada Experiência do Século: “Escreva” e “Imobiliária Nova York”. Imagem: Reprodução/ O Mundo Ilustrado/Diário da Noite

Tal como William Holden e Kim Novak, Pedregal teve suas feições transformadas em suporte de anúncios invisíveis. As mensagens projetadas sobre o rosto do apresentador no programa de estreia tinham duração aproximada de 1 milésimo de segundo e se repetiram durante 15 minutos, em intervalos de 5 segundos. Com voz pausada e forte sotaque hispânico, Pedregal descrevia experiências análogas noutras partes do mundo, enquanto os reclames martelavam, na surdina, uma ordem aos telespectadores (“Escreva”) e o nome da firma patrocinadora (“Imobiliária Nova York”).

“Posso afirmar que 90% dos que assistiram ao programa foram influenciados pelo estímulo 'escreva'. Dentre as cartas recebidas, 80% traziam nomes de diversas imobiliárias. E, acertando em cheio o nome, cerca de 30%”, explicou o apresentador ao repórter Mário Morel, do Diário da Noite.

A propaganda subliminar, advertia Pedregal, poderia submeter as coletividades a um estado hipnótico, reduzindo indivíduos pensantes a autômatos letárgicos: “Isto que parece história fantástica de quadrinhos, a psicoeletrônica provou ser uma realidade. Um governo tendo na mão emissoras de rádio e televisão pode em 30 dias mudar a opinião pública, levando uma população inteira a agir a seu modo”.

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Por fim, sem economizar no sensacionalismo, comunicou ao repórter: “Todo cuidado é pouco. A publicidade invisível está lançada no Brasil”.

Em setembro, A Mais Arrojada Experiência do Século foi cancelado e substituído por uma nova atração, intitulada 900 Segundos. Pedregal permanecia no comando, mas as pautas agora se limitavam aos testes de personalidade que fizeram sua fama nos tempos em que se apresentava como Professor Baskarán.

Pouco antes, a TV Tupi divulgara aos jornais um comunicado enfático: “Não permitiremos o uso da propaganda subliminal”, prometia Almeida Castro, diretor da emissora.

Amar a escravidão

Aldous Huxley, célebre romancista britânico, também acreditava que as mensagens subliminares estivessem a serviço de uma agenda sombria. Ao passar pelo Brasil, em agosto de 1958, o autor manifestou esse receio em quase todas as entrevistas concedidas à imprensa.

“A escravização da humanidade pode ser feita através da manipulação cerebral do homem, sem que este se aperceba e fazendo-o amar a escravidão”, sentenciou às centenas de pessoas que lotaram sua conferência no Itamaraty. “O Estado governará o homem até dominar seu subconsciente. A propaganda subliminar é apenas o primeiro passo”.

Plateia de Aldous Huxley no Itamaraty (Reprodução - Diário da Noite)

O cotidiano do pós-guerra, sustentava Huxley, era a materialização do pesadelo distópico narrado em Admirável Mundo Novo, seu livro mais conhecido. Publicado originalmente em 1932, o romance descrevia um cenário futurista marcado pela eugenia, conformismo, hiperorganização, imobilidade social e vigilância exacerbada. A hipnopédia, sistema de doutrinação baseado na recepção de estímulos sonoros durante o sono, garantia o amortecimento emocional generalizado e os privilégios das castas superiores.

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O exame da própria obra à luz de um novo tempo conduziu Huxley à escrita de Regresso ao Admirável Mundo Novo, coletânea de ensaios sobre democracia, totalitarismo, propaganda política e controle da mente. Em conjunto, esses textos formavam um panorama do mais discutido conflito da época – a guerra psicológica, em que a implementação de ideologias equivalia à conquista territorial e a disseminação da revolta substituía a explosão de bombas. Sua tradução para o português, em 1959, soava quase como resposta premonitória ao noticiário brasileiro.

"Os jornalistas, segundo Lacerda, superdimensionavam acontecimentos corriqueiros, empregando 'métodos subliminares' que incutiam nos leitores a simpatia pela luta de classes"

No início da década seguinte, o aumento da criminalidade nas principais cidades do país levaria o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, a apontar uma suposta “infiltração vermelha” na imprensa. Os jornalistas, segundo Lacerda, superdimensionavam acontecimentos corriqueiros, empregando “métodos subliminares” que incutiam nos leitores a simpatia pela luta de classes. O objetivo, dizia, era gerar “um clima de terror para a população e de facilidades para os marginais”.

Em dezembro de 1963, a adoção do Método Paulo Freire pelo Programa Nacional de Educação provocaria uma avalanche de reações hostis entre conservadores. Carlos Rizzini, Secretário de Educação e Cultura da Prefeitura Municipal de São Paulo, declarou na ocasião: “Se na propaganda comum foi proibido o sistema subliminar, devia também ser proibida a sua aplicação na alfabetização por mãos sobejamente conhecidas como sendo de comunistas”.

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A esquerda, por outro lado, denunciava a ação dos trustes petrolíferos, que injetavam dinheiro nos veículos de comunicação em troca de artigos e reportagens contrários ao monopólio estatal do petróleo, ou favoráveis à sua exploração pelo capital estrangeiro. Uma prática que, de acordo com os grupos anti-imperialistas, constituía uma modalidade de publicidade invisível.

Da união entre as multinacionais, o alto empresariado brasileiro e o governo norte-americano, surgiam tentáculos como o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais). Ambas as organizações adotavam a defesa do desenvolvimento econômico como pretexto para a produção e difusão de material anticomunista – panfletos, livros, programas radiofônicos e televisivos, além de curtas-metragens projetados em escolas, igrejas e cinemas de bairro. As suspeitas de que tais ações integrassem um plano maior, de lavagem cerebral, interferência na opinião pública e desequilíbrio da ordem democrática, se mostravam cada vez mais pertinentes.

O Brasil se revelava o cenário ideal para um golpe de estado – e também para um thriller cinematográfico.

A única saída é a revolução

Em dezembro de 1961, Carlos Pedregal anuncia estar trabalhando no roteiro de um filme chamado Subliminar, Arma Secreta. Originalmente concebido como um documentário, o projeto angaria financiamento do Banco Nacional de Minas Gerais, tem seu título alterado para O 5º Poder e torna-se um longa-metragem ficcional estrelado por atores conhecidos do público.

O italiano Alberto Pieralisi, egresso da Companhia Cinematográfica Vera Cruz e futuro realizador de pornochanchadas, assinava a direção. Eva Wilma, Oswaldo Loureiro, Sebastião Vasconcelos, Augusto César Vannuci e Orlando Villar encabeçavam o elenco. A produção, extremamente conturbada, se estenderia por um longo período repleto de incidentes: “O que poderia ser feito em cinco meses, arrastou-se por quase ano e meio”, desabafou Pedregal à Intervalo, extinta revista de fofocas da Editora Abril.

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Conta-se que Pedregal e Pieralisi teriam se desentendido durante as filmagens. O italiano imprimia ao filme um ritmo lento, com ênfase em atuações e diálogos, enquanto o ex-apresentador da Tupi sentia falta de velocidade, tiroteios, perseguições automobilísticas e lutas corporais. Pieralisi cogitou se afastar da produção, mas Eva Wilma se recusava a ser dirigida por qualquer outra pessoa. A equipe chegou a um acordo – Pieralisi ficaria a cargo das cenas protagonizadas pela atriz, e Pedregal dirigiria, sem créditos, todo o resto.

Os constantes atrasos e as sucessivas quebras de orçamento fizeram de O 5º Poder o mais caro filme até então já realizado na história do cinema brasileiro. Às vésperas de estrear no circuito comercial, o longa teve seus negativos e boa parte de suas cópias destruídas num incêndio. Quatro pessoas morreram, incluindo uma funcionária da Herbert Richers, a empresa distribuidora do filme.

Fruto direto da trajetória de Pedregal na TV Tupi, O 5º Poder combinava elementos do thriller de espionagem, de velhos filmes policiais e do moderno cinema de ficção científica em uma narrativa centrada na dominação do Brasil por agentes de uma potência estrangeira.

Nos transmissores das antenas de rádio e televisão, espiões conectam aparelhos clandestinos que emitem mensagens subliminares ao público das emissoras. A meta do grupo é disseminar o caos e a desordem em todo o território nacional, alimentando pretextos para uma intervenção militar e, em seguida, um golpe de estado. Poucos dias depois, o Brasil se encontra à beira de uma guerra civil – “a única saída é a revolução”, clama a população hipnotizada via satélite.

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A conspiração, porém, vem a ser desbaratada pelo jornalista Carlos (Oswaldo Loureiro) e sua amiga Laura (Eva Wilma). Avessos ao rádio e à televisão (e, portanto, imunes às armas do inimigo), eles percebem que algo de errado está acontecendo e decidem investigar por conta própria. É o início de um jogo de gato e rato que atravessa o Rio de Janeiro e atinge o clímax nos mais icônicos cartões postais da cidade – o Bondinho do Pão de Açúcar, onde Carlos e Laura entram em confronto com um dos vilões, e o Cristo Redentor, cujas escadarias se tornam palco de uma emboscada.

O 5º Poder estreou no dia 29 de junho de 1963. Sua ambiguidade ideológica (em nenhum momento os invasores têm sua nacionalidade revelada) confundiu os setores da imprensa, que enxergaram no filme matizes ora anticomunistas, ora anti-imperialistas. Os bandidos estariam alinhados ao bloco americano ou ao soviético? A revolução seria um projeto de esquerda ou de direita? A narrativa não responde a nenhuma dessas questões.

Divergências políticas à parte, a crítica foi unânime em apontar o filme como um corpo estranho ao cenário cultural brasileiro. O 5º Poder não dialogava com o humor mambembe das chanchadas, e tampouco com o engajamento intelectual do Cinema Novo. Os interlocutores de Pedregal eram outros.

Em suas melhores sequências, O 5º Poder elevava os monumentos do Rio de Janeiro à categoria de personagens, tal como Alfred Hitchcock fizera com a Estátua da Liberdade em Sabotador e com o Monte Rushmore em Intriga Internacional. A onipresença maligna da televisão remetia diretamente ao derradeiro filme de Fritz Lang, Os Mil Olhos do Dr. Mabuse. Invasores ocultos, atmosfera apocalíptica, tecnologia ameaçadora e desumanização coletiva eram elementos recorrentes nas fitas de ficção científica dos anos 50, sobretudo no clássico Vampiros de Almas, de Don Siegel. A violação do subconsciente por conspiradores internacionais era a premissa de um longa que estreara no Brasil meses antes – Sob o Domínio do Mal, de John Frankenheimer. Os vilões megalomaníacos e a ambientação turística, por sua vez, se assemelhavam ao padrão posteriormente desenvolvido pela franquia James Bond, cujo filme inicial, 007 Contra o Satânico Dr. No, sequer havia sido lançado no país.

Cena do filme O 5º Poder: Laura (Eva Wilma) é baleada por espiões na escadaria do Cristo Redentor. Imagem: Reprodução/Revista Intervalo

Ainda assim, O 5º Poder se mostrava muito brasileiro em sua abordagem da violência. Os distúrbios desencadeados pelas mensagens subliminares tinham início com uma briga de torcedores no Maracanã, logo após um gol de Pelé. Manchetes verídicas, quase todas retiradas do escabroso tabloide Luta Democrática, davam o tom da espiral de loucura que subjugava a população. Closes generosos nas primeiras páginas dos jornais colocavam os espectadores diante de suicídios, estupros, crimes passionais e cadáveres disformes. Às tragédias individuais, somavam-se referências explícitas a chacinas, ao caso do Gran Circo Norte-Americano, a um motim na Penitenciária Estadual da Guanabara e à onda de saques populares que sacudiu Duque de Caxias em 1962.

Junto a Garrincha, Alegria do Povo, do cinemanovista Joaquim Pedro de Andrade, O 5º Poder foi selecionado para representar o Brasil na mostra não competitiva do Festival de Berlim. A má distribuição, contudo, tornou o filme um fracasso de bilheteria. Menos de um ano depois, o Exército levaria a cabo o golpe que instaurou a ditadura militar no país.

"A Censura Federal interditaria Terra em Transe, alegando ser o filme de Glauber Rocha uma ferramenta para a 'propaganda subliminar do marxismo'"

No dia 1º de maio de 1964, um mês após a queda de João Goulart, funcionários e técnicos da Petrobrás foram encaminhados ao DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), sob acusação de terem transformado a estatal numa célula comunista e a revista oficial da empresa em “veículo de propaganda subversiva, através de mensagens subliminares”. Em agosto de 1965, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) baixou instruções para o pleito de outubro: estavam proibidas “as propagandas subliminar, de guerra, subversão, luta de classes e instigação à desobediência”. Dois anos depois, a Censura Federal interditaria Terra em Transe, alegando ser o filme de Glauber Rocha uma ferramenta para a “propaganda subliminar do marxismo”.

Sobre Carlos Pedregal e seu estranho longa-metragem, quase nada se falaria até a redemocratização do país.

A partir de 1989, o espanhol iniciaria uma bem-sucedida carreira no marketing político. Ajudou Fleury a ser eleito governador de São Paulo, prestou serviços a Collor na crise que antecedeu o impeachment e atuou nas duas campanhas presidenciais de FHC.

O 5º Poder, dado como perdido por mais de quatro décadas, teve uma cópia localizada na Alemanha e ganhou sessão especial no Festival de Brasília, em 2006. Aos cinéfilos que marcaram presença no evento, Pedregal afirmou que, durante a Guerra Fria, sofrera assédio de espiões, interessados em comprar os direitos do filme para exibi-lo nos serviços de inteligência secreta de seus respectivos países. Foi a última aparição pública do “hipnotizador e psicólogo de fama mundial”, antes de ser vitimado por um câncer no pulmão.

Pedregal faleceu no dia 17 de janeiro de 2016. Tinha 90 anos e morava em Massachusetts, nos EUA. Sua morte foi ignorada pela grande imprensa.

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