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Carne de laboratório não vai consertar o planeta que o capitalismo fodeu

Está claro que precisamos de uma mudança estrutural na sociedade para abordar as mudanças climáticas. Quando o assunto é carne, temos uma perspectiva desoladora.
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Traduzido por Marina Schnoor
Madalena Maltez
Traduzido por Madalena Maltez
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No começo do mês, uma matéria publicada no periódico científico Frontiers in Sustainable Food Systems fazia uma pergunta bastante razoável: carne cultivada em laboratório emite realmente menos gases estufa que carne convencional de fazenda numa escala de longo prazo – digamos, um milênio?

No final, os pesquisadores argumentam que carne cultivada em laboratório não é necessariamente mais sustentável que certos cenários de produção de carne porque carne de laboratório emite dióxido de carbono, que fica na atmosfera mais tempo que o metano produzido por vacas vivas. Mas tem algumas pegadinhas. Primeiro, o estudo só considera emissões de carbono de transporte em um dos três cenários de transporte de carne e nenhum dos cenários para carne cultivada em laboratório.

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A pesquisa também não considerou desperdício de comida, acesso a alimentos e distribuição com a agropecuária convencional, o que afeta seu impacto ambiental. Ela também não considera as grandes emissões do desmatamento, que destroem sumidouros de carbono, ou lugares onde o carbono é sugado pela terra. Mais desmatamento é feito para suportar a criação de gado. Em regiões como a Amazônia, cerca de 80% do desmatamento é feito para criação de gado. Segundo o capítulo 11 do Quinto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), o fluxo de gases estufa associados com terras de agricultura respondem por 9-11% de todas as emissões humanas. Para ter uma perspectiva, as cadeias de fornecimento de gado respondem por outros 14,5% das emissões de gases estufa.

O estudo diz que as emissões de dióxido de carbono de carne cultivada em laboratório podem ser mais altas que emissões de metano de carne comum. Mas o estudo ainda admite que “deve ser apontado que a estimativa equivalente de toda a pegada de dióxido de carbono de carne cultivada, incluindo o extremo da análise de sensibilidade, é mais baixa que aquela de todo sistema de gado neste estudo”.

Em outras palavras, carne comum sempre vai emitir mais dióxido de carbono e metano do que carne cultivada.

John Lynch, um dos líderes da pesquisa, disse a Motherboard por e-mail: “esse é um dos pontos-chave do estudo: que nossa pegada de dióxido de carbono convencional não pode dar uma resposta completa de como emissões diferentes afetam o clima”.

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Esses pesquisadores não foram as primeiras pessoas a examinar o impacto ambiental de carne cultivada em laboratório. Mas praticamente todos os estudos anteriores sobre o tema, quatro deles citados no artigo, concluem que carne cultivada em laboratório é mais eco-friendly que carne normal. Os pesquisadores argumentam que alguns desses estudos não levavam em conta que o dióxido de carbono fica na atmosfera por mil anos, enquanto o metano fica na atmosfera por apenas doze, o que é justo.

Mas, nesse estudo, as versões de 2013 a 2015 de carne de laboratório continuam a emitir menos gases estufa do que carne comum por quase 200 anos. Na maioria dos cenários, múltiplas versões de carne de laboratório nunca emitem mais gases estufa que carne comum. (Os pesquisadores apresentaram quatro métodos de carne de laboratório e três métodos de agricultura de carne. Eles também mapearam três cenários de consumo: consumo perpétuo, uma diminuição de um século terminando em consumo zero e um aumento do consumo seguido por um declínio.)

É muito improvável que métodos de produção de carne de laboratório continuem os mesmos e não se tornem mais eficientes em emissão nos próximos 10, 20 anos – quanto mais 200-1000 anos. Carne cultivada em laboratório nem existia até 2013. Avanços científicos vão acontecer rapidamente. Esforços de engenharia de tecidos estão se expandindo muito rápido, e carne de laboratório pode chegar a mercados comerciais em menos de cinco anos.

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 Screenshot from the study, edited by Caroline Haskins to show the points at which emissions for lab-grown meat surpasses the emissions for regular beef.

Imagem: Screenshot do estudo, editado por Caroline Haskins para mostrar os pontos onde emissões de carne da laboratório ultrapassam as emissões da carne comum.

Ainda assim, é bom que esses pesquisadores tenham analisado carne de laboratório com um nível tão alto de escrutínio porque estudos assim estabelecem o fato de que versões futuras de carne de laboratório devem ser pensadas para emitir menos carbono. Não é só justo, mas necessário priorizar inovações com emissões mais baixas.

Hoje a captura de carbono está recebendo milhões de dólares em financiamento, mas os resultados são medíocres. No momento, isso não é uma tecnologia realista financeira e logisticamente para implementar em larga escala. No “Relatório 1,5 Graus” de outubro do IPCC, cientistas de todo o mundo disseram que recaptura de carbono é necessária, mas só deve tirar uma pequena quantidade de emissões em excesso num cenário onde emissões de carbono estão um pouco acima de zero.

“A velocidade da transição e a mudança tecnológica exigidas para limitar o aquecimento de 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais tem sido observada no passado dentro de setores e tecnologias específicos”, diz o relatório. “Mas as escalas geográficas e econômicas em que as taxas de mudança exigidas em sistemas de energia, terras, urbanas, de infraestrutura e industrial que precisam acontecer são maiores e não têm precedentes históricos documentados.”

Agora estamos emitindo mais de 32 gigatoneladas de carbono anualmente (uma gigatonelada é um bilhão de toneladas métricas). Resumindo, a tecnologia de recaptura de carbono não é uma solução para nossos níveis de consumo no momento.

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Não há perigo na inovação tecnológica em si. Em vez disso, há perigo em como inovações tecnológicas se desenrolam dentro de uma economia global maior.

“Acho que realmente precisamos de uma boa quantidade de inovação”, disse Matthew Huber, professor de geografia da Universidade de Syracuse, a Motherboard por telefone. “Mas acho que na nossa sociedade atual, as inovações são estreitamente guiadas pelo lucro. Esse é o problema. Só perguntamos que inovações vão dar dinheiro aos investidores privados.”

Daniel Nyberg, professor de negócios da Universidade de Newcastle na Austrália, disse a Motherboard por e-mail que essas inovações tecnológicas estão a serviço da economia como ela é. “Estamos basicamente tentando reconfigurar materialmente a Terra para não ter que reconfigurar nossa economia”, disse Nyberg.

Mas num sentido maior, essa dualidade entre precisar de inovação tecnológica e ainda não poder contar com ela existe em cada conversa de nicho sobre prevenir os piores efeitos das mudanças climáticas. As mudanças climáticas são uma doença das instituições do mundo.

Charles Derber, professor de economia política do Boston College, disse a Motherboard por telefone que inovação tecnológica é algo bom e necessário para uma rápida mudança no mundo. Mas muitas vezes funciona como um chavão político que sufoca conversas mais complexas sobre instituições econômicas e mudanças climáticas.

“Inovação, na minha opinião, é uma linguagem para legitimar a negação das forças estruturais que são realmente centrais para lidar com questões de mudanças climáticas”, Derber disse. “Se você diz 'bom, vamos inovar para sair dessa', você não só está dizendo que a estrutura básica da economia é compatível com resolver as mudanças climáticas, mas também que esse é o melhor jeito. É um discurso muito perigoso, porque não só coloca a tecnologia como a base para a solução e o problema, mas também afunda as pessoas ainda mais no sistema econômico que está alimentando o problema.”

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O Relatório 1,5 Graus do IPCC diz que instituições públicas e privadas que organizam o mundo como conhecemos precisam mudar se queremos evitar os piores efeitos das mudanças climáticas. O relatório afirma que grandes mudanças em “escolhas tecnológicas e arranjos institucionais, consumo e estilo de vida, infraestrutura, uso de terras e padrões espaciais” precisam ocorrer para apoiar mudanças em produção e uso de energia, transporte, uso de terra e infraestrutura urbana.

Quando se trata de comida, isso significa que fatores como “agricultura de conservação, gerenciamento melhorado do gado, aumentar eficiência de irrigação, agrossilvicultura e gerenciamento de perda e desperdício de comida” terão que ser regulados institucionalmente. Mesmo em níveis individuais, o relatório afirma que esse apoio institucional deve permitir escolhas de dieta como comer menos carne. (Claro, o relatório aponta que não está claro como esse apoio institucional para mudanças dietárias poderia ocorrer na prática.)

Está claro que precisamos de uma mudança estrutural na sociedade para abordar as mudanças climáticas. O problema é que os países do mundo são governados por instituições neoliberais criadas para tornar o mundo seguro para o capitalismo.

Em seu livro Globalists: The End of Empire and the Birth of Neoliberalism, Quinn Slobodian explica que instituições de mercado extranacionais como o Banco Mundial, Organização Mundial de Comércio, e o Fundo Monetário Internacional foram pensados para proteger o capitalismo como um sistema econômico. Agora, como diz o ditado, “é mais fácil imaginar o fim do mundo que imaginar o fim do capitalismo”.

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Em praticamente toda indústria, lucro máximo é incompatível com adaptações apropriadas para as mudanças climáticas. Vimos isso na indústria de serviços públicos, por exemplo. Empresas de serviços públicos privadas são guiadas pela “mão do mercado” para manter seus ativos de combustível sujo e nunca fazer a transição para energia limpa, apesar do fato que esses ativos são inseguros e muitas vezes abastecem incêndios descontrolados. Segundo o relatório Climate Change Communication do Yale Programa, 85% dos eleitores americanos registrados querem que suas companhias locais de serviços públicos façam a transição para energia limpa. As forças do setor privado têm métodos e incentivos de negócio fundamentalmente não-democráticos.

Por todas as linhas de partido, a maioria dos cidadãos norte-americanos querem que as corporações combatam as mudanças climáticas. Mas as empresas provaram que não vão agir por sua própria vontade e até empresas de tecnologia perceberam que podem ganhar dinheiro acelerando a crise climática. Num relatório recente do Gizmodo, ele descobriu que empresas como a Amazon, Google e Microsoft prestam serviços de computação para empresas de petróleo e gás, para otimizar suas operações e maximizar seus lucros.

Num nível macro, Trump justificou sua tentativa de sair do Acordo Climático de Paris dizendo que os acordos propunham “fardos financeiros e econômicos” sobre os EUA especificamente. Mas a maioria dos eleitores registrados acham que os EUA precisa fazer o possível para reduzir as emissões de gases estufa, independente do que outros países estão fazendo, em dezembro de 2018. A justificativa capitalista de Trump para não agir sobre as mudanças climáticas não importa para os eleitores.

Agora, vamos falar sobre carne. 80% da carne americana é processada por apenas quatro companhias: Tyson Foods, Cargill Meat Solutions, JBS USA e National Beef Packing Co. As condições neoliberais e “market-friendly” que permitiram que essas empresas fizessem o maior lucro possível não são compatíveis com com as limitações de emissões de gases estufa da carne. Regulamentação visando “agricultura de conservação, melhora de gerenciamento de gado, aumento da eficiência de irrigação, agrossilvicultura e gerenciamento de perda e desperdício de alimentos”, como o IPCC recomenda, vão prejudicar as margens de lucro para empresas que compram, embalam e vendem carne.

Nosso problema não é que carne de laboratório pode, sob condições muito específicas, emitir mais gases estufa que certos tipos de carne por várias centenas de anos no futuro. Nosso problema é que construímos instituições econômicas globais pensadas para proteger o lucro privado às custas de vidas humanas. Nosso problema não é carne cultivada em laboratório. É o capitalismo.

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