Circulações brasileiras numa Lisboa que samba (até o sol raiar)
Dona Didi, a madrinha do "Viva o Samba", a abrir mais uma roda com a sua declaração: “Viva o samba minha gente”. Todas as fotos pelo autor.

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Cultură

Circulações brasileiras numa Lisboa que samba (até o sol raiar)

A capital portuguesa está a descobrir um Brasil para além do Carnaval e das novelas. A culpa é dos músicos, artistas e do público cada vez mais alargado que faz do "Viva o Samba" um evento cada vez mais obrigatório.

O samba em Lisboa está vivo e recomenda-se. Aos domingos, a capital veste-se de tons cariocas, dando a ideia de estarmos nas ruas da Lapa, no Rio de Janeiro. Mas não. Estamos na zona do Cais do Sodré, onde o ritmo do samba nos leva pela noite dentro. Não se pode dizer que ao domingo não se passa nada na capital. Do Água de Beber ao Titanic Sur Mer, a VICE acompanhou o fenómeno, que começou através de encontros de músicos de samba, arrasta arrasta brasileiros e brasileiras e apaixona portugueses e visitantes estrangeiros.

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Cícero e Betinho Mateus são dois irmãos que criaram uma roda de samba que tenta replicar os serões familiares lá da terra. Começaram por ser dezenas à volta do pandeiro e do violão e agora são centenas de pessoas que finalizam - ou arrancam, conforme a perspectiva - a semana com um sorriso nos lábios e o samba no pé. “A roda vai fazer três anos. Primeiro a gente começou no Bairro Alto na Associação Arte Pura, depois fomos para o Tacão grande, depois Arte Casa e aí a gente já tinha pensado no Titanic. Fizemos a proposta e deu certo”, explica Cícero à VICE.


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O Titanic Sur Mer vai enchendo aos poucos, com o Rio Tejo no horizonte. Lá ao longe, o Cristo Rei de braços abertos, num cenário que faz lembrar o Rio com os seus morros e botecos. Os sambistas sentem-se em casa, pois, na verdade, são uma família. “Aqui é mesmo a nossa casa, a nossa residência, vai ter sempre esta festa de qualquer jeito. Estamos a pensar em lançar um disco desta roda”, revela Cícero. As circulações brasileiras de samba, vê-se de imediato, estão a pôr um sorriso na cara dos lisboetas.

“SE EU PERDER ESSE TREM QUE SAI AGORA ÀS ONZE HORAS…” (em "Trem das Onze", de Adorinan Barbosa)

Há três anos, um conjunto de músicos e artistas ligados ao samba decidiram juntar-se para tocar. Sambas de sempre e outros que fazem parte do imaginário de toda a gente. “Trem das onze”, de Adorinan Barbosa, começa a ser tocado no Água de Beber - ali, na Travessa de São Paulo. Ao microfone Neya Castro canta para uma plateia que acompanha com voz e dança.

Aos domingos, entre as 19 e as 22h00, tem sido este o ponto de encontro de muitas pessoas que vibram com a música brasileira. Palmas, samba no pé e muita cerveja. Ao balcão pedem-se coxinhas com picante, churrasquinho e caldinho de feijão. Se o sábado foi especialmente alcoólico, este pode bem ser o momento de cura da ressaca e de começar a semana com outra disposição. Dezenas de pessoas passam por ali. O cavaquinho arrisca outro samba e o pandeiro, violão e a voz de Neya fazem o resto. Os rostos iluminam-se de forma deslumbrante, mesmo quando o tempo está de chuva.

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Roda do "Viva o Samba", no Titanic Sur Mer, Cais do Sodré. Todos os domingos, a partir das 20h00, há samba até o sol raiar

“Vir aqui funciona como o meu divã!”, refere Danusa Coutinho, presença habitual nestes eventos no Água de Beber. Cumprimenta pessoas que chegam, distribui abraços e palavras de sorriso aberto. Entre um visitante que entra e sai, um balanço do corpo ao som de mais um samba. Um abraço e um pé de conversa. As cervejas continuam a sair e as palmas acompanham o pandeiro.

Do Água de Beber segue tudo para o Titanic Sur Mer, onde começam os primeiros sambas do “Viva o Samba”, que celebra neste mês de Janeiro três anos de existência. Da entrada do armazém ouvem-se os ritmos de uma roda com cerca de 12 músicos, cada um com o seu contributo.

Cícero Mateus foi um dos pensadores e promotores deste projecto em conjunto com o irmão Betinho Mateus. “O que é legal na roda de samba, é que todo o mundo consegue olhar-se no olho”, salienta Cícero durante os preparativos.

“EU ERA FELIZ E NÃO SABIA…” (EM, "Meus Tempos de Criança", de Ataulfo Alves

A roda do “Viva ao Samba” tem mais de 10 músicos com diferentes instrumentos. São uma família que vai chegando e conversando. Funciona como um laboratório para experimentações musicais, a partir dos repertórios clássicos de samba. Como se estivéssemos em casa de Cícero e Betinho que, desde crianças, acompanham as rodas de samba da família. Convidaram pessoas, criaram uma outra família, desta feita em Lisboa, em muitos lugares da cidade.

Mas, o que é que tem de particular este género de música, que é também uma marca identitária do Brasil e que canta as suas gentes e sentimentos? “A harmonia do samba são, às vezes, progressões simples, principalmente os mais antigos. São progressões simples, mas que têm uma ideia complexa”, explica Cícero Mateus, descrevendo a beleza musical do samba.

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A poetisa Luz Luzia, declama no Dia da Consciência Negra do Brasil, que se assinala a 20 de Novembro

É uma música de raízes negras, mas que se foi misturando com outras influências. A percussão sobressai em instrumentos como o surdo, que marca o ritmo, ou o pandeiro, que dá forma, mas também é preciso não esquecer os cavaquinhos. Depois, entram todos os outros instrumentos, preenchendo os silêncios, levando a uma harmonia que a voz que canta vai equilibrando. Violino, acordeão e violão. As músicas do samba “falam do dia-a-dia, ou dos problemas sociais, mas é interessante como os artistas também usaram o samba para poderem fazer parte de uma coisa maior, de se verem a si próprios dentro do seu meio, enxergarem os problemas”, realça Cícero Mateus.

Betinho Mateus, irmão de Cícero, refere ainda a força da intimidade da roda de samba e a capacidade que os músicos têm de ter para entender o seu momento. “Cada instrumento vai entrando, completando o outro”, salienta. A roda tem um efeito circular contagiante. À volta desta harmoniosa e complexidade há dança, suor, choro e riso. O samba tem a capacidade de apreender o mundo numa só música, num só refrão. E Lisboa já está viciada nisto. O público é muito diverso e vai entrando. “Chegam e dizem 'ah isso é o samba da minha terra'. Muitas delas não frequentavam este tipo de eventos noutros lugares, mas aqui, talvez não tenha tanta opção e batem as saudades e a pessoa vem e dá para voltar às origens”, acredita Betinho.

E é também um regresso às origens do samba, ao vivo, com músicos de carne e osso e com um repertório muito variável. No dia da consciência negra no Brasil (20 de Novembro de 2017) o “Viva o Samba” convidou artistas, poetas e activistas para uma noite onde se falou das raízes negras do samba. Nesse dia, com a presença dos brasileiros de várias cidades e regiões, actuou um grupo de maracatu que, com a sua percussão e cantares nos transportou às origens de uma música que é a síntese identitária dos vários “brasis” agora estão espalhados pelo Mundo. Ali estiveram as raízes negras, índias e europeias, numa ligação transbordante de alegria.

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A conversa entre Cícero e a VICE prossegue, quando, de repente, vemos um grupo de pessoas a seguirem uma coreografia de samba no pé. A professora Lívia Oliveira dá as indicações ao som da música. Cerca de 10 pessoas à sua volta repetem os passos, em movimentos que obrigam o corpo a mexer. “No geral, gostam muito das músicas brasileiras e do samba em si. Acho que contagia todos os corações”, diz Lívia, depois da aula.

As aulas são feitas de forma informal e a maioria dos alunos são estrangeiros. “Acho incrível, porque aqui é carregamos as baterias para a semana. Para além de ver conterrâneos, vemos gente de todo o Mundo”, reforça a professora, que também ensina em vários outros espaços da cidade de Lisboa. Um deles é o Baião, junto ao Coliseu de Lisboa, espaço cultural muito orientado para a aprendizagem das danças de raiz brasileira, como o forró, o samba de gafieira e samba no pé, o mais livre e propício a dançar-se de forma individual.

Lívia explica que o samba no pé “tem uma técnica de pés, que vai passado para o quadril. Vem da terra, do chão, vai no pé, no joelho e depois para o quadril, vai pegando o coração e depois fica na expressão do rosto”.

“VIVA O SAMBA, MINHA GENTE" (Aidil Vieira, Dona Didi para toda a gente)

Quem dá início ao "Viva o Samba" é Dona Didi, uma senhora de 90 anos, sentada ali, junto do neto Betinho. Ele passa-lhe o microfone e ela dá as boas-vindas. Cícero comenta que é vontade da avó estar na roda todos os domingos. Com a sua bengala, acompanha o compasso e os sambas que vão sendo cantados. “A minha avó sempre foi muito ligada com o samba sempre… já foi directora de uma escola de samba em São Paulo, não uma escola de samba grande, uma daquelas do município, mas ela é que era directora da escola e cuidava da ala das baianas e eu lembro-me de sair na escola de samba e de estar ali assim pequenininho”, conta Cícero, que sente que é também por isto que a roda é um ambiente tão familiar.

São brasileiros e portugueses que amam o samba e que estão ali todos os fins-de-semana. A magia acontece de outra maneira. As pessoas tornaram o "Viva o Samba" num ritual semanal cheio de nostalgia e alegria, como requer este género, para muitos ainda demasiado colado ao Carnaval. Cícero atira: “As pessoas buscam o ritmo do samba antes da melodia. O ritmo chama, cativa, mexe com as pessoas, de uma maneira que ninguém consegue ficar parado”.

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Betinho Mateus a tocar o instrumento surdo que marca o ritmo do samba

Dona Didi fica ali sentada cinco horas com os netos e os outros músicos que fazem da roda do "Viva o Samba" uma família de partilha e amor. “O samba já não está muito nos media, está nos botecos, na casa dos gringos, está em todo o lado, a cultura expande-se”, diz Cícero, um dos responsáveis pela criação de um autêntico conjunto de viciados neste ritmo identitário brasileiro. Um amor que é feito de partilha e muito bom gosto musical. “Sempre fui de dividir, de fazer com que as possam estar bem juntas", assegura. E acrescenta: "Faço sempre questão que todos tragam outras pessoas, que depois trazem mais pessoas…”.

“PELA DÉCIMA VEZ” (de Noel Rosa)

É o caso de Madalena Gomes. Cabelos loiros e um jeito brasileiro de ser, pega no pandeiro e acompanha Cícero na roda. Ela é a convidada da noite. A roda do "Viva o Samba" quer continuar os convites a artistas e a cantores de samba. Sejam brasileiros de passagem, sejam portugueses. Madalena parece brasileira, mas não é. “Eu sempre ouvi fado, mas adoro samba e gosto muito de cantar na roda”, diz à VICE, enquanto cumprimenta os músicos e companheiros que chegam. Com um sorriso caloroso vai abraçando as pessoas. E salienta: “Comecei a fazer umas participações mais pontuais na roda há sete meses, ainda o 'Viva o Samba' ocupava o espaço Arte Casa, na Bica".

“É uma das maiores alegrias da minha vida, porque isto realmente é uma família tanto uns dos outros como do público”, justifica Madalena, que reforça a ideia de que os domingos no Titanic com a roda significam uma espécie de “limpeza da alma, porque uma pessoa sai de lá sorridente e com uma alegria contagiante”.

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Cícero Mateus com a portuguesa Madalena Gomes, cantores de samba e promotores das circulações brasileiras em Lisboa

De pé, Madalena, olha nos olhos das pessoas que sambam e batem palmas, que acompanham o refrão e a letra. O “Viva o Samba” está, segundo a sambista lisboeta, a mudar as mentalidades: “As pessoas estão a perceber que o samba e a cultura brasileira não é só aquilo que as pessoas pensavam, porque havia muito preconceito. Agora, estão a entender que o samba é uma cultura e estão conhecer mais e a investigar mais sobre o assunto”.

Cícero, que com Madalena canta sambas que exprimem a vida como ela é, uma vida comum a todas as pessoas, de ambos os lados do Atlântico, corrobora: “Ah, os portugueses adoram. Porque aqui em Lisboa há um pedaço de Brasil. É louco, né? Eu conheço portugueses no Rio de Janeiro que, quando estavam aqui, vinham na roda e quando eu vou lá no Rio vou visitá-los e tal. É maravilhoso. O samba está um pouco como que a invadir Lisboa”.

Na sua voz rouca e doce, Cícero Mateus lança um repto: "Se quiserem sentir um ritmo vibrante, que venham com coração aberto, com vontade de dividir o espaço com outras pessoas de vários lugares. Essa é a intenção de curtir o samba”. Lisboa está a mudar e estas circulações da música e dança mais identitária do Brasil são disso um espelho. As vivências e as histórias à volta do samba estão a mudar mentalidades e a apaixonar quem vive na capital portuguesa e quem a visita. A qualidade da roda e a sua produção musical poderá ser a embaixada para muitos outros projectos. As redes sociais fazem o resto. As circulações da cultura do samba vão-se expandindo e a Lisboa do fado vai-se transformando, também, na Lisboa do samba. Ainda bem. A cidade começa assim, a ter o toque “transformador” de que falavam Caetano e Gil. Vai ter samba até o sol raiar.


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