Mulheres negras e saúde mental
Ilustração: Flora Próspero/VICE

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Semana da Saúde Mental

Como conciliar militância e saúde mental sendo uma mulher negra no Brasil

Além do peso de estar na base da pirâmide social, é preciso se manter viva.

Ser mulher negra num país racista e machista não é uma tarefa fácil. Já disse a filósofa, professora e ativista norte-americana e pantera negra Angela Davis: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Frase que carrega todo o significado do que é ser mulher negra, pois além do peso de estar na base da pirâmide social, é preciso se manter viva e, acima de tudo, com saúde mental.

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Conversei com algumas mulheres negras que atuam na sociedade de diferentes formas para entender como conseguem conciliar o enfrentamento de problemas sociais com um psicológico em bom estado. Afinal, sobreviver na sociedade brasileira com machismo e racismo estrutural é adoecedor.

De acordo com a psicóloga clínica da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), Laila Resende, também negra e que realiza um trabalho clínico focado em mulheres negras, os estereótipos estabelecidos servem para encobrir o racismo e rotulá-las com as poucas permissões que lhes são concedidas.

Além disso, a falta de autoestima acaba criando limites estreitos para o existir da mulher. "Um exemplo é a contínua fiscalização da qualidade do trabalho de uma pessoa negra por colegas de trabalho em pé de igualdade (sem esta função) que leva a pessoa negra a acreditar que sempre está fazendo sua atividade aquém da expectativa”, explica Laila.

Joyce Fernandes, a Preta Rara, que é professora de História, rapper e arte-educadora, conta que o termo militante é algo muito recente em sua vida, uma vez que muitas mulheres o são, mas sem utilizar a nomenclatura.

“A militância surgiu na minha vida enquanto sobrevivência, quando eu percebi que eu e outras pessoas éramos diferentes e tratadas com diferença também. Daí comecei a utilizar o rap como ferramenta pedagógica, forma de protesto, escrever tudo o que eu passava, além de outros desabafos”, conta Preta Rara, também criadora da página Eu Empregada Doméstica, com relatos de mulheres que trabalhavam como diaristas.

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Preta Rara contou que teve um tempo que recebia ligações de mulheres pedindo ajuda e que ficava sem saber o que fazer: “Me ligavam até de madrugada, falando que queriam se matar, que perderam emprego, tinham filhos pra criar e o cara tinha ido embora ou porque foram despejadas ou [estavam] grávidas, e isso batia muito forte em mim”.

Para a rapper, isso era um peso, pois admite que já tinha os seus conflitos pessoais, para ainda somar com os problemas de outras pessoas. “Ainda tem as pessoas que acham que a gente não pode errar; esquecem que ativista tem que ser totalmente modelo; sendo que sou ser humano, tenho meus preconceitos que tento quebrá-los diariamente, como qualquer outra pessoa”, relata.

Outra questão importante é o autocuidado, que além de ser revolucionário é também uma forma de enfrentamento das opressões. Como relata Preta Rara: “Eu continuar viva já é um ato político, considerando as estatísticas do Mapa da Violência e o crescimento de feminicídios com mulheres negras. Para mim, o importante além de se manter viva e não se calar diante das opressões, é procurar afeto entre os nossos”.

Preta Rara / Foto: Arquivo pessoal

Preta Rara / Foto: Arquivo pessoal

Negra retinta, a jovem Monique Evelle conta que nunca teve dúvidas de que era preta, mas foi entre 13 e 14 anos que entendeu o seu papel social enquanto mulher negra. Quando então criou o projeto Desabafo Social. “O Desabafo foi o rompimento com o silenciamento. Porque eu falo que nunca fui tímida, fui silenciada. E a partir de então comecei a entender que preto e dinheiro não são palavras rivais; tanto que hoje eu empreendo como forma de militância”, explica.

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“Eu não saio pra lutar contra o machismo e, amanhã, contra o racismo, eu tenho que lutar contra os dois, pois ambos aparecem todos os dias para mim; e esse ficar 24 horas na defensiva para continuar existindo e resistindo é adoecedor”, conta Monique, consciente das opressões que sofre, assim como outras mulheres negras.

Para manter sua saúde mental, Monique conta que costuma dar pausas. E para a jovem, pausar não significa desistir. “Eu pauso para olhar de um outro ângulo o que está acontecendo para depois continuar, sem adoecer.”

Evelle explica que tão importante quanto a coletividade é a sua individualidade, pois afirma: “Eu preciso estar viva para continuar fazendo o que eu faço. E eu tenho limites. Eu sei até onde posso chegar sem adoecer, sem ferir minha sanidade mental. E se eu continuar nesse exercício de sempre enfrentar, o enfrentamento por si só adoece”.

“Assim como o coletivo adoece, porque o mesmo coletivo que está do nosso lado dizendo ‘Vamos juntas! Vamos nessa!’, é o mesmo que coloca demandas de militâncias e outras demandas absurdas que a gente não dá conta, porque nem todo mundo tem o mesmo ritmo, nem todo mundo está preparado para lutar da mesma forma, então cada um tem um jeito de agir e eu reconheço os meus limites. É preciso muito equilíbrio entre individualidade e coletividade”, afirma.

A psicóloga Laila Resende explica que a desumanização das pessoas negras é uma das formas de existir do racismo. A medida que internalizamos o estereótipo de mulher forte retiramos de nós mesmas nossa humanidade. “É possível ser ativista e assumir nossas fragilidades, pois isto não nos torna pessoas fracas, ao contrário, nos auxilia no fortalecimento interno, no empoderamento subjetivo para o enfrentamento das diversas violências”, finaliza.