Esportes

Cristiano Ronaldo é um ícone da corrupção nos esportes

Em vez de focar no astro Ronaldo, foque no atleta incorporado num sistema profundamente corrupto e explorador. Aí você pode ver as coisas como realmente são: uma história sobre a total falta de responsabilização de homens que se acham acima da lei.
Cristiano Ronaldo faces rape allegations.
Foto por Andy Rain/EPA-EFE.

Katryn Mayorga abriu uma ação civil na Corte Distrital de Clark County em Nevada; ela alega que o astro do futebol Cristiano Ronaldo a estuprou em 2009. Na época, ela deu queixa na polícia e passou pelo exame médico. Ela acabou retirando a acusação por conselho de um advogado que provavelmente tinha pouca experiência com o tipo de máquina legal que ela estava confrontando. Ela recebeu US$ 375 mil por seu silêncio. Ano passado, a revista alemão Der Spiegel recebeu documentos sobre o caso do Football Leaks. Eles publicaram a história, Ronaldo ameaçou processá-los, a Der Spiegel convenceu Mayorga a falar publicamente, e Ronaldo ameaçou processar de novo. Mayorga vai ter que continuar aguentando ameaças e escrutínio de todo tipo de advogados, empresários, detetives e legiões de torcedores. Essa não foi a primeira acusação de violência sexual que Ronaldo já encarou, mas até agora é a mais séria.

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Vale a pena dar um passo atrás, depois do ciclo inicial da mídia e antes que o próximo comece, para considerar por que e como esse assunto importa. Vale lembrar o contexto em que a história de Mayorga emergiu – o Football Leaks não é conhecido por expôr acusações de estupro. Seu território é transações de transferência, contratos de patrocínio, uso de empresas de fachada para evasão fiscal, autocontratação, manipulação de resultados e lavagem de dinheiro.

Nesse baú de informações estão registros documentando as negociações entre o advogado de Mayorga e a equipe legal de Ronaldo. Esses não são os únicos documentos referentes a Cristiano Ronaldo nos arquivos do Football Leaks. Em 2014, Ronaldo evitou pagar 35 milhões de euros desviando 65,5 milhões de sua fortuna para um paraíso fiscal nas Ilhas Virgens Britânicas. Eventualmente, ele se admitiu culpado de quatro acusações de evasão fiscal, concordou em pagar 19 milhões de euros e aceitou uma sentença de condicional de dois anos. Os documentos do Football Leaks sobre corrupção financeira praticada por uma rede de homens – empresários, donos de time, jogadores e oficiais – circula em ternos caros, passando por saguões de hotel, salas de reunião de companhias e casas que parecem mais instalações corporativas.

Precisamos ver como essas pessoas abordaram a queixa de Mayorga – o jeito como Mayorga foi tratada – como parte da cultura do esporte, como uma expressão não só de seu patriarcado, mas também de sua corrupção. Quando pediram que ele comentasse sobre o ressurgimento da história de Mayorga, Ronaldo deu de ombros, chamando o caso de “fake news”. Em março, ele usou essa mesma linguagem em resposta a rumores de que autoridades espanholas levariam adiante acusações criminais depois que recusaram o acordo inicial da equipe dele. No Instagram, ele pediu aos fãs para não dar atenção para “fake news” visando estragar o “lindo momento” de seu retorno à forma.

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A pressa para defender Ronaldo de treinadores, diretores de clube, patrocinadores e torcedores já era esperada. O Juventus elogiou o “profissionalismo e dedicação” do jogador, e deixou claro que a acusação de estupro não mudaria a opinião deles sobre “esse grande campeão”. O Juventus, vamos lembrar, tem a própria reputação para defender: o clube estava no centro do Calciopoli – o Watergate do futebol italiano, onde clubes foram acusados de vender resultados e outras formas de conluio. A Série A passou mais de uma década se reerguendo – por anos os jogadores fugiram do futebol italiano porque sua estrutura era tão corrupta, mesmo para uma instituição esportiva, que era impossível confiar.

Por que é mais fácil questionar os motivos da vítima que os motivos do acusado?

As pessoas que cercam Ronaldo são profundamente investidas nele. Os patriarcas do futebol não conseguem imaginar uma paisagem do futebol sem Cristiano Ronaldo. Em 2017, a Forbes estimou que ele colheu quase $1 bilhão de dólares apenas de sua presença nas redes sociais. Ele tem 122 milhões de fãs no Facebook, mais que qualquer outra pessoa. O alcance que ele pode fornecer a um patrocinador vai além de qualquer outra figura pública. Um porta-voz da Nike aparentemente achou as acusações de estupro “profundamente preocupantes” e “perturbadoras”. Ronaldo assinou um contrato vitalício, no valor de US$ 1 bilhão, com a Nike em 2016.

Mas a Nike também está no meio de um rebranding – eles estão centrando a marca da companhia em atletas que defendem mais do que apenas vencer. Colin Kaepernick, Serena Williams, Caster Semenya e a jogadora de futebol mexicana Nayeli Rangel recentemente foram elevados pela Nike como ícones nos encorajando não só a “just do it”, mas fazer mais. E fazer mais apesar das estruturas de poder que podem nos moer até o nada. A Nike, por sua vez, teve seus próprios confrontos com o #MeToo – quase uma dúzia de executivos foram afastados da companhia recentemente, depois que funcionárias realizaram uma pesquisa sobre experiências com assédio e bullying, e levaram seus resultados direto para o CEO da companhia.

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O acordo entre o advogado de Mayorga e a equipe de Ronaldo é apenas mais um documento na montanha de registros descrevendo arranjos feitos entre e ao redor de um pequeno grupo de homens, enquanto eles asseguravam as estruturas de poder fundamentalmente corruptas que usam para minerar os recursos do universo dos esportes. Considerando as pilhas de provas documentando a corrupção de Ronaldo e sua equipe de gestão, deveríamos considerar a acusação de Mayorga como digna de crédito.

Mas os fãs de Cristiano Ronaldo não querem ouvir nada disso. Manchester United, Real Madrid e Juventus são alguns dos maiores nomes nessa estrutura de poder, corporações que estimulam e exploram a identificação dos torcedores com suas marcas, e usam isso como um escudo. Eles vendem o esporte como algo fora da política. Eles apresentam um espetáculo escapista, algo que os torcedores anseiam. Essa ideia da superhumanidade de Ronaldo não é uma parte pequena do prazer que ele nos oferece. Sua altura, corpo perfeito, postura impecável – num esporte onde os ícones mais amados geralmente são um tanto excêntricos (Ronaldinho, Messi, Garrincha), Cristiano Ronaldo se oferece como um monumento à perfeição masculina. A apresentação de Ronaldo como superhumano encobre tanto os crimes do atleta como a avidez dos ladrões corporativos comandando o jogo. Sua publicidade sofisticada trabalha para criar um senso problemático de intimidade e apego entre os torcedores e seus heróis. E agora esses torcedores se voltaram contra sobreviventes de violência sexual.

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Por que é mais fácil questionar os motivos da vítima que os motivos do acusado? Nas redes sociais, uma resposta comum desses torcedores pra qualquer um que acredita em Mayorga é “você estava no quarto?” Apesar da óbvia natureza retórica do comentário, há algo muito revelador nele – é um desejo. Eles se imaginam naquele quarto. Eles se imaginam como o álibi de Cristiano Ronaldo.

As respostas fervorosas para as acusações contra Ronaldo são impressionantes. Elas se focam nas conquistas e talento atlético dele. Focam na figura do ícone esportivo, e você pode ver isso como uma história da acusação de uma mulher contra um homem de sucesso. Mas foque no astro incorporado num sistema profundamente corrupto e explorador, e você pode ver essa como uma história sobre a total falta de responsabilização de homens que não se veem como o resto de nós – eles se veem como acima da lei, e por uma boa razão. Para todos os propósitos e intenções, as pessoas que comandam o futebol são mesmo.

Ronaldo é um jogador icônico – mas o quê, perguntamos, ele representa se não a corrupção dos maiores talentos do futebol por suas instituições mais sinistras?

A corrupção é tão normalizada nas instituições esportivas que é difícil imaginar o que os esportes seriam se isso não fosse verdade. O que seria a NCAA sem a grande mentira do amadorismo? O que seria a NFL sem sua história de minimizar e negar o sofrimento dos jogadores? O que fazemos com a onipresença da violência sexual na cultura do futebol universitário? Com a violência doméstica na cultura dos esportes profissionais masculinos? O que fazemos com o MSU, USA Gymnastics e o COI – organizações que desconsideraram queixas de atletas e alimentaram abuso de atletas? Com os ex-atletas de Ohio State que estão exigindo responsabilização de sua própria comunidade?

O que aconteceu com Katryn Mayorga importa. Para entendermos como isso importa, precisamos entender que violência sexual não acontece num vácuo.

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O ultraje expresso contra uma mulher que ousou acusar Cristiano Ronaldo por violência sexual é parte da mesma indignidade sentida por Brett Kavanaugh. Para os mesmos poucos homens que se beneficiam desses esquemas de pirâmide corporativa, é inimaginável que o jeito como eles tratam mulheres deveria ser indicativo de qualquer coisa importante sobre eles. Mais homens e mulheres do que gostaríamos também estão investidos nessa fantasia – eles afundam seu senso de justiça em instituições que exigem que eles mantenham as próprias bocas fechadas, não façam as contas, não vejam o que está bem na frente deles. Formações patriarcais supremacistas brancas são corruptas por definição.

Vamos lembrar que esse sistema é ruim para todos nós. Até agora, no Reino Unido, por exemplo, mais de 800 meninos e homens falaram publicamente sobre ser vítima de abuso sexual nas mãos de homens trabalhando nos times de lá. Em sua revisão de fracassos institucionais a FA não encontrou evidência de um cartel de pedofilia com acobertamento deliberado. Que as pessoas no comando de clubes de futebol não vejam isso como algo que precisa ser acobertado não é de grande consolo. Na verdade, isso é um lembrete de que os comportamentos sexualmente abusivos dessas instituições é um aspecto definidor de sua cultura profissional.

Há anos, muitas pessoas apontam e detalham a relação abusiva da FIFA e COI com mulheres – com atletas, torcedoras, treinadoras, juízas, consumidoras e membros das comunidades esportivas. Jogadoras de futebol feminino relataram assédio e homofobia de seus treinadores e administração. Atletas de vários esportes estão expondo treinamento abusivo como abuso de poder, com consequências perigosas. Time atrás de time protestam sobre a exploração de seu esporte por golpistas, incompetentes e pervertidos. Times femininos são usados sempre que os clubes e federações precisam dizer “não somos tão ruins assim – olha, temos um time feminino”.

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Mas a administração caótica do futebol feminino é uma expressão crua da misoginia e corrupção no futebol. Enquanto os recursos chovem do lado masculino, dizem para as mulheres que elas são um fardo para os clubes, uma vergonha, impossíveis de fazer render dinheiro. Torcedores do futebol feminino veem times nacionais de superpotências do esporte como Brasil e Espanha sofrerem com o manquejar de seu desenvolvimento, treinamento e marketing. Apesar de a FIFA estar feliz em usar seu apoio a Copa do Mundo Feminina como prova de suas boas intenções, recentemente a instituição marcou duas grandes finais de torneios masculinos no mesmo dia da final feminina. Durante as acusações de 2015 contra a FIFA, seu apoio meia-boca a Copa do Mundo Feminina no Canadá pareceu só cosmética.

Se as pessoas que cercam atletas de alto escalão estão disposta a pagar para vítimas de assédio e violência sexual é porque estão acostumadas com esse tipo de arranjo, que é pouco mais que subornos para acobertar os crimes uns dos outros. Eles não veem as mulheres como colegas, como membros de sua comunidade a quem precisam responder – eles veem mulheres como álibis e evidências.

Confrontar o machismo e a violência sexual nas escolas e locais de trabalho é confrontar a presença de corrupção nas instituições que pretendem nos governar. Enquanto nossa relação com escolas e trabalho parece compulsória, nossa relação com os esportes parece voluntária. Como torcedores, escolhemos esse mundo toda vez que ligamos a TV numa partida ou colocamos a camisa do nosso jogador favorito. Sim, Cristiano Ronaldo é um jogador icônico – mas o quê, perguntamos, ele representa se não a corrupção dos maiores talentos do futebol por suas instituições mais sinistras?

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Jogadoras de futebol feminino não estão aceitando ser negligenciadas, e desfiladas esporadicamente, por essas organizações. Nos últimos anos, ações diretas, como greves e sindicalização estão colocando as federações sob pressão. Por exemplo, o time nacional da Argentina se recusou a atender a convocação em 2017 até que a federação concordasse em pagar as remunerações prometidas, e funcionou. Na região, as mulheres estão apoiando umas as outras nos esforços para mudar a maneira como as organizações de futebol as tratam. Às vezes, colegas homens se mostram aliados, como quando o time masculino norueguês concordou com um pequeno corte para atingir a igualdade de salários para o lado feminino.

Isso fala sobre a existência de um outro mundo dos esportes. Há esse sentimento de comunidade e alegria que nos atraiu para as quadras, pistas e campos em primeiro lugar. Esse é o mundo dos esportes comprometido com o tipo de competição que tira o melhor de nós – o mundo que fazemos nos nossos jogos de final de semana, nas competições escolares, nas academias da vizinhança. O mundo de base em que realmente vivemos. Quando exigimos mais dos nossos ícones, podemos, aqui e agora, fazer mais para e com os outros. Podemos ouvir as histórias que as pessoas estão compartilhando; podemos ouvir os indivíduos que estão trabalhando suas experiências de violação sexual dentro e ao redor dos esportes. A acusação contra Cristiano Ronaldo não é “apenas” uma história sobre sexo; é uma história sobre esportes. Vamos tirar nossa atenção do ícone por tempo suficiente para conseguir ver o mundo que o produziu como intocável.

Nota do editor: Na segunda-feira, dia 22 de julho de 2019, a procuradoria de Nevada decidiu por não acusar Cristiano Ronaldo criminalmente por estupro.

Jennifer Doyle é professora de Inglês da UC Riverside. Ela escreve sobre arte, esportes e gênero. Ela é a autora de Campus Sex/Campus Security .

Brenda Elsey é professora de História da Hofstra University. Ela pesquisa e escreve sobre cultura popular e política, particularmente nos esportes da América Latina. Ela é coautora de Futbolera: A History of Women and Sport in Latin America com Josh Nadel. Ela também apresenta o podcast de esporte e feminismo Burn It All Down.

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