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Por dentro do popular e problemático restaurante nacionalista ucraniano

No Kryjivka, clientes podem saborear uma deliciosa tigelona de borscht vermelho-sangue e então treinarem sua mira em alvos com as caras de Lênin e Stálin no estande de tiro do local.
Crédito: Fanpage do Kryjivka

O mundo se familiarizou com a frase “Slava Ukraini” ou "Glória à Ucrânia" quando o futebolista croata Domagoj Vida foi flagrado falando-a logo após a vitória de sua seleção sobre a Rússia nesta Copa do Mundo. Na Rússia, usar estas palavras pode acabar em porrada, mas se ditas em um restaurante em Lviv, no leste da Ucrânia, te rendem uma refeição.

Isso porque é necessária uma senha para entrar no sempre lotado restaurante de temática nacionalista Kryjivka, "o último refúgio do Exército Insurgente Ucraniano dos tempos de Segunda Guerra Mundial ", como consta em seu site.

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Kryjivka, ou o 'Bunker', só pode ser adentrado ao se bater em uma discreta portinha de madeira e gritar o tal slogan. Um homem corpulento, de uniforme, então abre a porta e caso você não seja considerado um simpatizante russo, lhe oferecem uma dose de vodca de mel. Dali por diante, uma estante se abre e você desce uma escadaria rumo a um porão cavernoso e parcamente iluminado, que é o restaurante. As garçonetes saúdam você com um “Slava Ukraini” e você responde, então lhe conseguem uma mesa e sua doutrinação nas delícias da resistência armada tem início.

Crédito: autor do texto.

O cardápio do Kryjvika tem pratos típicos e adorados da região tais como orelha e focinho de porco fritos, arenque em conserva, bolinhos e por aí vai. Após fazer o pedido, é recomendável dar um rolê pelo local. O Bunker é um local escuro, um sem fim de cômodos cujas paredes são adornadas com faixas e bandeiras dos heróis da resistência ucraniana, junto de alguns boxeadores famosos, além de um saco de pancadas contando com o rosto de um anacrônico Vladimir Putin. Pelo espaço, vemos tripés de metralhadoras, pilhas de rádios de ondas curtas e cápsulas usadas de artilharia. Em uma das estantes, garrafas foram arrumadas de forma a parecerem explosivos – os famosos coquetéis molotov; caso você se perca, basta seguir o chamado de “Slava Ukraini” e você logo retornará à sua mesa, onde uma obrigatória tigela de borscht vermelho-sangue lhe espera.

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Crédito: autor do texto.

No Kryjivka, e em Lviv como um todo, não existe isso de borscht ucraniano, o nome é só borscht mesmo. Que a sopa de beterraba é natural da Ucrânia é algo óbvio, independente do que o povo ao leste afirma. No Kryjivka, o borscht vem lotado de carne de porco e vegetais revigorante, sem quaisquer indícios da privação dos tempos de guerra; já os outros pratos, são servidos em latas semelhantes às rações militares de outrora, podendo virar armas se necessários. Embutidos, como a linguiça, são enormes e vem na forma de rifles, acompanhados de pimentas como o gatilho. Uma entrada feita com ovo cozido vem com cebolinha o suficiente para afastar qualquer exército, os ovos perfeitos, com a gema escorrendo, explodem belamente se atirados na direção do inimigo. Vodca não falta para atender às necessidades dos clientes e seus nervos de aço afetados pelo combate.

Crédito: autor do texto.

A diversão piegas não para aí. As garçonetes, além de usarem camuflado, trajam camisetas com a imagem de Taras Shevchenko, ilustrado aqui numa pegada meio Che Guevara, com o apelido espertinho “She”. Claro que estas camisetas estão a venda na lojinha do recinto, que aliás, afirma servir mais de um milhão de clientes ao ano. É Slava Ukraini pra dar e vender.

Depois de comer, é hora de voltar a defender a nação. Você pode fazer isto no estande de tiro dali, em que patriotas meio ébrios, independente de nacionalidade, podem atirar balas de festim de armas legítimas da Segunda Guerra Mundial. Infelizmente, estava fechado para reformas quando fui ao restaurante, mas de acordo com relatos é possível atirar em alvos com as carinhas de Stálin e Lênin. Se você tem um fetichezinho por guerras e essas coisas, ainda dá pra se divertir bastante: dá pra tirar fotos como soldado ucraniano prendendo um combatente inimigo, ou experimentar uma gandola dos militares de lá e um capacete, pegar uma pistola automática e sair apontando para famílias que estão só ali curtindo suas panquequinhas de batata e kvass.

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Crédito: autor do texto.

O restaurante tem como anexo o pátio do prédio onde se encontra. Lá, uma torre construída com peças de avião é responsável por içar a carcaça de um carro levantado. Casais de jovens sobem a escada de incêndio rumo ao prédio adjunto e tentam acertar uma moedinha no teto do carro, então se beijam e fazem um pedido. De cima do prédio é possível ver boa parte de Lviv sentado em uma peça de artilharia anti-aérea apontada perpetuamente na direção da Rússia. Os russos malandros o suficiente para se infiltrarem no Kryjivka (e há muitos desses, considerando a aparente popularidade do local com turistas russos) correm o risco de serem tomados como reféns e obrigados a cantarem hinos ucranianos.

Crédito: autor do texto.

Mas assim que os efeitos da vodca e sede de sangue passam, ao observar com mais atenção o passado de nomes como Stepan Bandera, cujo rosto adorna parte do lugar onde você acaba de comer umas conservas de endro, tudo fica um pouquinho mais sério. As afiliações nazistas dos líderes da resistência é um fato conhecido – por mais que o governo tenha retirado o título de “Herói Ucraniano” de Bandera já que ele não era cidadão ucraniano de fato, os donos certamente conhecem a história do cara e sua inclusão ali não é à toa. Tudo no Kryjivka é bem calculado.

A empresa detentora destes restaurantes chama-se Emotion, o que talvez não seja exatamente uma surpresa. Cada um de seus estabelecimentos em Lviv segue uma temática diferente, em busca de evocar uma certa nostalgia ou orgulho nacionalista – e até mesmo representar estereótipos anti-semitas; a empresa também opera o At the Golden Rose, restaurante de temática “judaica” em que os clientes devem barganhar o preço de seus pedidos de acordo com a “tradição judaica”, podendo até mesmo usar um kippah durante a refeição. As paredes são revestidas com reproduções de Bruno Schultz e ferramentas usadas em procedimentos de circuncisão.

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O Pravda Beer Theater, restaurante e complexo cervejeiro localizado ao longo de vários andares de um prédio histórico domina a praça central da antiga Lviv, oferece produtos também polêmicos, como sua cerveja Putin Huilo (Putin Cuzão) que também abastece o Kryjivka, sendo esta sua mais popular bebida. A moça na lojinha comentou ainda que esta cerveja é uma das lembrancinhas favoritas de turistas russos e ucranianos. Ao menos nisso o pessoal se entende.

Crédito: autor do texto.

Sobre a lojinha: ainda dá pra comprar uma cerveja cujo rótulo conta com a torre do aeroporto de Donetsk mandando aquele dedinho do meio brutalista na direção da Rússia, ou então uma caneca estampada com uma metralhadora, ou uma granada de cerâmica pra guardar cubinhos de açúcar – ou munição. Dá pra pegar uma metralhadora de brinquedo pro seu pimpolho ou mesmo uma série de badulaques de pegada nacionalista engraçadalhos nas cores da bandeira ucraniana. A revolução, meus amigos, será comercializada.

Mas no final das contas (incluindo camisetas, aulas de tiro e muito borscht), o Kryjivka, apesar da temática, não tem nada a ver com doutrinação nacionalista e sim consumista. A lojinha é o único lugar calmo do lugar, e você sai de boinha por uma porta lateral, sem precisar gritar Slava Ukraini, afinal, a glória toda ficou para trás.

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE US.

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