Na manhã de hoje (28), a audiência pública da Comissão de Direitos Humanos no Senado Federal que discutiu a proposta de lei visando a regulamentação da interrupção da gravidez voluntária pelo Sistema Único de Saúde (SUS) cumpriu perfeitamente as expectativas. As convidadas e convidados contrários ao direito de abortar seguiram o modo de votação que vimos no Congresso e justificaram uma questão séria de saúde pública com argumentos e relatos de cunho pessoal e religiosos.
O mal-estar começou com o relator responsável pela Sugestão nº15/2014: O senador Magno Malta, um político religioso amplamente conhecido como um defensor ferrenho contra o direito de aborto e também contrário ao acesso à medicamentos que permitem a profilaxia da gravidez, como a pílula do dia seguinte. O apreço pelas causas polêmicas do senador Malta já é conhecido desde que presidiu a CPI da Pedofilia (que já comentamos nessa reportagem) onde o político usou um assunto sério como a pornografia infantil oportunamente para conquistar eleitores.
Videos by VICE
No curso do debate, um médico obstetra chamado Ubiratan Loureiro Júnior chegou a comentar que a mulher que “bebe e vai pra balada” precisa assumir suas responsabilidades e enfrentar a gravidez indesejada. Como de costume, há a clássica condenação da mulher com vida sexual ativa que precisa lidar com a gravidez como um castigo por sua promiscuidade. A jornalista batista Patrícia Lelis alertou: “As feministas querem legalizar o aborto para praticarem o ‘sexo ilícito’.”
Outra ativista pró-vida, Doris Hipólito, seguindo a mesma retórica de sempre, não poupou palavras ao relacionar o direito de escolha ao assassinato. Durante sua fala, depois de ter mostrado as atividades da sua ONG que presta apoio à mulheres grávidas, afirmou que “a mulher brasileira não quer conquistar o título de assassina da sua própria prole. Nós, mulheres brasileiras, temos uma vocação sublime que é a da maternidade”.
Uma das convidadas mais conhecidas foi Sara Winter (cujo nome real é Sara Fernanda Giromini), uma figurinha popular na internet graças à sua capacidade impressionante de disseminar mentiras e memes, chegou a soltar um choro forçado durante a sessão. A ativista recém-convertida, que se diz ex-gay, ex-feminista e ex-nazista (embora haja dúvidas sobre a veracidade dessa última declaração considerando a escolha do seu nome), usou o microfone para destacar sua campanha contra o movimento feminista e reforçar as denúncias criadas a partir da sua mente confusa e solitária de que muitas feministas enriquecem com o aborto ilegal e que existe uma rede grupos feministas virtuais que induzem as mulheres à interromper a gravidez.
Embora seja errado bater palma pra louco dançar, é preciso reafirmar novamente que Sara Winter jamais foi feminista. Nem quando apareceu representando o FEMEN (que não é um movimento feminista), quando tentou (sem sucesso) participar do BBB e pouco tempo antes de se considerar evangélica quanto tentou emplacar um movimento pró-mulher, também sem sucesso. Nenhum coletivo, organização ou movimento social sequer considerou acolher Sara por causa do seu passado atrelado ao nazismo e seu apreço ao sensacionalismo. Sara Winter nunca foi defensora dos direitos das mulheres no país, ela apenas o utilizou como trampolim para tentar se promover como uma subcelebridade.
Não há mais o que debater sobre uma mulher que faz conchavo com um deputado que já disse à senadora Maria do Rosário que “não te estupro porque você não merece” e também prestou homenagem ao Brilhante Ustra, notório torturador durante o período da ditadura militar. Nesse caso, a fala de Paula Viana do Grupo Curumim que falou pouco depois da “ex-feminista” resume bem: “Ao invés de levar essa menina para a igreja, levem ela para um psiquiatra, pelo amor de deus”.
Ainda assim, mesmo com os convidados contra o direito de abortar tendo chamado atenção pela falta de argumentos científicos, eles não conseguiram ofuscar as mulheres convidadas a apresentar argumentos que justificam a regulamentação do aborto.
A médica obstetra Melânia Amorim reservou sua fala em elencar dados científicos importantes que demonstram o óbvio: o aborto já existe (já somam 1 milhão de abortos por ano no Brasil), porém quem sofre as sanções penais são as mulheres pobres e negras. As cidadãs que não podem bancar um aborto clandestino em clínicas médicas confiáveis são as que mais sofrem e complicações decorrentes do aborto ilegal contabilizam 15% das mortes maternais e quase que a totalidade dessas mortes maternas são decorrentes da própria prática insegura de abortamentos clandestinos.
“A maneira mais simples de reduzir as mortes maternas no Brasil e no mundo é legalizar o aborto e tornar acessível dentro do sistema público de saúde a interrupção da gravidez mediante a decisão da mulher”, resumiu Amorim.
Segundo a pesquisa Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna, mencionada por Amorim, a incidência de aborto entre as mulheres de diferentes religiões é praticamente igual e não foi observada nenhuma diferença significativa entre grupos religiosos. O que se comprovou é que a prática do aborto é tão comum que de cada cinco mulheres brasileiras, mais de uma já abortou. A maioria são mulheres jovens e de escolaridade baixa, com pouco acesso à informação sobre a profilaxia da gravidez e métodos contraceptivos.
No começo da audiência a advogada Eloísa Machado de Almeida atentou para esses fatos e defendeu que a própria Constituição Federal prevê o direito constitucional da autonomia e da dignidade humana que abarcam, inclusive, o direito de escolha das mulheres seguirem ou não com uma gravidez. Eloísa também frisou a incidência das mulheres que são afetadas pela criminalização do aborto. “Há um recorte muito cruel no exercício de direitos no Brasil que afetam sobretudo as mulheres e as mulheres negras que têm um exercício de direitos no país muito mais difícil e marcado por mais seletividade do que outros grupos. Então é preciso pensar em uma política pública que seja também universal. “
A socióloga Guacira César de Oliveira, em um discurso inflamado, atentou a legalização da escolha de abortar não quer promover mortes, mas sim dar amparo à mulher que precisou optar pela interrupção e que ela não seja penalizada pelo sistema legal [aborto é crime contra a vida e é previsto no Código Penal].
“Nós somos cidadãs morais e éticas, legitimamente exercemos a nossa autonomia de decisão sobre quando e se queremos parir. (…) Nós não queremos que a pessoa que fez ou decidiu por um aborto fiquem abandonadas. Não queremos que elas sejam torturadas pela culpa, não queremos que elas vão para a cadeia, não queremos que elas sejam abandonadas pelos seus familiares e nem odiadas pelas outras mulheres. Nós queremos, reivindicamos e lutamos todos os dias para acolher as mulheres que não têm o apoio do Estado. “
A professora mexicana Letícia Bonifaz, outra convidada para apresentar os argumentos pró-escolha, deu um precioso relato de como foi a implementação da regulamentação de clínicas de aborto na Cidade do México. As semelhanças levantadas pela professora, especialmente quanto ao perfil das mulheres (jovens e pobres) do país que recorriam à abortos ilegais, são imperativas. “O feminismo se caracteriza por ir contra ao determinismo biológico. A mulher não precisa ser mãe só porque é fêmea. A maternidade é uma decisão”, finaliza.
Com projetos de lei tramitando na Câmara que dificultam o acesso do aborto em casos de estupro e risco da mãe e a incapacidade de se discutir a proteção da mulher e do seu direito de escolha, parece que ainda muito sangue de mulheres escorrerá por conta da criminalização do direito de escolha dos nossos próprios corpos.