Mate-me (Eventualmente), Por Favor
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Tecnologia

Mate-me (Eventualmente), Por Favor

A promessa utópica tecnológica da imortalidade é assustadora e nojenta.

​"Conheçam o inventor que pretende viver para sempre", dizia a chamada da coluna "Breakfast With the​ FT" do último domingo, em que Ray Kurzweil, inventor do scanner como o conhecemos hoje e os primeiros sistemas que transformam texto em voz, convidou Caroline Daniel do Financial Times para tomar café da manhã em seu apartamento em San Francisco. A refeição consistia de frutas, peixe defumado, chocolate amargo, leite de soja WestSoy e, de acordo com Daniel, "uma tigela de mingau grosso [que permaneceu] intocada por mim". Kurzweil também botou pra dentro suas 30 pílulas matinais, parte de um regime de suplementos diários que custa "uns milhares de dólares por dias" e que inclui coenzima Q10, luteína e extrato de uva-do-monte, glutationa IV, vimpocetina e piridoxal 5-fosfato.

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Além de seu trabalho como inventor e cientista da computação, Kurzweil é cofundador da Singularity University e autor de The Singularity is Near. A Singularidade é o momento em que a biologia humana será transcendida através de uma fusão com As Máquinas: em outras palavras, quando a inteligência não-biológica ultrapassar a humana. Kurzweil crê que a Singularidade ocorrerá po​r volta de 2045. Uma série de tecno-utópicos comprou a ideia; o site da Singularity University mostra como apoiadores empresas como Google, Genentech, Nokia e Cisco.

Kurzweil quer ficar saudável o bastante para sobreviver até aquilo que ele chama de "Ponte Dois", quando os avanços na biotecnologia permitirão o reprogramar de nossa genética, e a "Ponte Três", quando teremos a capacidade de reconstruir nossos corpos através da nanotecnologia. Kurzweil diz que a inteligência artificial "sairá de nossos bolsos para entrar em nossos corpos e mentes".

Vendo de perto, a imortalidade que esse cara vende parece tão apetitosa quanto seu café da manhã.

Se imortalidade significasse, como muitos Singularitários parecem crer, o "upload" de nossa consciência em mundo virtual com jeitão de Matrix por meio de um super-nano-treco virtual na nuvem tipo Oculus, será que alguma pessoa em sã consciência participaria de bom grado de um futuro tão dependente e incerto? A distância entre estas fábulas e sua realização no mundo real é vasta, no mínimo. Mas mais que isso, seria exigido um salto de fé gigantesco que vai além do que até o Papa Francisco poderia imaginar, ao contrário do que acontece com Kurzweil, Larry Page, Peter Thiel e Peter Diamandis, já que tal existência – mesmo que pudesse "curar a morte" – seria remotamente desejável.

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Primeiramente, a visão de imortalidade de Kurzweil e companhia, não importando que garantias eles dão do contrário, necessariamente levariam a uma perda significante na autonomia e livre-arbítrio. Você como um todo, nas mãos das Máquinas. E ainda mais, sujeito às vontades daqueles que controlam as Máquinas. Atrelado a eles, em dívida com eles. Eles poderiam te desligar? Te prender ou torturar? E se você criasse inimizade com um deles, como cidadãos livres normalmente o fazem? Haveria um Morpheus para mostrar a saída? Haha, improvável!

E qual seria exatamente o objetivo da existência sem livre-arbítrio? Que perigos surgiriam ao confiar sua consciência a alguma empresa triunfalista do Vale do Silício, sem nenhum meio de cair fora? Tem certeza que as condições em que vivemos são tão precárias assim?

Além do que, o histórico de planos como o de Kurzweil até o momento é tudo menos encorajador. Observemos a criogenia, por exemplo – o congelamento de corpos na esperança de descongelá-los e reanimá-los no futuro. This American Life [programa de rádio dos EUA] já nos contou a história das primeiras empresas de criogenia, administradas por entusiastas esperançosos sem nenhuma experiência científica, e sem a menor ideia de como proceder. Ou sem o orçamento necessário para impedir que seus membros descongelassem até o glorioso dia da ressuscitação chegar, algo que se provou ser um empreendimento muito complicado e muito caro. A transcrição do programa rende uma leitura bem triste.

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Seu nome era Marie Sweet. E entre as coisas que deixou ao morrer, havia uma foto que alguém havia tirado sua, 27 anos antes, junto de uma mensagem manuscrita. Ela dizia, 'É assim que eu quero ser restaurada.'"

De acordo com o sit​e da Alcor, uma empresa de Scottsdale que atualmente mantem 134 picolés humanos aguardando o eventual ressu​scitar, todos menos um dos corpos congelados antes de 1974 por pioneiras da criogenia já foram descongelados​ por meio de uma série de desventuras e então enterrados (ou cremados) – nove deles descongelados e apodrecidos ao mesmo tempo em um evento conhecido no meio como "O Desastre de Chatsworth". (Note que estamos longe de curar a malária, quanto mais reanimar os mortos.) O único "sobrevivente" dos primórdios da criogenia é James Bedford, preservado em 1967 cujas células provavelmente não estão em sua melhor forma por conta de tropeços de perfusão e armazenagem.

A paciente mais nova da Alcor é Matheryn Naovaratpong, membro de número A-2789, que morreu devido a um câncer cerebral em janeiro deste ano em Bangcoc. Por mais que ela nunca​ tenha chego ao seu terceiro aniversário, esta pequena aguentou uma série de intervenções médicas, se​m sucesso.

A família de Matheryn, indo inclusive além de seu pai e mãe, apoiaram a ideia e afirmaram terem planos de serem preservados criogenicamente pela Alcor. Não há dúvidas de que ser cercada pelos rostos conhecidos de parentes que a amam tornará a retomada de sua vida – como esperamos que ocorra – mais fácil e alegre.

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Uma criança morta após uma dúzia de neurocirurgias mais "quimioterapia agressiva [e] radioterapia de alta dosagem". Você pode imaginar a esperança que os pais tem de que sua filha seja trazida de volta à vida em um mundo em que a medicina poderá lhe dar uma chance real de viver. Mas há uma ironia terrível considerando a esperança que houve antes, também, por meio das promessas científicas que foram feitas a estes pais, procedimento após procedimento, sala de espera após sala de espera, cirurgia após cirurgia, ao longo da curta e dolorosa vida de sua filha.

O "residente" número 128 da Alcor é Hal Finney, um famoso criptógrafo e pioneiro do Bitocin que morreu de esclerose lateral amiotrófica em Scottsdale no ano passado. Sua esposa, Fran, também já fez os arranjos necessários para ser preservada criogenicamente. O site da Alcor diz que Fran "está feliz de ter a chance de vê-lo novamente em algum momento do futuro quando poderão retornar em corpos rejuvenescidos". Finney era um cientista, mas esta linguagem é familiar a qualquer um que frequentou a igreja em um domingo. A preservação de corpo inteiro da Alcor tem custo inicial na casa dos 200.000 dólares, mas você tem a opção de preservar apenas o cérebro, se quiser seguir num esquema meio Futurama, pagando um pouco menos.

Não me levem a mal, não tenho pressa nenhuma em morrer, mas todas essas visões hipermodernas de "imortalidade" me deixam aterrorizado, fora o desejo Elizabethano ou do Séc. XIX de morrer na forma de um feliz esquecimento, ou então do Paraíso, ou dormindo, ou só o nada – qualquer coisa menos pagar 200.000 dólares pra morrer e ser recheado com anticongelante e virar um picolé, só pra ser descongelado pateticamente um pouco depois, provavelmente em um acidente ou episódio de negligência, deixando vazar o bendito anticongelante pra tudo que é lado, desencadeando humilhação, nojo e processos generalizados. Se é que vai ter alguém por aí para ser processado.

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Sejamos francos: seres humanos são impermanentes e falhos. Estas são nossas marcas registradas! – impermanência e falhas. O destino mais provável de Singularitários como Thiel e Kurzweil foi trazido às telas de forma mais admirável neste teste beta ficcionalizado de 1986 (o trecho que interessa começa por volta dos 3:17):

No tr​ailer de A Mosca há uma frase bastante reveladora: "Há um limite até mesmo para a imaginação, onde nossas maiores criações se encontram com nossos medos mais profundos… Você está prestes a ir além desse limite". (Algo deu errado, Seth! Quando você passou… Algo deu errado!)

Roman Ormandy, emigrante tcheco e cientista da computação cujo inglês não é dos melhores, mas cujo raciocínio é, escreveu recentemente sobre o assunto nos blogs da co​munidade da Wired:

De Ray Kurzweill e Peter Thiel em diante, muitos prodígios do vale do silício estão obcecados com a ideia de se tornar imortal ao fazer o upload da mente em silício. A ameaça de morte é uma emoção poderosa de fato, mas ela pertence ao reino do pensamento religioso e não da "ciência objetiva e imparcial" que dizem defender.

A tecnologia pode nos ajudar a enfrentar uma série de problemas de verdade, mas temos que entender a natureza de sua realidade antes, e encará-los de forma clara. Qualquer racionalista digno do título preferirá infinitamente a postura de Atul Gawande à de Ray Kurzweil em termos de morte e tecnologia. O livro de Gawande, Being Mortal: Medicine and What Matters in the End é tão útil, prático e realista quanto Kurzweil é destrutivo, solipsista e delirante.

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Em Being Mortal, Gawande explora muitas das grandes ideias sobre como fazer a morte algo mais tolerável, fácil e em grande parte, indolor, muitas das quais tem a ver com compreender o que faz da vida algo significante e significativo. Por exemplo, aprender a ver a existência como uma parte menor de todo de valor muito maior.

O individualista coloca seus interesses à frente, sua própria dor, prazer e existência como sua maior preocupação… Nada poderia importar mais que estes interesses, e como ao morrer você se vai, o auto sacrifício não faz sentido…

A única forma pela qual a morte não é absurda é ao se encarar como parte de algo maior: uma família, uma comunidade, uma sociedade. Caso contrário, a mortalidade é um horror. Mas se você o fizer, não é.

Gawande se opõe sensivelmente ao prolongamento cego de uma vida cada vez mais vazia e sem significados através de intervenções médicas cada vez mais dolorosas. Há muito que a aplicação inteligente da tecnologia pode fazer para nos ajudar ao deixarmos para trás o corpo, ao invés de nos atormentarmos com o fim natural da vida em uma tentativa fútil, nada digna e excruciante de manter tudo funcionando de qualquer jeito. Eduquem mais pessoas em geriatria, por exemplo. Aprenda novas formas de tornar a vida segura, saudável, divertida e interessante para os mais velhos. Pense como uma comunidade, uma irmandade, não como indivíduos atomizados competindo, com uns poucos que conseguirão de alguma forma "derrotar o sistema" do universo. Talvez seja melhor examinar claramente o que somos com uma visão para compreender e aceitar e não escapar daquilo que talvez seja nosso fim inevitável.

Porque talvez a pílula azul de verdade esteja sendo empurrada como a vermelha.

Tradução: Thiago "Índio" Silva