A Turquia teve um fim-de-semana de guerra civil

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A Turquia teve um fim-de-semana de guerra civil

Aviso aos governos: não tentem derrubar árvores.
Matt Shea
London, GB

“De momento, existe uma ameaça chamada Twitter”,

declarou

 ontem na televisão o primeiro-ministro turco Recep Erdogan. “As maiores mentiras podem ser lá encontradas. Na minha opinião, as piores ameaças à sociedade são as redes sociais.” Esta é uma afirmação que tanto caracteriza como valida a agitação social na qual a Turquia tem vivido mergulhada nos últimos dias.

Enquanto a comunicação social tenta ignorar os milhares de manifestantes nas ruas de Istambul, o Twitter oferece uma maneira a essas mesmas pessoas de se organizarem e de promoverem a sua causa. Aquilo que começou como um protesto pacífico pela defesa de um parque (que iria ser destruído a favor da construção de um centro comercial) serviu de rastilho para uma prova de descontentamento a uma escala muito maior. A sociedade turca está descontente com o que entende serem ameaças sérias ao estado laico e democrático por parte de Erdogan (a proibição de beber álcool ou de dar beijos em público, as limitações à liberdade de imprensa, etc). Conclusão: a maior revolta social na Turquia dos últimos dez anos.

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Manifestantes enfrentam a polícia em Ancara.

Durante o último fim-de-semana, várias manifestações ocorreram em mais de metade dos 81 distritos do país. As maiores aconteceram na capital, Ancara (mais de 700 feridos), e em Istambul (mais de 1000 feridos) — e essas são estimativas optimistas, claro. Mais de 1700 pessoas foram presas.

Uma visão assustadora: adeptos do Besiktas a conduzir uma retroescavadora pelas ruas de Istambul.

Na tarde de ontem, alguns membros da claque do Besiktas, o clube de futebol local, arranjaram uma retroescavadora e conduziram-na contra a polícia de choque, enquanto várias pessoas se penduravam nas suas janelas a bater com tachos e panelas. A VICE tem uma equipa de reportagem na Turquia, por isso ligámos a um desses nossos contactos para saber como vão as coisas.

VICE: Então, as coisas já acalmaram ou estão a ficar mais violentas?

Equipa VICE na Turquia:

Na praça Taksim acalmaram, sim. Os manifestantes contruíram barricadas à volta do parque, por isso é muito dificil para a polícia entrar. Em Besiktas tem sido brutal, a polícia usou gás lacrimogénio e também, embora não consiga ainda confirmar esta informação,

agente laranja

.

Já viste muitos feridos?

Se andares pela rua durante cinco minutos vais encontrar feridos, seja um simples hematoma ou alguém a sufocar com gás lacrimogénio. Há seis clínicas improvisadas em Taksim, geridas por médicos voluntários e por estudantes de medicina, e a polícia não deixa as ambulâncias passar. Havia 500 pessoas a precisar de tratamento urgente na clínica em que estive ontem, pessoas que não conseguem sequer ir a um hospital. É óbvio que existem muitos mais feridos do que os que estão oficializados nos números a que temos acesso.

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Ouvi relatos de que a polícia destruiu bancos de jardim para parecer que os manifestantes tinham vandalizado bens públicos. Viste alguma coisa desse género?

Há muitos rumores a circular. Na primeira noite em que cá estivemos, ouvimos pessoas a gritar que a polícia estava a matar jovens na rua, mas ainda não confirmámos essa informação. Ontem todas as conversas giravam em torno

da garantia da Greenpeace turca

em relação à utilização de agente laranja contra os manifestantes, mas penso que isso será também apenas um rumor. Não estou a dizer que é impossível, mas é difícil de confirmar. É possível que a polícia se tenha infiltrado em grupos de manifestantes para criar atritos, mas podem ser apenas hooligans de claques ou anarquistas. Ainda ontem estive com um grupo de pessoas que se dedica exclusivamente a reunir e a confirmar a veracidade desse tipo de rumores.

Manifestantes anti-Erdogan reúnem-se em Istambul na noite de sábado.

Que tipo de pessoas é que vocês têm visto?

Principalmente jovens porque estamos sobretudo a filmar ao final do dia, mas o que é realmente comovente neste protesto, e muitos turcos têm referido isso mesmo, é que diferentes pessoas se uniram para lutar em conjunto. Vês nacionalistas turcos e muçulmanos anti-capitalistas, até curdos. Para os turcos, este protesto é verdadeiramente importante. Mulheres com lenços na cabeça, claques de futebol, cidadãos comuns — toda a gente saiu à rua. Todos juntaram forças para dizer “basta”, por isso é difícil de responder a essa questão, temos visto de tudo.

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Não é um protesto com uma agenda política única, é sobretudo a favor dos direitos humanos, pela liberdade de expressão e pela democracia. Tudo começou como um pequeno protesto para proteger o parque Gezi, para impeder a sua demolição. As pessoas estão irritadas porque aquela é uma das últimas zonas verdes naquela zona de Istambul. Quanto mais brutal é a força policial, mais zangadas as pessoas ficam. Não posso deixar de enfatizar a diversidade de grupos presente nos protestos. Temos de tudo, desde hipsters ao lado de nacionalistas a muçulmanos anti-capitalistas ao lado de anarquistas. Custa-me acreditar nos meus olhos quando vejo curdos a protestar ao lado de turcos…

Um homem recebe cuidados médicos numa clínica improvisada de Istambul.

Já houve algum ataque aos manifestantes por parte de grupos pró-governo?

Sim, há relatos de apoiantes do governo que se juntaram à polícia na luta contra os manifestantes, em Istambul como noutras cidades. Mas são em número muito reduzido.

Como é que a comunicação social turca tem coberto os protestos?

Isto é uma coisa de que toda a gente discute na rua. As pessoas com quem falámos querem saber se somos da imprensa turca ou internacional porque aqui há pouquíssima cobertura do que está a acontecer. Estávamos a entrevistar pessoas num hotel e na televisão passavam imagens de agricultores felizes com vaquinhas, enquanto lá fora o cenário era de guerra. As pessoas sentem que a cobertura é insuficiente e vaiam as carrinhas das televisões.

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Fotografia por Nazim Serhat Firat e Ali Güracar