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análise

Eu estudo os déspotas autoritários e Trump emprega muitas das táticas deles

Isso não quer dizer que Trump é um déspota ou vai se tornar um. Mas significa que devemos nos preocupar.

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE US .

A mídia está constantemente "condenando e fornecendo informações falsas, com algumas verdades omitidas, algumas questões exageradas e algumas notícias repassadas sem escrutínio".

Essa não é uma citação da cabeça falante da administração de Trump Kellyanne Conway na FOX News. É uma declaração do general Prayuth Chan-ocha, o líder da junta militar da Tailândia, de setembro de 2014. E ainda assim, essas palavras vêm sendo repetidas diariamente — quase literalmente — pela nova administração, de Conway ao secretário de imprensa da Casa Branca, Sean Spicer, até o próprio Donald.

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Nos primeiros dez dias de sua presidência tumultuada e controversa, Trump emprestou cinco aspectos-chave (conscientemente ou não) da cartilha dos déspotas. Suas primeiras estratégias e estilo imitam governos autoritários do mundo todo — estratégias que vi em primeira mão na Ásia, Oriente Médio e África Subsaariana. Isso não quer dizer que Trump é um déspota ou vai se tornar um. Mas significa que devemos nos preocupar.

Primeiro, para descreditar supervisões democráticas, déspotas costumam confundir os limites entre verdade e mentira. Isso dificulta ter certeza em quem confiar durante tempos de crise. Por toda a história, esse acinzentamento da verdade começa com questões triviais, particularmente cercando culto à personalidade associado ao líder. E aqui Trump não decepciona: a primeira entrevista coletiva de sua administração foi uma afirmação agressiva e raivosa de falsidades relacionadas ao tamanho da multidão durante o evento de posse. Como muitos déspotas, Trump é incapaz de aceitar narrativas populares que desafiam sua posição como homem do povo.

Leia também: "Todas as provas que encontramos do suposto envolvimento do pai de Donald Trump com a KKK"

Esse apagamento da verdade se torna perigoso quando a verdadeira crise começa. Quando a China faz declarações sobre o Mar da China Meridional e Trump diz o contrário, como os norte-americanos — ou aliados dos norte-americanos — podem confiar na Casa Branca? Afinal de contas, se a equipe de Trump mente sobre algo que os cidadãos comuns podem ver por si próprios olhando duas fotos lado a lado, o que dizer sobre declarações que não são tão facilmente verificáveis?

E ainda assim, apesar desse risco, os déspotas prosperam com essa incerteza. Confundir os limites entre fato e falsidade dilui críticas e garante que os cidadãos questionem a própria natureza da verdade.

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Segundo, mas relacionado, Trump está fazendo o que déspotas fazem melhor: atacar a mídia por cobrir a situação. No quartel-general da CIA, Trump chamou repórteres de "alguns dos seres humanos mais desonestos da Terra". Ele tuitou que a mídia era o "partido de oposição". Kellyanne Conway sugeriu que os jornalistas que "zombam" de Trump deveriam ser demitidos. E talvez, o caso mais famoso, Trump chamou a CNN e o New York Times de produtores de "notícias falsas". Com alguns nomes diferentes, esses desenvolvimentos poderiam ser lidos como os primeiros estágios da guerra à mídia na Turquia, onde o presidente Erdogan ataca incansavelmente os jornalistas. Trump ainda não chega aos pés de Erdogan, que prendeu repórteres, mas a lógica preliminar é a mesma — uma tentativa de minar a credibilidades daqueles que podem responsabilizar os poderosos.

Terceiro, Trump tem repetidamente lançado suspeitas sobre a integridade das eleições norte-americanas, dizendo que três milhões de pessoas teriam votado ilegalmente. Na verdade, essa é uma tática reversa da usada por déspotas. Tipicamente, os déspotas manipulam as eleições e dizem que elas foram limpas. Trump venceu uma eleição que não tinha sido armada — pelo menos não em termos de fraude eleitoral — e depois disse que a eleição tinha sido armada contra ele. No entanto, há um método na loucura dele. Na Costa do Marfim, vi o resultado violento da acusação de que estrangeiros tinham votado ilegalmente aos montes. Essa acusação foi usada como pretexto para privar cidadãos de seus direitos e desviar a oposição de seu caminho para a vitória eleitoral.

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A administração de Trump e as pessoas que a cercam já sugeriram que vão "fortalecer" os processos eleitorais, de um jeito que dificulte mais para as pessoas votarem (provavelmente minorias e cidadão mais pobres que terão dificuldade de cumprir as novas regras, como ter que mostrar um documento de identidade com foto como carteira de motorista ou passaporte). Além disso, denegrir o processo eleitoral é um jeito importante de minimizar os resultados de eleições que sugerem qualquer pista de impopularidade. As declarações de Trump, de que teria vencido o voto popular não fossem os votos ilegais, indica esse tipo de estratégia. Sem esse objetivo de longo prazo, sua tentativa de minar a confiança do público em sua própria vitória não faria sentido.

Quarto, e talvez o mais sinistro: Trump já está politizando a segurança nacional e usando o efeito "rally 'round the flag" para erodir direitos. No final de semana passado, Trump proibiu a entrada de imigrantes, refugiados e até residentes legais de sete países de maioria muçulmana nos EUA. Ninguém desses países cometeu nenhum grande atentado terrorista aos EUA nos últimos 15 anos. Aliás, os países que mais produziram terroristas que atacaram americanos nos EUA escaparam da proibição. Ainda assim, a retórica de Trump ao redor dessa política visa sugerir que qualquer um que se oponha a ele não é patriota, e está se opondo à segurança dos EUA. Essa tática é mais velha que o despotismo em si, e tem sido usada recentemente da Turquia às Filipinas até a Tunísia para retroceder direitos democráticos e instituir medidas draconianas para consolidar o poder.

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Trump está usando essa tática para supostamente proteger os norte-americanos de ameaças estrangeiras. Mas é importante imaginar o que viria depois de um ataque terrorista dentro dos EUA sob sua administração: os muçulmanos norte-americanos seriam o próximo alvo?

Além disso, Trump também está politizando tomadas de decisão de segurança de uma maneira sem precedentes. Steve Bannon, o magnata da mídia do Breitbart que se tornou o estrategista-chefe de Trump, foi indicado para a cadeira do Conselho Nacional de Segurança. Simultaneamente, o diretor da Inteligência Nacional e o presidente do Estado-Maior Conjunto dos EUA — gente com conhecimento real do exército e segurança nacional — foram rebaixados e agora só são consultados quando "questões pertinentes às suas responsabilidades e conhecimentos forem discutidas". A democracia sai enfraquecida quando a política partidária se infiltra na segurança nacional.

Quinto e último ponto, Trump está agindo com tanta rapidez que os cidadãos comuns não conseguem acompanhar. As mudanças políticas estão sendo deliberadamente obscurecidas por um fluxo constante de tuítes, ordens executivas, entrevistas na TV, entrevistas coletivas e ataques de birra. Esse dilúvio tem um propósito óbvio, um propósito usado por autocratas: isso força a oposição a escolher suas batalhas. Agora, os democratas preocupados com pessoas sem qualificação sendo apontadas para gabinetes decidiram se focar apenas em algumas escolhas para conseguir bloquear alguns desses novos gabinetes. Pessoas como eu, que se importam com as instituições democráticas, se preocupam menos com grandes mudanças políticas porque elas parecem minúsculas e irrelevantes em comparação às ameaças à democracia em si. Trump é um mestre nessa estratégia, deixando flutuar ideias de políticas extremas, apenas para voltar um pouco atrás e parecer que está fazendo concessões.

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Ele combinou a segunda e a quinta estratégias recentemente, sugerindo que ia tirar os corpos de impressa da Casa Branca, só para capitular logo depois — e se dar o crédito por fazer algo que literalmente todo presidente moderno tinha garantido.

Para deixar claro, Trump é um líder eleito democraticamente que está sujeito à supervisão democrática e às leis. Ele não é um déspota. Mas se a democracia norte-americana fosse escorregar para o autoritarismo, os primeiros dez dias do processo seriam muito parecidos com os dez dias que acabamos de testemunhar. É hora de lembrar que a Constituição e as instituições democráticas não são conceitos mágicos: só são tão fortes quanto aqueles que lutam por elas nos tempos de perigo.

Dr. Brian Klaas é membro da London School of Economics e autor de The Despot's Accomplice: how the West is Aiding e Abetting the Decline of Democracy .

Tradução: Marina Schnoor

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