​"The Last Guardian" é sobre a única coisa que resta nas nossas vidas: cães
Crédito: Sony

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​"The Last Guardian" é sobre a única coisa que resta nas nossas vidas: cães

A espera de uma década trouxe problemas técnicos, mas também um personagem primoroso. É, sem dúvida, um dos jogos mais bonitos e sensíveis que já jogámos.​

Este artigo foi originalmente publicado na nossa plataforma Motherboard.

Já alguma vez viste um cachorrinho prestes a atirar-se para dentro de uma piscina pela primeira vez? É um dos maiores prazeres desta vida. O bichinho ali super empolgado e, ao mesmo tempo, a morrer de medo. Toca na água, hesitante, prepara-se para saltar, mas, no último minuto, dá uns passos atrás, porque sabe Deus o que é que se passa dentro daquela massa de água. Depois volta, porque, afinal de contas, a água é tremendamente encantadora. Assim segue a dança até que o cãozinho ganha coragem para saltar e descobre que a piscina é puro êxtase.

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The Last Guardian, um dos jogos mais esperados de todos os tempos [chega hoje, 7 de Dezembro, ao mercado português], recria esta cena maravilhosa que descrevi acima, só que, em vez do cão, há um híbrido de cão gigante, pássaro e dinossauro chamado Trico.

Como nas duas outras obras-primas de Famito Ueda, criador do jogo e dos seus antecessores, Ico e Shadow of the Colossus, The Last Guardian atira-te directamente para o meio do seu mundo sem muito contexto. Controlas um puto adorável que acorda numa câmara misteriosa ao lado daquele bicho enorme. Trico está cheio de medo, mas também precisa de ajuda porque tem uma lança espetada no corpo. A única forma de sair dali é através da união desta dupla improvável.

O miúdo pode meter as suas mãozinhas em itens como a lança, rastejar por lugares apertados e apertar botões. Trico, por sua vez, pode derrubar obstáculos, esmagar inimigos e atravessar enormes abismos enquanto o rapaz se segura às suas penas e à sua própria vida. Controlas o rapazinho como qualquer outro personagem de um jogo, mas fazer com que Trico faça qualquer coisa não é propriamente uma ciência exacta. Tens que lhe pedir repetidas vezes para fazer algo e rezar para que ele entenda. Muitas vezes, tal como um cão na vida real, não te vai ligar patavina.

Há algumas instruções no ecrã que explicam o funcionamento dos controlos, mas The Last Guardian, tanto dentro da sua ficção, como na execução dos seus quebra-cabeças, é algo que o rapaz e a criatura têm de desvendar juntos. Tudo acontece num mundo desolador, cheio de ruínas cobertas por musgo e pontes decadentes – aquele tipo de cena antiga e mágica – e tudo seria muito mais assustador não fosse pelo meu meu amigão de quatro patas.

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Digo "amigão" à falta de palavra melhor. Dizemos muitas vezes que o cão é o melhor amigo do homem, mas, se já tiveste um, sabes muito bem que "amizade" não define assim tão bem a relação.

Até ao ano passado, quando adoptámos um rafeiro chamado Gordo, nunca tinha tido um cão. Passados alguns meses, entendi porque é que as pessoas se entregam aos cães e transformei-me eu próprio num maluco aficcionado do universo canino. Ter um cão não é só ter um amigo. É uma relação única, da mesma maneira que ter irmãos, filhos ou ser casado é. Cada um à sua maneira. Também é algo que parece crucial. Cães e humanos evoluíram juntos ao longo de milhares de anos por razões mutuamente benéficas. Os humanos ganharam companhia, uma forma de se livrarem da ansiedade e guarda-costas leais, ao passo que os cães ganharam abrigo, comida e festinhas na cabeça.

O meu Trico, a que chamei de Gordo. Imagem por Emanuel Maiberg/Motherboard

Digo tudo isto para - além de te querer convencer a adoptares um - ilustrar que a ligação que se cria com um cão é profunda, complexa e significativa de uma maneira complicada de expressar em palavras, o que faz de The Last Guardian muito mais impressionante. O jogo consegue passar as principais sensações desta antiga relação, de uma maneira única no meio em que se apresenta.

Teria sido fácil para The Last Guardian aparecer com uma criaturazinha terrivelmente fofa para depois fazê-la sofrer, conseguindo, assim, um grande efeito emocional. Mas o que se passa é, precisamente, o contrário: Trico não é nada bonito, ou pelo menos de uma forma previsível. Em vez disso, o bicho toca-te com uma linguagem corporal magistralmente criada, com movimentos subtis de orelhas. Elas dobram-se quando está com medo, viram-se em direcção ao barulho e levantam quando está em estado de alerta.

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Pequenos e críveis momentos – como fazer Trico saltar para um lago, sacudir-se para se secar e depois coçar uma das orelhas – ajudam a tornar memoráveis os grandes momentos, como segurar-se no bicho pelas penas enquanto ele corre e salta de uma ponte em ruínas a vários metros de altura. Na maioria dos jogos, as coisas funcionam, porque parecem fixes, ou o jogador pode fazer algo inédito. Em The Last Guardian, funciona porque eu me importo mesmo com o que vai acontecer com aquelas personagens.

Crédito: Sony

O jogo cumpre tal efeito com algumas das melhores animações que já vi num jogo. Em outras áreas The Last Guardian não tem como competir. O título surgiu como um projecto para a Playstation 3, em 2007, e é exactamente com isso que se parece. Com texturas borradas, framerate baixo e problemas de câmera. Em 2016 um jogo tem de ser excepcional para superar estas falhas e, adivinhem só, é exactamente o caso de The Last Guardian.

Esforcei-me bastante para me dedicar a jogos nos últimos meses – a maioria deles sobre violência. Tentar fazer com que Trico me seguisse, assim como nos momentos que tenho que implorar a Gordo que não lamba tanto o seu próprio rabo, não é o que eu chamaria de fantasia de poder e sim uma bem-vinda mudança de ritmo. Em vez de me fazer sentir poderoso, The Last Guardian dedica-se mais a fazer com que me importe com algo, além de mim próprio.

Este clima mais vulnerável e sensível está no âmago dos outros títulos de Ueda, e só até começar a jogarThe Last Guardian´e que percebi a falta que ele fazia durante esta última década.