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Edição de Moda 2013

Desastres Fabricados em Bangladesh

O incêndio que aconteceu na fábrica Tazreen e como a mão de obra barata na confecção de roupas pode colocar em risco a vida de muitos trabalhadores.

Fotos por Syed Zain Al-Mahmood

Até hoje, não sabemos exatamente quantos colegas de Swapna morreram em 24 de novembro de 2012 na fábrica da Tazreen Fashions. Ela estava costurando um short — “metade de uma calça”, como são chamados em Bangladesh — quando, no térreo, pilhas de linhas e tecidos acrílicos começaram a pegar fogo. Swapna tinha acabado de ficar grávida. Seu marido Mominul trabalhava na confecção com ela como inspetor de qualidade. Quando o alarme de incêndio disparou, os gerentes de seu andar mandaram as centenas de trabalhadores permanecerem em seus lugares, gritando que não havia nada de errado. Alguns minutos depois, quando o alarme tocou novamente, já era tarde demais. A fumaça serpenteara três lances de escadas acima, as luzes apagaram. Não havia saída de emergência. Swapna achou que seria melhor pular do que morrer queimada, mas todas as janelas estavam bloqueadas por grades de segurança.

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Mominul desistiu de procurar a esposa pouco depois de as luzes se apagarem e correu para um canto de seu andar onde os homens tinham conseguido quebrar a grade de uma das janelas. Por sorte, pedreiros tinham deixado um andaime de bambu encostado na parede do lado de fora do prédio e vários trabalhadores conseguiram descer por ele até o telhado de um galpão vizinho. Do telhado do galpão, Mominul viu o fogo tomar a fábrica de oito andares. Muitos trabalhadores arrancaram exaustores das janelas e pularam para a morte. De repente, uma figura carbonizada desceu pelo andaime até o telhado do galpão. A figura, que gritava loucamente, o agarrou. Mominul não percebeu, até ela se acalmar, que se tratava de sua mulher.

Os trabalhadores da fábrica da Tazreen, na zona industrial de Ashulia, perto de Daca, em Bangladesh, costuravam camisetas, calças jeans e shorts para, entre outros, a linha Faded Glory do Walmart, para a Sears e para a M.J. Soffe, fornecedora de peças licenciada pelo Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA. A confecção tinha uma capacidade enorme de produção — cerca de um milhão de camisetas por mês. O negócio de produzir e exportar roupas em série começou nos anos 1980 como uma minúscula indústria capitaneada por uma classe de pequenos e ambiciosos empresários que lucravam com, entre outras vantagens locais, trabalho infantil e um salário mínimo extremamente baixo.

Mas as condições melhoraram lentamente ao longo dos anos. Essas mudanças aconteceram, em parte, porque clientes ocidentais como o Walmart e a Nike foram alvos de campanhas ativistas implacáveis contra as condições de trabalho dessas fábricas. As empresas que contavam com tal infraestrutura responderam instituindo padrões com o intuito de eliminar o trabalho infantil e escravo e outras formas escancaradas de abuso nas confecções. Em 1992, o Walmart passou a emitir um documento de 12 itens chamado “Padrões para Fornecedores”, detalhando princípios gerais que deveriam ser seguidos por fábricas locais em relação a salário (“os fornecedores devem oferecer remuneração justa”), trabalhos forçados (“não será tolerado”) e liberdade para formar sindicatos (os fornecedores devem respeitar esse direito “desde que tais grupos sejam permitidos em seu próprio país”). O documento também trata de segurança: “O Walmart não terá negócios com qualquer fornecedor que ofereça um ambiente de trabalho insalubre ou perigoso”.

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Por causa de políticas como essa do Walmart, o incêndio da Tazreen ganhou imensa repercussão global na imprensa no fim de 2012 e foi comparado com o terrível incêndio de 1911 na Fábrica da Triangle Shirtwaist, em Nova York. Parecia uma tragédia anacrônica que só poderia ter acontecido numa era primitiva, quando não havia “padrões para fornecedores”. O único problema dessa narrativa, obviamente — e aquilo que muitos grandes jornais e outros observadores não perceberam —, é que ela é um conto para boi dormir.

A tragédia da Tazreen não é de forma alguma excepcional. Desde 2006, 500 trabalhadores de confecções de Bangladesh morreram em incêndios em fábricas. Funcionários que tentam formar sindicados são constantemente espancados e presos por forças de segurança do governo. A Associação de Fabricantes e Exportadores de Roupas de Bangladesh (BGMEA, na sigla em inglês) trabalhou com o governo para formar uma nova força chamada Polícia Industrial, acusada por grupos de direitos humanos de assediar e intimidar trabalhadores. Pelo menos um militante foi sequestrado e assassinado. Protestos são comuns. Um mês depois de Swapna e Mominul escaparem de Tazreen, pelo menos 17 outros incêndios irromperam em confecções em zonas industriais.

No início do ano, fui para Daca. Eu queria ver o que estava sendo feito depois de Tazreen e se isso se tornaria, como esperavam observadores que compararam a tragédia com a da Triangle Shirtwaist, um divisor de águas para melhorar as condições de segurança da indústria têxtil global. Ao chegar ao aeroporto de Daca, ficou claro quanto peso era colocado nesse mercado: “No futuro”, dizia um outdoor na saída do terminal, “roupas feitas em Bangladesh vão definir as tendências da moda mundial”.

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Bangladesh é o segundo maior exportador têxtil do mundo, com 5.500 fábricas que produzem vestuário para empresas como H&M e Walmart, as duas maiores compradoras de roupas do país — neste exato momento você provavelmente está usando alguma peça de roupa feita em Bangladesh. O país, segundo alguns observadores, está preparado para passar a China na próxima década como produtor mais procurado do mundo para a confecção de roupas baratas. Milhões de trabalhadores saíram da superpopulosa zona rural — Bangladesh tem cerca de 150 milhões de habitantes em uma área praticamente do tamanho da Espanha — em busca de trabalho nas fábricas do entorno da capital. Bangladesh tem o custo trabalhista mais baixo entre todos os países produtores têxteis do mundo, com um salário mínimo mensal de US$ 38.

Eu queria ir à fábrica de Tazreen assim que cheguei, então, meu contato local, Syed Zain Al-Mahmood, me buscou no hotel. Dirigimos cerca de 25 km antes de entramos em uma estrada de terra que levava até os portões da confecção. Um incidente tinha acabado de acontecer — um morador bateu num carro da polícia com sua moto — e a situação estava sendo resolvida no pátio da fábrica. Perguntei ao Zain quem eram os homens mal-encarados de terno. “Esses aí”, disse Zain, “são da Polícia Industrial”.

Por fora, o prédio parecia quase intacto e levei um minuto para me dar conta de que estávamos no local do desastre. A área ao redor não parecia tão arruinada. Ela era cercada de bananeiras e fileiras de verduras, com cabras e crianças correndo. Os alojamentos residenciais feitos de blocos de concreto, que são propriedades privadas (não dos donos das fábricas) alugadas para os trabalhadores, não eram nem um pouco esquálidos. A maioria era compartilhada por famílias inteiras e dividida em quartos muito bem arrumados a cada 3,5 metros aproximadamente, com uma porta de aço na frente. Essas características, no entanto, davam aos alojamentos a impressão de serem blocos prisionais tropicais.

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Zain, que também trabalhou como freelancer para o Wall Street Journal, disse que me apresentaria a alguns sobreviventes que ele entrevistou logo depois do incêndio. No entanto, quando pedimos a vários meninos, que começaram a nos seguir pedindo trocados, dicas de onde encontrar esses sobreviventes, eles disseram que a maioria havia voltado para seus povoados de origem. “Ou conseguiram emprego em outras fábricas e estão trabalhando.”

Zain pediu outra coisa em bengali aos meninos — algo que fico feliz de não ter pedido eu mesmo — cuja essência era basicamente: “Leve-nos até alguém que sobreviveu ao incêndio que matou mais ou menos 110 dos seus vizinhos e provavelmente te marcou de forma que você não consegue descrever”. E, então, partimos — uma delegação de meninos, cachorros e jornalistas — em direção a um pequeno pátio formado por três dos alojamentos. Lá dentro, uma mulher de meia-idade vestida com um kameez amarelo ofereceu duas cadeiras de plástico para o Zain e eu sentarmos. Os sobreviventes que fomos encontrar foram chamados. Crianças vieram ver, nos cercando. Conhecemos duas jovens que estavam no terceiro andar quando o fogo começou. Uma, chamada Sakhina, que havia faltado ao trabalho aquele dia, era falante e atrevida. Ela contou que depois do incêndio, conseguiu um emprego numa fábrica chamada Knit-Asia. A outra, Mahmooda, ainda estava com muito medo de incêndios para voltar a trabalhar em confecções.

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Pedimos para elas recontarem o que aconteceu, e assim elas fizeram, e começamos uma excursão frenética pelos alojamentos, sempre seguidos de meninos pequenos e, ocasionalmente, por um grupo numeroso. Cada morador deu informações que desvelavam a história do que tinha acontecido naquele dia no terceiro andar, de onde foram retirados 69 corpos.

Mais de 1.100 pessoas foram trabalhar no dia do incêndio. Ambas, Sakhina e Mahmooda, haviam deixado seus povoados rurais sete anos antes para ir a Tazreen. “Não há nada nos povoados para nós”, disse Sakhina quando perguntei se ela sentia falta de casa. Ela trabalhava como gerente dos alojamentos até oito meses atrás, quando decidiu que ganharia mais dinheiro na fábrica.

Na noite do incêndio, Sakhina parou de trabalhar por um momento e colocou os cotovelos na mesa. Um gerente do andar foi até ela. Ela me contou o que aconteceu depois: “Ele me disse: ‘Sakhina, você está rezando? Ou está dormindo?’”. E aí o alarme tocou. “Tínhamos feito um exercício de simulação de combate a incêndio alguns dias antes. Foi isso que salvou minha vida.”

Achei que ela estivesse brincando. “Eu nunca tinha trabalhado em confecção antes”, continuou. “Não saberia o significado do alarme. O gerente do andar levantou os braços e disse para sentarmos. Falaram para não sairmos do prédio. Mas eu disse a ele: ‘Se não estiver pegando fogo, eu volto’. Desci as escadas e saí. Quando me virei, tinha fumaça e gente pulando das janelas.”

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Enquanto isso, Mahmooda não saiu do lugar. Quando o fogo fez as luzes apagarem, ela usou a lanterna do celular para encontrar o caminho até a janela que dava para o andaime de bambu — a mesma rota que a maioria dos trabalhadores do terceiro andar usou para sair.

Mais tarde, no mesmo dia, conheci Swapna e Mominul, que também estavam no terceiro andar na hora do incêndio. “Pensei que era melhor pular do que morrer queimada”, disse Swapna. “Acho que a maioria das pessoas morreu asfixiada.”

Depois que o fogo já estava quase totalmente controlado, bombeiros tiraram os corpos de dentro do prédio e levaram embora em riquixás — utilizados em Bangladesh para transportar pequenas cargas de material de construção. O corpo de bombeiros divulgou posteriormente o número de mortes: redondos 100, afirmaram. Mais tarde, quando perguntei à militante trabalhista local Kalpona Akter sobre esse número, ela riu. “Que idiotice! Você inventa exatamente 100 e diz que esse é o total? Como alguém pode acreditar nisso?”

No dia seguinte, fui a uma coletiva de imprensa no sindicato dos jornalistas no centro de Daca. Cinquenta e três vítimas não identificadas haviam sido enterradas em uma cerimônia depois do incêndio, mas o número final ainda precisava ser definido (além da soma “oficial” dos bombeiros). Um grupo de estudantes de antropologia de uma cidade do outro lado do país conseguiu um ônibus para levar parentes de trabalhadores que nunca foram encontrados. A sala da coletiva estava cheia de repórteres, mas como Zain não pôde viajar comigo naquele dia, eu não tinha muita certeza do que estava acontecendo. Mas eu sabia que os estudantes pesquisaram a área em torno da fábrica e descobriram pelo menos 68 famílias que afirmavam não ter recuperado o corpo de parentes, o que aumentava a possibilidade de que o número real de vítimas chegasse a 131.

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O número exato de corpos resgatados no local é um dos vários mistérios que ainda circundam o incêndio, embora o New York Times, assim como muitos outros veículos, tenha definido o total de 112. Conversei com uma mulher chamada Rukiya Begum, cuja filha de 19 anos estava trabalhando no quarto andar quando o fogo começou. Seu corpo nunca foi encontrado, o que significa que Rukiya não pôde receber os US$ 7.500 que o governo, a BGMEA e algumas empresas estrangeiras ofereceram para indenizar parentes de mortos. Muitas famílias de trabalhadores não identificados ainda esperavam essa reparação ou mesmo o reconhecimento oficial de que um de seus parentes havia morrido no inferno. “Tentei conseguir um atestado de óbito”, disse Rukiya, “mas disseram: ‘Cadê o corpo?’ Tenho medo que ela tenha virado cinzas e não haja corpo para ser encontrado”.

Saí para fumar um cigarro. Um homem de camisa roxa se aproximou. Apertamos a mão um do outro e num bom inglês ele perguntou meu nome. Como fiquei desconfiado, respondi apenas que era Jim. Ele perguntou o que eu fazia em Bangladesh. Quase não tem turistas no país, então eu não podia dizer que estava de férias sem levantar suspeita. Quando um estrangeiro chega em um hotel em Daca, perguntam: “Qual é o nome da sua empresa?” — supondo que ninguém jamais iria para lá a menos que estivesse sendo pago para isso. Sem saber como lidar com a situação, disse vagamente que estava “só visitando”.

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“Quem você está visitando?”

“Amigos.”

“Amigos de onde? Qual é o seu país?”

“Canadá.”

“O que você faz no Canadá?”

“Sou… artista.”

“Em que hotel você está?”

Nesse momento da conversa, um homem de camisa branca e blazer chegou e disse alguma coisa em bengali para o homem de camisa roxa. Ele então se virou para mim e perguntou se eu gostava de chá. Eu disse que sim, adoro chá, e ele disse para eu acompanhá-lo.

Ele me levou a um pequeno jardim, onde havia jornalistas sentados em mesas de plástico tomando chá. Ele disse que trabalhava na TV. “Esse homem é da Agência Especial”, disse, referindo-se a meu interrogador de camisa roxa. “Eles observam diplomatas, jornalistas e estrangeiros. Também os protegem contra problemas. Você não precisa se preocupar com nada.” Depois ele fez a mesma pergunta que o suposto membro da Agência Especial: “Em que hotel você está?” e se eu tinha visto de jornalista.

A Agência Especial e a Polícia Industrial são apenas duas de uma desnorteante variedade de forças policiais bengalis. Também existe a thana, ou polícia dos povoados; a Agência de Detetives à paisana; uma divisão da Agência Especial que supervisiona alfândegas e aeroportos, um Batalhão de Ações Rápidas paramilitar e o NSI (Serviço de Inteligência de Segurança Nacional, na sigla em inglês), que às vezes fica de olho em militantes trabalhistas.

A NSI serve, até um grau desconhecido, aos interesses do governo eleito, liderado por um partido chamado Liga Awami, chefiado pela primeira-ministra Sheikh Hasina. Depois que Bangladesh conquistou a independência do Paquistão em 1971, sua política evoluiu lentamente e se tornou uma disputa entre rodas mercenárias em torno de Hasina e de outra mulher chamada Khaleda Zia, que hoje lidera o Partido Nacionalista de Bangladesh, de oposição. As duas siglas têm algumas diferenças ideológicas evidentes; a política eleitoral do país é basicamente um jogo de poder. Quem está no comando enriquece a si e aos amigos por meio da corrupção. Os perdedores esperam até que o povo se canse do status quo e vote para tirar o governo. Nunca um governo bengali foi reeleito.

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Com apoio do governo, os fabricantes de roupas de Bangladesh se desenvolveram e se tornaram o primeiro caso de classe alta empresarial do país. Segundo a BGMEA, que se tornou uma das principais fontes de poder político do país, a indústria têxtil emprega 3,5 milhões de trabalhadores e o número de confecções quase dobrou desde 1999. O setor representa 80% do lucro total do país com exportações e é praticamente a única indústria da nação.

Com receio de espantar uma de suas poucas grandes fontes de renda, o governo tem um interesse duplo em ignorar as demandas trabalhistas por melhores salários e segurança contra incêndios. Primeiro, é do interesse dos fabricantes de roupas manter os custos baixos porque os preços oferecidos por compradores ocidentais são tão baixos que é quase impossível manter uma margem de lucro decente. Segundo, o governo está preocupado em preservar o mercado estrangeiro. “Eles têm um objetivo geral de evitar que os militantes trabalhistas façam seu trabalho, que é melhorar os salários e os padrões de segurança, o que pode significar que Bangladesh deixe de ser o fabricante de roupas mais barato”, afirma Theresa Haas da Worker Rights Consortium, grupo norte-americano de direitos trabalhistas que monitora as condições de Bangladesh. “Essa é a estratégia de desenvolvimento deles.”

Na viagem seguinte para a reportagem, Zain e eu fomos visitar a viúva de Aminul Islam, um militante trabalhista assassinado. Seu caso ficou famoso entre funcionários de governos e ativistas ocidentais e eu queria ouvir a história de alguém que tentou desafiar as condições predominantes do setor. Viajamos 80 km até o minúsculo povoado de Hijolhati, ao norte da capital, onde Aminul morava. Por causa do trânsito, levamos três horas e meia para chegar até lá. Ao chegar, fomos ao bazar local para pedir informações sobre como chegar à casa de Aminul. O homem para quem perguntamos era o imã da mesquita onde Aminul rezava. Contamos por que fomos até lá e ele disse que era bom estarmos ali. “Ele era um homem honrado”, disse, e entrou no carro para mostrar o caminho.

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Rodamos meia hora por uma estrada de terra, que, sem dúvida, danificou permanentemente a suspensão de nosso Corolla alugado. O imã contou que Aminul, como muitos empregados de confecções da região, fazia a mesma rota que estávamos fazendo para ir trabalhar todos os dias, só que ele ia a pé pela estrada de terra até o bazar e de lá pegava um ônibus. Isso devia levar horas.

A casa de Aminul ficava em um pequeno alojamento semelhante aos que vimos em Tazreen. Sua viúva, Hosni Ara Begum Fahima, parecia resignada em falar conosco, por eu ser estrangeiro e o Zain de classe alta, mas o imã disse a ela que era importante que falasse conosco. Zain e eu sentamos na cama dela. Sem qualquer entusiasmo, ela começou a contar a história de Aminul.

Em 1998, Aminul levou Hosni e a filha para Hijolhati, cerca de 160 km ao norte de Sherpur, porque queria um trabalho no setor têxtil. Na fábrica em que encontrou emprego, foi eleito presidente de uma associação de trabalhadores. No cargo, foi pressionado a confrontar a gerência da confecção por melhores salário e segurança. Quando foi demitido por sua militância, processou o dono da fábrica e ganhou. Em vez de reintegrá-lo, o dono preferiu mantê-lo fora da fábrica, mesmo sendo obrigado a pagar por seu salário. Aminul acabou chamando a atenção do Solidarity Center, grupo de direitos trabalhistas em Daca patrocinado pela AFL-CIO (Federação Americana do Trabalho e Congresso de Organizações Industriais, na sigla em inglês), que o colocou em contato com militantes locais. Ele foi contratado por uma ONG bengali.

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“Depois disso, vieram os policiais do povoado”, contou a viúva. “Eles circulavam e perguntavam para os moradores que tipo de pessoa ele era, e todo mundo dizia: ‘Ele é um bom homem’. E depois eles vinham aqui e ameaçavam levá-lo.”

Em março de 2010, Aminul foi pego pela polícia. “Ele estava em Daca para uma reunião”, disse Hosni. “Recebi uma ligação de alguém dizendo que era trabalhador de uma fábrica. Não pensei que poderia ser a polícia, então falei que o Aminul estava em uma reunião.” Policiais invadiram o escritório e o levaram para Mymensingh, uma cidade que fica 130 km ao norte. “Bateram muito nele. Mas depois ele disse que estava com fome e queria comer alguma fruta”, contou. Os agentes o levaram até uma barraca de frutas. “Eles ficaram do lado, fumando um cigarro. Ele estava ferido, mas fugiu e pegou um trem.”

Depois, falei com uma pessoa que tinha tido motivos para ver o interior de uma câmara de tortura da NSI: “Tinha vários ganchos e correntes para enforcar as pessoas — chicotes e coisas assim. Do outro lado, vi um fogão com ovos em cima. Perguntei: ‘Por que tem ovos numa câmara de tortura?’. E o funcionário disse: ‘Ah, não são ovos, é borracha. Esquentamos no fogão e enfiamos no ânus das pessoas’”.

Do trem, Aminul ligou para a esposa para dizer que estava em segurança. “Mas acho que os telefones estavam grampeados”, contou Hosni, “porque quando o trem chegou na estação, a polícia estava lá esperando”. Aminul viu as autoridades e se esgueirou até outro vagão. Ele pegou o telefone de um lojista emprestado para ligar para um amigo militante. Eles conseguiram fugir de moto mais tarde. “Depois disso, ele passou uma semana no hospital. Enquanto estava apanhando, ele perguntava: ‘Por que estão fazendo isso comigo? Foi algum dono de fábrica?’, Não respondiam nada, só batiam”.

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Após esses acontecimentos — e de outra prisão, dessa vez pela Polícia Industrial —, Aminul falou para a esposa que estava pensando em desistir da militância e virar lojista. Mas ele nunca teve essa chance. Em 4 de abril de 2012, Mustafiz, um amigo da família, foi visitar Aminul em seu escritório em Ashulia. Mustafiz disse que queria se casar, mas precisava de uma testemunha. Aminul sempre fazia esse tipo de coisa para trabalhadores das confecções, então aceitou. Tempos depois apareceram fotos de Mustafiz na companhia de agentes da NSI. Na noite que Aminul desapareceu, a casa de Mustafiz foi esvaziada, a porta trancada e seu celular desligado. Dias depois, um jornal de Tangail, 160 km a leste de Daca, publicou uma foto de um cadáver não identificado encontrado na região. A polícia local o enterrou como indigente. Mais tarde, o corpo foi identificado como sendo de Aminul.

Pedi a Zain para pedir a Hosni para posar para algumas fotos. Ela obedeceu passiva e silenciosamente. Depois, ela nos mostrou algumas fotos laminadas do corpo de Aminul. Dava para ver um buraco no joelho direito, provavelmente resultado de tortura.

Estariam os donos de confecções envolvidos no assassinato? O governo? Mais tarde, algumas pessoas me passaram o nome e número de celular de um agente da NSI supostamente envolvido no sequestro de Aminul. Bangladesh às vezes parece ter poucos nomes, mas era quase inacreditável que o nome do agente também fosse Aminul Islam. Disseram que ele havia sido transferido recentemente para o remoto sudoeste do país. Liguei para o número e Zain traduziu: “O que você quer com Aminul Islam?”, disse o homem do outro lado da linha, e desligou. Tentei ligar mais umas sete ou oito vezes, mas ninguém atendeu.

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A resposta do Walmart para o incêndio da Tazreen e para o tratamento dado aos trabalhadores e militantes por seus fornecedores foi essencialmente: Não é problema nosso. O sistema de fornecimento ético da empresa avalia confecções fornecedoras com uma escala de cores: verde, amarelo, laranja e vermelho. Esse ranking, que cobre pressupostos básicos de segurança e calcula a qualidade de vida dos trabalhadores das confecções, é definido por meio de auditorias conduzidas por investigadores terceirizados. Na época do incêndio, a Tazreen havia sido avaliada como laranja. Isso significava que a fábrica deveria ser auditada novamente dentro de seis meses. Se as condições não melhorassem depois da segunda inspeção, a fábrica ganhava uma segunda avaliação laranja, e teria de ser avaliada novamente em seis meses. Com uma terceira classificação laranja o fornecedor ia automaticamente para o vermelho, no sentido literal e figurado, e o Walmart deixaria de trabalhar com a empresa infratora.

Dois dias depois do incêndio da Tazreen, representantes do Walmart divulgaram uma declaração. “Nossos sentimentos às famílias e às vítimas dessa tragédia”, dizia. E prosseguia, referindo-se às imensas quantidades de roupas do Walmart encontradas entre as ruínas queimadas pelo fogo: “A fábrica da Tazreen não estava autorizada a produzir mercadorias para o Walmart. Um fornecedor terceirizado trabalhou com essa confecção sem autorização em uma violação direta à nossa política. Hoje rompemos nosso relacionamento com nosso fornecedor.”

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O uso que o Walmart fez do singular na declaração — “um fornecedor” — é capcioso. Documentos fotografados por Zain e outros depois do incêndio indicam que não um, mas pelo menos três fornecedores do Walmart usaram a Tazreen nos meses que antecederam o acidente. É verdade que o Walmart rompeu seu relacionamento com um fornecedor afiliado com a confecção da Tazreen, uma empresa de Nova York chamada Success Apparel, mas até recentemente não havia nada sobre outros parceiros. O Walmart se recusou a informar os motivos que levaram ao fim do contrato com a Success Apparel.

É sabido que a Tazreen recebeu duas auditorias e uma classificação laranja. Mas não está claro se ela foi auditada uma terceira vez. Quando perguntei a um representante do Walmart, Kevin Gardner, se eles tinham emitido alguma declaração afirmando explicitamente que a fábrica da Tazreen havia sido colocada na lista vermelha, ele se recusou a responder. Depois de repetidas solicitações, o Walmart se recusou a dizer quando, exatamente, isso aconteceria ou como o status de empresa incluída na lista vermelha seria aplicado à Tazreen. Quando perguntei como a fábrica poderia ser colocada na lista vermelha sem mesmo receber a terceira auditoria, ele também se negou a responder.

As auditorias, é preciso dizer, não levavam em consideração precauções de segurança como saídas de emergência e portas corta fogo. O sistema deixa que violações aos códigos sejam fiscalizadas por funcionários do governo local. Então, não está claro quem, exatamente, poderia ter evitado um desastre como Tazreen. Compradores ocidentais criaram uma infraestrutura em que fábricas de Bangladesh com que trabalham são tratadas como terceirizados distantes. Para o Walmart, está muito além da responsabilidade da empresa tomar uma atitude direta como, digamos, instalar saídas de emergência. Aparentemente, compradores e governos ocidentais esperam que produtores locais contratados arquem sozinhos com os custos da melhoria de salários e medidas seguras de trabalho.

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Mas como me explicou Scott Nova, diretor da Worker Rights Consortium, se os governos incumbidos de supervisionar essas condições deixarem que os trabalhadores se sindicalizem, e se os produtores tentarem melhorar as condições que permitiram que centenas de funcionários morressem em incêndios nos últimos anos, os compradores teriam inevitavelmente de pagar, uma vez que os custos dessas mudanças refletiriam nos valores cobrados pelos fabricantes contratados. “Mas as marcas não querem fazer nada porque o principal motivo para estarem em Bangladesh, para começo de conversa, é para cortar gastos”, acrescentou Scott.

Esse sentimento foi sustentado por um representante do Walmart em uma reunião em 2011, convocada em resposta a dois incêndios letais que arrasaram confecções em zonas industriais de Bangladesh. Representantes do governo, grupos ativistas e fabricantes se reuniram na sede da BGMEA em Daca e, num dado momento, discutiram um rascunho de proposta que instituiria alguns padrões obrigatórios relativamente modestos para a segurança contra incêndios em confecções locais. “O representante do Walmart levantou”, me contou Scott, que estava na reunião. “Primeiro, ele reconheceu que existiam problemas de segurança a serem discutidos. Depois falou que não tinha a menor chance de o Walmart pagar por isso.” Resumindo, nenhum padrão para a indústria tinha chance de ser implementado de cima para baixo.

Se o incêndio da Tazreen poderia ter sido evitado com medidas de segurança que deveriam ser implantadas, mas que foram ignoradas, a resposta que se seguiu demonstra como é difícil apontar a responsabilidade das partes infratoras envolvidas na produção de roupas em Bangladesh e, provavelmente, em qualquer outro lugar. Inspetores do governo visitaram a Tazreen semanas antes do incêndio e, em tese, deveriam ter sinalizado riscos para a segurança, no entanto, as conclusões da maioria das análises feitas pelo comitê investigativo apoiado pelo governo se concentraram na possibilidade de o incêndio ter sido um ato de sabotagem industrial. Mesmo que seja verdade, não é desculpa para a ausência de precauções essenciais que deveriam, segundo as políticas de clientes ocidentais, ter sido adotadas pelos donos da fábrica há muito tempo. Compradores como Walmart e Sears se recusam a assumir a responsabilidade — eles alegam que sequer tinham conhecimento de que compravam produtos da Tazreen. Delowar Hossain, diretor executivo do Tuba Group — a empresa matriz da Tazreen — ainda não foi processado por “negligência imperdoável”, como recomendado pelo comitê do governo. As únicas pessoas processadas foram os três gerentes intermediários — os homens acusados de instruir seus funcionários a ignorar os alarmes e continuar trabalhando no dia do incêndio. O fato de, horas depois do incêndio, os computadores da fábrica terem sido encontrados quebrados e sem os discos rígidos dificultou ainda mais a identificação dos verdadeiros responsáveis.

Em 26 de janeiro, um incêndio irrompeu na confecção Smart Export em Daca. Sete trabalhadores morreram. Nenhum equipamento de combate a fogo foi encontrado no local e uma saída da fábrica, segundo jornais locais, estava trancada, forçando trabalhadores a quebrarem janelas e pularem, assim como aconteceu na Tazreen.

No andar de confecção da Smart Export, Zain encontrou roupas produzidas para uma marca chamada Lefties, de propriedade do conglomerado espanhol Inditex. Um auditor que trabalha para a Inditex deu a seguinte declaração a Zain, que mostra como é fácil isentar-se da responsabilidade no diluído sistema de terceirização criado pelos compradores ocidentais: “Isso aí é um lixão para quem nenhuma marca de respeito faria um pedido”.

O Walmart, por sua parte, atualizou seus padrões e alertou os fornecedores para não comprarem de fábricas não autorizadas. Mas o sistema fundamental de regulamentos de segurança aplicados voluntariamente pelas empresas (ou não aplicados, como pode ser o caso) continua em vigor.

Em nosso último dia juntos, Zain e eu conversamos com Abdus Salam Murshedy, dono de uma confecção que produz para o Walmart e que também atua como chefe da Associação de Exportadores de Bangladesh. Filho de um professor da zona rural e pantanosa do país conhecida como Sundarbans, no início de sua vida adulta, Abdus se tornou capitão da seleção nacional de futebol. Na época, era o atleta mais popular do país, mas agora trabalha como diretor executivo do Grupo Envoy, conglomerado que começou com confecções e expandiu para hotéis e frigoríficos, com receitas que somam US$ 220 milhões ao ano. Ele é um homem muito poderoso em Bangladesh.

Abdus, um homem baixo e ainda em boa forma, nos recebeu em seu escritório. Ele nos contou sobre seu primeiro emprego, numa moenda de juta. “Era muito sistemático. Tudo era feito da maneira correta”, disse. “E eu dizia: 'Vou ser um industrialista!'.” Ele estava se divertindo contando sua história e falou com muita confiança quando mudamos de assunto e começamos a perguntar sobre a Polícia Industrial — “Isso fui eu! Eu que criei isso!” — e sobre a pressão sobre os preços criada por compradores ocidentais. “Os compradores são nosso deus”, disse. Depois se corrigiu: “São nosso segundo deus. Não podemos fazer todas essas coisas que eles pedem, como segurança contra incêndio, com preços tão baixos!” Até ele discordou dos esquemas de preços ocidentais: “Uma coisa que eu gostaria de saber é por que eles precisam fazer promoções de ‘compre um, leve dois’. Isso é dinheiro que eles tiram daqui.”

Abdus disse que tinha um ótimo relacionamento com seus funcionários e exigia rigorosos padrões de segurança contra incêndios em todas as suas fábricas. Ele achava que produzir roupas era um bom jeito de fazer seu país prosperar. “Oitenta por cento dos trabalhadores são mulheres!” Pedi para ele descrever o que sentiu quando ficou sabendo do incêndio da Tazreen. “Eu me senti mal porque conheço o dono, o senhor Delowar Hossain. É um homem de bem e agora são só problemas financeiros, ele está com dívidas e vai perder o negócio”. Dentro da carteira de Abdus, tinha um cartão de Douglas McMillon, CEO do Walmart International. Ele pegou para nos mostrar. Era metade do tamanho de um cartão de visita normal. Zain comentou o fato. “Perguntei isso a ele”, disse Abdus. “Ele disse que era pequeno para economizar dinheiro.”

Fomos para a sala de conferências para tirar umas fotos. Ele teve tempo de pensar sobre o que estava falando e de repente ficou muito nervoso. “Eu não sabia que ele ia perguntar sobre o Walmart!”, disse para Zain em bengali. “Agora vejo o que ele está tentando fazer.”

“Essa pode ser a última entrevista que dou”, disse delicadamente. “Você pode me custar tudo!” Ele sorriu e apertamos a mão um do outro. Ele me pediu, quase que implorando, para eu mandar uma cópia da matéria antes de publicar.

Abdus parecia um homem correto, moderno — motivos pelo quais Zain me levou para vê-lo para começo de conversa. Eu queria saber como a indústria poderia estar daqui a alguns anos, ao firmar sua posição no sistema global e, com alguma sorte, os produtores começarem a adotar a ética de Abdus. Antes de irmos embora, Abdus e eu conversamos mais sobre a logística de segurança contra incêndios. “Tem quatro escadas na minha fábrica e cada uma leva a um lugar diferente”, disse. “Por que preciso de uma saída de emergência?”. Perguntei sobre Aminul Islam e o assédio a militantes na indústria têxtil. “Algumas pessoas estão causando problemas”, disse com um aceno de mão.

Hoje, três meses depois de escapar do incêndio da Tazreen, Swapna encontrou um emprego novo em uma empresa chamada S21 Apparel, que alega produzir para a AllSaints, fornecedora britânica de moda urbana de gosto duvidoso para suburbanos de classe média alta. Mominul diz que está tentando conseguir emprego em uma confecção de propriedade do Ha-Meem Group — fábrica onde 23 trabalhadores morreram em dezembro de 2010 quando um incêndio começou no oitavo andar. “Estamos oferecendo conforto e beleza para as pessoas”, disse Mominul. “E assim fazemos para as pessoas ouvirem o nome Bangladesh.”