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Exame do Toque de Recolher: Entre Vila Nova Curuçá e Tatuapé

Resolvemos pedir pra que moradores das áreas além do Centro Expandido de SP nos dessem as suas versões dos acontecimentos.

Você, ó leitor, provavelmente está inteirado que a situação anda bem tensa nas periferias de São Paulo. O número de assassinatos é acachapante, os boatos são inúmeros — toques de recolher, novo ataque do PCC, o tal “Motoqueiro Fantasma”, uma guerra interna de facções de policiais pelo controle do tráfico de drogas, acertos de contas etc. As respostas do poder público estadual, até agora, são pífias (pique “não tá acontecendo nada de extraordinário”). Se você não leu nada a respeito ainda, sugerimos começar por estes quatro links.

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Resolvemos pedir pra moradores das áreas além do Centro Expandido da cidade que nos dessem as suas versões dos acontecimentos. Hoje publicamos o terceiro texto desta série, esperamos que seja de seu interesse. A matéria é do casal Carla Cavalcante e Filipe Siqueira.

“Então, tenho evitado sair à noite. Só que a galera daqui anda dizendo que tá tendo o toque de recolher mesmo, que a própria polícia avisou pra não sair. Ontem, fui ao McDonald’s umas 20h e já percebi que havia pouco movimento.” Declaração de uma moradora do Tatuapé no dia 31 de outubro.

Já passa das 20h quando o bairro Vila Nova Curuçá, no extremo leste de São Paulo, se silencia. Normalmente esse horário é marcado por muito barulho na principal praça da região, que antes ficava sempre cheia de jovens bebendo, conversando e pulando ao som de música alta o suficiente pra ser ouvida do outro lado do bairro, mas hoje está praticamente vazia. Alguns gatos pingados ainda têm coragem e sentam durante a noite e madrugada pra jogar conversa fora, mas é o silêncio que marca o lugar.

Hoje os sons que mais se destacam na janela onde observamos o bairro são estampidos que se assemelham a tiros. Dois, pra ser mais exato. Não tem praticamente ninguém na rua, e uns poucos veículos cortam o silêncio vez ou outra.

Estamos junto à janela da casa de um amigo, e perto das 23h os sons ficam mais encorpados — e, exatamente por esse detalhe, se tornam intensamente alarmantes. Dessa vez ouvimos mais tiros, acompanhados de latidos de cachorros alucinados, sirenes e derrapadas de motos. Nos entreolhamos e concluímos que será uma noite longa.

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Pra piorar, a cobertura da imprensa sobre toda essa insanidade que está rolando em São Paulo não é das mais apuradas. Parte pela abundância de casos de violência, parte por uma visível indisposição das autoridades em esclarecer a situação, e o resultado é que não é difícil se sentir no escuro e mal informado. Se os tiros que ouvimos acertaram alguém, é muito provável que os nomes das vítimas jamais sejam conhecidos.

Chegamos à casa do nosso amigo por volta das 18h30. No caminho pra lá, ruas normalmente claras graças ao comércio local — especialmente bares, que fecham depois da meia-noite — estão escuras, e no ônibus ainda ouvimos o comentário de um morador: “Olha aquele grupo de jovens ali, ainda não perceberam que não é seguro ficar na rua essa hora.”

No bairro Vila Nova Curuçá não se instalou um toque de recolher “oficial”, daqueles que se espalham no boca a boca, mas ao pararmos pra observar a principal avenida, a Nordestina, e seu entorno, é notável o medo estampado no rosto dos moradores. Demos uma volta em alguns pontos do bairro antes de assumirmos nosso posto de observação.

Em uma praça, um grupo de jovens fuma um baseado e puxa conversa após nos aproximarmos. Um dos rapazes — que preferiu não se identificar — conta que na manhã anterior, ao ir pro trabalho, foi surpreendido por um amontoado de policiais perto da casa dele. Foi descobrir horas depois que eles haviam acabado de levar um corpo crivado de balas. Já uma das meninas contou que, na Rua Avinhado, há menos de um quilômetro dali, um pedreiro levou sete tiros: a moto passou, voltou e atirou. Dois casos que nem foram noticiados.

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O silêncio nos bairros é uma das faces mais cruéis da onda de violência e terror que se instalou definitivamente em São Paulo por volta do mês de outubro. Se em seus primórdios ela tinha como objetivo exterminar policiais militares, há algumas semanas passou a apavorar toda a população da cidade. Agora, os alvos não são só os homens designados a dar “segurança” aos cidadãos. Pelo simples fato de estar na rua durante a noite, uma pessoa “comum” já corre riscos de levar tiros, vindos na maioria das vezes da arma de um garupa montado numa moto. Em alguns casos, o crime foi cometido em plena luz do dia, como foi o caso do rapaz que estava em Guarulhos à espera de seu colega de trabalho pra almoçar — e foi friamente alvejado.

Na própria Vila Nova Curuçá, durante a madrugada do dia 30 de outubro, terça-feira, o dono de uma padaria chamou a polícia após suspeitar da presença de dois indivíduos que estavam numa moto, em frente ao estabelecimento. Esse fato acabou por virar notícia nos grandes jornais na manhã do dia seguinte, porque com a chegada da polícia os suspeitos fugiram, e durante a perseguição o garupa foi baleado e morreu no hospital. O condutor conseguiu escapar.

A cidade de São Paulo se transformou num palco onde a violência e o medo imperam. Os ataques ocorridos neste ano já podem ser considerados piores do que os que aconteceram no ano de 2006, quando a cidade literalmente parou, ônibus foram queimados e policiais foram mortos. Mas não existiam assassinatos de civis “comuns”, mortos apenas por estarem na hora e no local “errados”. Essas mortes chamaram a atenção do Ministério Público, que passou a investigar a possível existência de grupos de extermínio formados por policiais revoltados com as mortes de colegas e a de milícias com a intenção de vingar os ataques a criminosos.

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“Alguns comércios aqui, na segunda [30/10] chegaram a fechar mais cedo! Disseram que foi a polícia mesmo que avisou. As linhas de ônibus que vão pro Metrô Tatuapé funcionaram somente até as 21h e as que vão pro Carrão estavam com escolta policial”, comenta uma amiga nossa moradora do Tatuapé.

Ninguém sabe de onde vem a ordem de permanecer dentro de casa, a única certeza que a população tem é: não é seguro ficar na rua durante a noite. E sim, existe toque de recolher em diversos bairros de São Paulo. Na terça-feira 31 de outubro, por volta das 23h, recebemos a ligação de uma conhecida, moradora da Vila Progresso:

“Alô… Ah, que bom, já estão em casa! Minha vizinha estava na Catedral de São Miguel Paulista, mandaram o aviso pro pessoal ir pra casa, pois não era seguro ficar ali, àquela hora. Não se sabe se foi a polícia ou os bandidos da região que deram o recado.”

Pouco depois da meia-noite, o movimento na rua aumenta provisoriamente. São as pessoas que trabalham até tarde ou estudam em alguma faculdade e inevitavelmente chegarão depois das 23h em casa. Pela janela é possível ver que o cuidado ao caminhar na rua a essa hora foi redobrado. Mulheres de uns 19 anos seguram a bolsa firme e apertam o passo pra não perderem tempo demais nas ruas e andam em grupo, quando possível. Já alguns caras com aproximadamente a mesma idade, caminham mais rápido que o normal, olhando pra trás a todo momento, como que espreitando a rua e mentalizando algum plano B caso uma moto suspeita passe.

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Junto com eles circulam os seguranças, com suas motos e sirenes esganiçadas que tocam a cada cinco segundos e não conseguem transmitir nem ao menos uma falsa sensação de segurança. Aliás, até os seguranças das ruas modificaram a própria rotina: ao invés de pararem na esquina e observarem a possibilidade de alguma movimentação suspeita, simplesmente passam direito e evitam os lugares mais escuros do bairro. É o mundo cão sem leis dando um tapa na bunda e retirando a coragem até de quem recebe pra enfrentar o crime.

Pouco tempo depois das sirenes, um Tipo bem velho de aparência bem desgastada passa na rua em segunda marcha, com o vidro abaixado e o seu motorista olhando ao redor. É difícil saber se ele é um mero barbeiro perdido no bairro ou algum justiceiro barato patrulhando em busca de suspeitos. De qualquer forma, após essa movimentação, mergulhamos novamente no silêncio raramente quebrado.

As autoridades estão menos vigilantes do que nós. O comandante da PM de São Paulo, Coronel Roberval França, disse que o PCC está praticamente “sem fôlego”, o que soou como uma gargalhada sem graça na cara dos familiares de policias e civis assassinados. Após o início da Operação Saturação, iniciada pela polícia na favela de Paraisópolis, foi encontrada uma lista com nomes e endereços de policias: as próximas vítimas do crime.

No dia 1° de outubro, a Folha de São Paulo publicou uma notícia onde expôs uma planilha do PCC: quantidade de funcionários, imóveis, automóveis, locais da cidade em que atuam e tudo isso chegava por meio de pen drives aos “chefes” da facção, que estão dentro de presídios na cidade.  É muito irônico e assustador ouvir das autoridades, que são nomeadas pra proteger e governar a cidade, que o PCC praticamente não existe. Não é o que mostra o dia a dia da população desde quando começou essa onda terrível de ataques.

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Às 5h15, as primeiras pessoas começam a sair de casa. Ainda está completamente escuro, de forma que a noite cobre os habitantes do bairro com sua capa de medo. Os ônibus surgem com mais frequência no ponto em frente à janela. Também mantêm uma velocidade desenfreada, provavelmente pra evitar serem incendiados.

São os últimos minutos de mais uma noite em que a população de São Paulo convive com o medo de exercer o direito de ir e vir. A luz finalmente começa a despontar, e a rotina corrida e desgastante da cidade se mostra muito mais poderosa do que qualquer tipo de toque de recolher ou medo inerente a seus habitantes.

Siga a Carla e o Filipe no Twitter: @Animadissima e @VozdoAlem, respectivamente.

Tem toque de recolher na sua área? Quer contar pra todo mundo o que tá acontecendo aí? Mande seu e-mail pro nosso Twitter que entraremos em contato.

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