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Salvando o Sudão do Sul

Uma Nação Nova em Folha

Os Garotos Perdidos são milhares de crianças que fugiram da brutal guerra civil do Sudão e terminaram em campos de refugiados em países como Etiópia e Quênia.

Machot Lat Thiep em frente à sua casa em Lynnwood, Washington. Foto: Kyle Johnson. 

A VICE foi ao Sudão ver como uma das civilizações mais ricas e avançadas durante os séculos de colonialismo na África transformou-se num país castigado por golpes de Estado, ditaduras e desmandos, mergulhado numa série de conflitos intermináveis após a independência, em 1956. Nesta série de 22 capítulos, Robert Young Pelton e o fotógrafo Tim Freccia mostram de perto o que acontece num dos maiores países do continente africano, rico em petróleo e guerras, rachado ao meio em 2011, e com um futuro incerto pela frente.

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Tudo começou como uma simples ideia: visitar o país mais novo do mundo com Machot Lat Thiep, sudanês desengonçado de 32 anos e ex-Garoto Perdido que quer ajudar sua nação, uma terra natal com menos de três anos e que já corre perigo de se tornar um estado fracassado. Machot acredita que pode melhorar essa situação, mesmo não estando muito claro se ele sabe o que fazer. Qual é a melhor maneira de entender a fantasia da salvação da África do que com um africano que quer salvá-la?

Os Garotos Perdidos são milhares de crianças que fugiram da brutal guerra civil do Sudão e terminaram em campos de refugiados em países como Etiópia e Quênia. Na última década, particularmente, a situação dos Garotos Perdidos inspirou uma miríade de artigos, petições, filmes e livros. Até celebridades como Brad Pitt e George Clooney se empenharam na conscientização sobre as ex-crianças-soldado.

Em meio à complexa luta pela independência do Sudão do Sul, cerca de 3.800 desses meninos, muitos deles carregando as cicatrizes permanentes das marcas tribais dos dinka (a maioria étnica) ou dos nuer, foram adotados por americanos. Muitos se deram bem, aproveitando as oportunidades para conseguir educação, emprego e uma vida nova. Alguns, como Machot, prosperaram nos EUA e querem agora transferir suas fortunas de volta à sua terra natal e ajudar a construir um Sudão do Sul forte.

Machot é alto, magro e muito escuro. É um nuer que carrega cicatrizes tribais em volta da boca, assim como seis linhas que vão de sua testa até atrás de suas orelhas. Gerente de uma loja Costco em Seattle, ele é casado e tem dois filhos. Dirige uma minivan e curte uma versão do sonho americano. Machot sente que pode alcançar mais, mas por enquanto já está bom.

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Conheci Machot logo após sua família ter sido sequestrada em troca de resgate por criminosos somalianos que trabalhavam na fronteira queniana. Um amigo seu – o homem responsável por sua entrada nos Estados Unidos – veio me pedir que o aconselhasse sobre o caso do sequestro. No fim, a família foi liberada sem pagamento de resgate.

Alguns anos atrás, quando a independência se tornou uma possibilidade real no Sudão do Sul, Machot começou a se envolver no processo político de sua terra natal. Pouco tempo depois, voltou ao país para ajudar a escrever sua constituição. No fim de 2013, Machot e eu começamos a discutir a ideia de visitar a nova nação juntos. A ideia era encontrar com Riek Machar, o líder Nuer e então vice-presidente.

Entretanto, em meados de dezembro, a situação política no Sudão do Sul havia tomado um rumo violento. O presidente Salva Kiir insistia que Machar havia tentado um golpe. As notícias se espalharam rapidamente. Houve conflito armado entre guardas presidenciais das etnias dinka e nuer, e lutas começaram na capital, Juba. A milícia dinka e tropas militares procuraram por nuers de porta em porta, a fim de matá-los. Machar escapou pouco antes de tanques e armamentos pesados chegarem até sua casa.

Na sequência desses eventos, Machot quis salvar o que restou de seu país e talvez até permanecer para defendê-lo.

Comprei para Machot uma passagem para Nairóbi. Machot convenceu seu chefe a dá-lo um mês de licença não remunerada. Providenciei fundos para que sua família vivesse enquanto ele estivesse fora e, em Janeiro, partimos com nosso fotógrafo e cinegrafista, Tim Freccia.

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Nossa simples viagem ao Sudão do Sul se tornou complicada. Batalhas surgiram em todas as regiões e a Uganda tinha se juntado à luta. As cidades de Bor, Malakal e Bentiu estavam sitiadas, enquanto o país se dividia entre o Exército Popular de Libertação do Sudão, apoiado pelo governo, e as forças renegadas nuer, ostensivamente sob controle de Machar, que estaria escondido em algum lugar no meio do mato. Não era bem essa a viagem ao Sudão do Sul que imaginávamos inicialmente.

Consultamos alguns especialistas regionais sobre a localização de Machar. As respostas variavam: “Machar está na embaixada dos EUA”, “Machar está em alguma ilha, no meio dos pântanos”, “Machar está em Londres”. Tudo o que sabíamos com certeza era que Machar estava escondido e que o governo do Sudão do Sul tinha acabado de enviar cerca de dois mil homens para encontrá-lo e matá-lo. A teoria mais viável era de que Machar estava em Akobo, a cidade mais ao leste de seu estado natal, Jonglei, encurralado contra a fronteira oeste da Etiópia. Esta é uma versão resumida dos eventos que nos levaram a Nairóbi, em um carro com Edward, que nos ajudaria em nossas transações nem sempre legais, para procurar um piloto que nos levasse além das linhas rebeldes do mapa.

Edward trabalha com um homem chamado Ian Cox. Juntos, eles comandam a Lorry Boys, uma empresa que fornece aeronaves, veículos terrestres e equipamento pesado para pessoas com necessidades como a nossa. Recentemente, boa parte de seu trabalho tem sido no resgate de estrangeiros do Sudão do Sul via voos de evacuação de emergência. Meu pedido de ir no sentido contrário pode parecer um problema simples, mas, no momento, a maioria dos estrangeiros foi retirada e não é permitido o retorno de ninguém. Em outras palavras, o governo em Juba não está permitindo que nenhum piloto pouse no território controlado pelos rebeldes – em essência, todo o território que cerca a capital.

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Pilotos locais corajosos, acostumados a pilotar qualquer coisa para qualquer lugar, primeiramente concordam quando fazemos nossa proposta. Mas então eles conferem a situação em Juba e rapidamente descobrem que qualquer empresa de fretamento ou piloto que ouse apoiar os rebeldes será marcada. Recebemos uma série de recusas educadas. É aí que vamos mais fundo no quadro de pilotos do Quênia conhecidos por fazer o tipo de trabalho que precisamos – pilotos que não se darão ao trabalho de pedir nada a Juba. A maioria deles vive de fazer resgates, libertar reféns na Somália e outros trabalhos estranhos. Em outras palavras, trabalhos ilegais que pagam muito bem e que colocam o avião e o piloto em grande perigo.

Encontramos-nos no estacionamento com um piloto famoso cuja foto, nome e trabalho não podem ser encontrados na internet. Ele diz que pode fazer o serviço, mas que está ocupado no momento. Há muito trabalho a fazer para os militares, organizações, organizações de ajuda e o setor de socorro. Ele é ex-piloto do Serviço Aéreo Especial britânico, e está bem-vestido e bem informado sobre a área. Examina o mapa e calcula a distância. Apesar de o termos tirado de uma viagem de compras, ele parece interessado no assunto.

 “Vocês precisarão levar alguns barris de combustível até o norte do Quênia, do outro lado do Lago Turkana. Quando chegarmos, não vamos querer companhia”, diz.

O preço? “Depende do risco”, diz – um jeito estranho de nos dizer que pode cobrar o quanto quiser.

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Tim reconhece o piloto bem-vestido e diz: “Você resgatou Amanda Lindhout e Nigel Brennan no Cessna 210. Eu estava lá quando você chegou”.

O piloto sorri. Ele diz que também resgatou dois pescadores das Seychelles que tinham sido sequestrados por piratas. “Pagaram muito dinheiro por esses caras.” Histórias que pilotos contam.

E é aí que nos perguntamos: será que vale a pena entrar no Sudão do Sul para enumerar as razões para a falência do estado e procurar seu vice-presidente, tudo isto ao custo de 15 mil dólares, arriscar nossas vidas, aguentar calor, pestilência e hostilidade? Nossa resposta, obviamente, é “com certeza”.

No fim das contas, nossa jornada é relativamente normal. Ou, pelo menos, tão normal quando uma ex-criança-soldado, com cicatrizes no rosto e emprego em uma Costco em Seattle pode ser.

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Tradução: Pedro Taam