FYI.

This story is over 5 years old.

Noticias

A Violência Sectária Está Devastando a República da África Central

Enquanto milícias cristãs e muçulmanas batem de frente, autoridades internacionais não fazem nada para evitar o derramamento de sangue.

Pessoas deslocadas fazem fila para tomar a vacina contra sarampo. (Foto cortesia da Médicos sem Fronteiras.)

Se a história não tivesse sido ofuscada pelos conflitos no Mali e na Síria, você provavelmente teria ouvido falar sobre a guerra brutal que explodiu na República da África Central (RAC) em dezembro de 2012. Acho que há um limite de notícias sobre guerra que o mundo consegue digerir num determinado período de tempo, mas a guerra que está devastando a República da África Central atualmente é significativa. Um oficial da ONU chegou mesmo a afirmar que existe uma grande ameaça de genocídio no país, dividido recentemente pela violência sectária entre milícias cristãs e muçulmanas. As coisas andam bastante complicadas e as organizações internacionais ainda não fizeram nada para tentar impedir o derramamento de sangue.

Publicidade

Como outras ex-colônias europeias na África, a RAC é uma nação vasta e rica em recursos naturais com uma história de ditadores brutais. O país ganhou sua independência da França em 1958, mas saiu do comando imperial para cair nas mãos dos déspotas. Depois de oito golpes desde 1960, sua população de 4,6 milhões se acostumou a um tipo de política nada consensual.

Jean-Bédel Bokassa, o homem que assumiu o poder em 1966, afirmava ser um imperador nos moldes de Napoleão e era suspeito de ser um canibal que armazenava carne humana num freezer. Além da histórica política caótica, o país se localiza numa região familiarizada com conflitos: ao sul, o Congo vem travando um guerra sangrenta que já clamou milhões de vidas desde 1998, enquanto o Sudão – que faz fronteira com a RAC ao norte – enfrenta seu próprio episódio de genocídio e guerra desde 2004.

Rebeldes ao norte da RAC. (Foto via.)

O conflito na RAC conta com os rebeldes Séléka, que atuam no norte do país e que são a união de cinco grupos rebeldes (Séléka significa “união” em sango), entre eles a União das Forças Democráticas pela Unidade (UFDU) e a Convenção dos Patriotas Pela Justiça e Paz (CPJP), com alguns supostos elementos jihadistas. Todos esses grupos se opõem ao governo central há anos, tomando a capital Bangui em março com 5 mil tropas e depondo o presidente Francois Bozizé. Não que ele fosse muito melhor; Bozizé foi acusado pelos rebeldes de crimes contra a humanidade durante seu mandato.

Publicidade

Michel Djotodia, um dos líderes da Séléka, se declarou presidente depois do golpe rebelde. Djotodia é um muçulmano governando uma população de maioria cristã, e tem perdido o controle dos grupos que formam a Séléka. Agora, esses rebeldes incitam cristãos e muçulmanos uns contra os outros. Para piorar, há evidências cada vez maiores de que esses mesmos rebeldes são responsáveis por diversos crimes de guerra, entre outras atrocidades.

A médica do MSF Erna Rijnierse conversa com uma mulher grávida no hospital de Bossangoa, RAC. (Foto cortesia da MSF.)

Até o momento, nenhum celebridade fez um discurso apaixonado pela causa da RAC, nem o presidente Obama mandou um grupo simbólico de soldados para salvar o dia. Mas outras organizações têm documentado as atrocidades e realmente ajudado os refugiados –  a principal sendo a Médicos Sem Fronteiras (MSF), que montou uma base na cidade de Bossango, no norte, para ajudar os cidadãos que tentam escapar do conflito.

Tarak Bach Baouab, Conselheiro de Assuntos Humanitários da MSF, visitou recentemente a RAC e disse que a situação é perigosamente instável. “O problema é que a luta tem visado especificamente os civis”, disse ele numa declaração por e-mail. “A população rural estava acostumada a ser deslocada por causa da guerra civil anterior [de 2004 até 2007], mas o último ciclo de violência tem sido diferente, assumindo cada vez mais um tom religioso. Os civis agora precisam se esconder para não ser mortos por quem ou pelo que são, ao invés de apenas evitar áreas de conflitos entre grupos rebeldes e o governo.”

Publicidade

Só em Bossangoa, segundo Bach Baouab, 35 mil pessoas estão vivendo num complexo missionário católico, “apavoradas” com a possibilidade de ter que sair. Na maioria cristãos, eles têm medo da retribuição dos grupos muçulmanos rivais. Da mesma maneira, muçulmanos também temem a vingança de milícias cristãs. “As pessoas estão abandonando seus vilarejos, que acabam sendo incendiados pelos dois lados do conflito, e estão aterrorizadas com as matanças olho por olho”, disse Baouab.

A MSF já documentou o tratamento de indivíduos com ferimentos de balas e facões, ouvindo em primeira mão relatos de execuções sectárias, testemunhando vilas incendiadas e “cenas chocantes de assassinato”. Para imaginar paralelos históricos para essas imagens, procure pelo Genocídio em Ruanda ou pelas mortes mais recentes no Sudão, cometidas pelos grupos de extermínio Janjaweed. E lembre-se, nos dois casos os poderes ocidentais apenas assistiram a tudo.

Como em outros conflitos no continente, o Exército Francês – que já esteve envolvido em pelo menos três campanhas militares na África em três anos (Líbia, Mali e Costa do Marfim) – já deixou suas pegadas na RAC. Apesar de Francois Hollande ter descartado apoiar regimes africanos com euros do público francês, sua intervenção no Mali ajudou a reinventar o poder francês moderno na região. Relatórios mais recentes dizem que a França está preparada para aumentar esses contingente para algo entre 750 e 1.200 tropas.

Publicidade

Rebeldes no norte da RAC. (Foto via.)

Meses atrás, Hollande pressionou seus aliados, de maneira similar a quando fez lobby pra que eles ajudassem a combater os rebeldes malianos, dizendo que a RAC corria risco de “somalização”, com os jihadistas buscando um novo lar. E essa teoria não é inteiramente implausível, dada informações sobre jihadistas (como os combatentes do Janjaweed do Sudão) passando para a RAC, e temores de que a Boko Haram (uma afiliada nigeriana da al-Qaeda) tenha entrado no país pelo Camarões.

E não há como negar o crescente interesse ocidental pelas zonas de conflito africanas: os Estados Unidos implantou recentemente drones predadores em Níger, com um olho no Sahel. Para a França, a vigilância sob o antigo playground colonial não é novidade; o país têm interesses econômicos chaves na África, em países ao redor da RAC, o que é especialmente interessante quando se considera que a China está invadindo o território tradicional francês. Os acordos de mineração que Bozizé assinou com empresas chinesas e sul-africanas em março, um pouco antes do golpe, foram imediatamente revisadas por Djotodia –  convenientemente na mesma época em que ele pediu apoio militar a França.

Algumas fontes militares com quem falei disseram que julgar as intenções do Exército Francês na RAC é impossível, já que o país tende a manter suas operações secretas até mesmo para os aliados para evitar críticas internacionais. Outras fontes disseram que a mentalidade colonial dentro do exército ainda existe. Por exemplo, entre as tropas francesas, o termo “crocos” é frequentemente usado para descrever soldados negros.

Publicidade

Tal como está, juntamente com contribuições atuais e futuras de tropas francesas, a União Africana está pronta para implantar um total de 3.600 soldados na RAC, mais os 1.100 que já estão no país. No entanto, essa missão só deve se iniciar em 2014, o que significa – além de várias entidades rebeldes e milícias armadas com armas e facões – que os cidadãos do país terão que contar com os 200 policiais da nação para manter a paz até lá.

No final das contas, a história segue aquele mesmo enredo já visto antes quando se trata de intervenções ocidentais na África: a França quer saber como salvar sua influência colonial, enquanto o resto da comunidade internacional age como meros espetadores de um genocídio.

Siga o Ben No Twitter: @BMakuch

Mais histórias de conflito na África:

O Que os Militares Sul-Africanos Estavam Fazendo na República Centro-Africana?

Treinados Para Odiar 

Dentro dos Muros do Inferno