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​Um Homem Trans Brasileiro Está Fazendo Financiamento Coletivo Para Retirar os Seios

O plano de saúde do Lucca Ramos, de 19 anos, considera a mamoplastia masculinizadora uma cirurgia estética. Por isso, ele resolveu contar sua história na internet e tentar levantar a grana necessária: R$ 7.500.

Lucca Ramos, que decidiu fazer um financiamento coletivo para realizar a mamoplastia masculinizadora. Foto: Reprodução/Facebook

Ser obrigado pelos pais a fazer uma grande festa de 15 anos foi o ápice para Lucca Ramos. Designado mulher ao nascer, hoje ele é um homem transgênero. Depois do aniversário, resolveu assumir sua identidade masculina. O pai não leva o assunto da melhor maneira e o considera uma "afronta", mas a mãe, com o tempo, cedeu. "Ela respeita o meu nome social e os pronomes masculinos", relata. Depois de ter o pedido de mamoplastia masculinizadora, ou seja, a "retirada" dos seios, negada pelo plano de saúde, ele resolveu apelar para o financiamento coletivo na internet a fim de conseguir a grana necessária: R$ 7.500. Recentemente, a internet virou de cabeça para baixo quando Thammy Gretchen passou pelo procedimento cirúrgico.

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Alguns exemplos de binder. Foto: Reprodução/ Facebook Tboy Binders & Packers

A vontade de fazer a operação é ensejada pelo mal-estar causado pelo binder, um tecido elástico usado por boa parte dos homens trans que desejam esconder os seios. Pode não ser tão incômodo no começo, mas, com o tempo, dores, hematomas e feridas acabam surgindo. "Eu não consigo respirar fundo com ou sem o binder, porque dói toda a região que é comprimida e sinto muita dor nas costas", explica Lucca, hoje com 19 anos e usando a peça há cinco.

Sem o binder e com o binder. Foto: Reprodução/ Facebook Tboy Binders & Packers

O uso excessivo pode ser problemático. É comum ver homens trans discutindo o assunto em blogs e grupos na internet. Muitos fazem o seu próprio binder (existe até vídeo tutorial explicando o passo a passo), utilizando faixa elástica hospitalar, cinta ou colete operatório. Atualmente, é possível comprar pela internet binders fabricados especialmente para homens trans. "Já tive vários, mas o que uso atualmente comprei em um site gringo. O valor convertido ficou em R$ 120." Lucca frequenta um grupo no Facebook em que homens trans e cirurgiões plásticos trocam ideia sobre vários assuntos. Os médicos aproveitam o espaço para alertar sobre os danos provocados pelo uso exacerbado.

O cirurgião plástico Marcio Littleton, autor do blog Medicina Transexual, explica que os malefícios da compressão mamária com o acessório envolvem também questões psicológicas. "Mesmo quando não há o desconforto físico, eles sentem também um desconforto psicológico, como o medo de que aquilo seja descoberto ao abraçar alguém. Eles têm receio de que a pessoa sinta o binder e questione", destaca. O formato da mama também se altera, já que o fato de enfaixar os seios faz com que eles sejam empurrados para baixo. O que, inclusive, pode prejudicar o resultado de uma futura mamoplastia masculinizadora. O médico explica: "A técnica cirúrgica com menos cicatriz já não se aplica mais quando a pessoa usa o binder a longo prazo."

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Homens trans sem camisa pós-mamoplastia masculinizadora. Foto: Reprodução/ Fanpage Homens Transexuais

Existem duas possibilidades de cicatriz: uma que fica na auréola do seio e outra, logo abaixo. Na foto acima, é possível ver os dois exemplos. O dr. Marcio explica que a operação não se trata exatamente de "retirar" os seios – caso das mastectomias, em que as mamas são de fato retiradas por conta de doenças como o câncer. "As pessoas transexuais não retiram a mama. Elas fazem uma cirurgia plástica reconstrutiva com o objetivo de transformar uma mama com as características típicas do gênero feminino para uma mama com características do gênero masculino. É uma transformação." O tempo médio da operação varia entre duas e quatro horas; segundo o especialista, seus riscos são comuns a qualquer outra cirurgia que envolva detalhes. A recuperação também: caso haja dor no pós-operatório, ela deve sumir em dois ou três dias.

Um alívio. É assim que o estudante de cursinho pré-vestibular que sonha com a carreira em medicina imagina sua vida depois da mamoplastia masculinizadora. A decisão, ele conta, foi tomada sem dificuldade. "Essa cirurgia é minha vontade desde sempre."

Entretanto, nem todas as pessoas ao redor de Lucca sabem que ele é um homem trans. Muitos o veem como cisgênero, ou seja, a pessoa cuja identificação se dá com o gênero de designação ao nascer. "Ninguém questionava, e eu sempre fiquei na minha sobre isso." A estratégia de começar um financiamento coletivo na internet surgiu como última possibilidade financeira. "Tive bastante receio de me expor como trans e levei muito tempo pensando nisso."

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Lucca diz que recorreu ao plano de saúde, mas que a cirurgia foi negada por ser "estética". Procurada pela VICE, a assessoria de imprensa do Bradesco Saúde confirma ter recebido o pedido, mas que "o procedimento não foi autorizado considerando não integrar as coberturas médicas do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, editado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), órgão que regula e fiscaliza o setor".

Nem sempre o plano de saúde encontra objeções. Miguel Marques, criador da fanpage Homens Transexuais, explica que a sua mamoplastia foi coberta pelo plano. Para isso, ele precisou de um laudo psiquiátrico específico chamado CID-10 F-64. "Infelizmente", relata no post.

A advogada Chyntia Barcellos, vice-presidente da Comissão Especial da Diversidade Sexual da OAB e presidente da Comissão de Direito Homoafetivo da OAB-GO, explica melhor: "A transexualidade é classificada pelo Código Internacional de Doenças (CID 10 F-64) como disforia de gênero ou transtorno de identidade de gênero". Essa classificação justifica e legitima o atendimento que hoje é oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Ou seja, é preciso ser diagnosticado com um tipo de "transtorno" para conseguir obter a operação sem que ela seja considerada "estética". O mesmo diagnóstico serve para Cirurgias de Redesignação Sexual (CRS). Lucca afirma ter dois laudos psiquiátricos, mas conta que o plano de saúde não chegou a pedir ou receber os documentos. "Não existe nenhuma lei que obrigue os planos a fazerem essas cirurgias", afirma a advogada.

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Atualmente, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 5002/13, do deputado Jean Wyllys (Psol-RJ) e da deputada Erika Kokay (PT-DF), que estabelece o direito à identidade de gênero. "A proposta obriga o Sistema Único de Saúde (SUS) e os planos de saúde a custear tratamentos hormonais integrais e cirurgias de mudança de sexo a todos os interessados maiores de 18 anos, aos quais não será exigido nenhum tipo de diagnóstico, tratamento ou autorização judicial", explica a dra. Chyntia.

Até o fechamento da reportagem, o financiamento coletivo de Lucca havia arrecadado R$ 520 para a cirurgia, ou seja, menos de 10% do valor necessário. Novidade no Brasil, a prática dos crowfundings para causas trans é recorrente em outros países. "Nunca tive coragem de fazer por causa da exposição, só que, com a situação em que estou agora por causa do binder, resolvi abrir mão."

Inclusive, o Lucca está começando um Instagram para documentar sua transição com fotos.

Boa sorte, Lucca.

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