É difícil exagerar como tudo foi perfeito. Como foi na cara. Eu era só um moleque quando Cozinha Confidencial saiu, trabalhando na minha primeira cozinha profissional grande. O lugar era o Brennan’s of Houston, um restaurante irmão do famoso Commander’s Palace de New Orleans, e era diferente de tudo que eu já tinha experimentado. O lugar era quente, mau, acelerado e perigoso. As pessoas me xingavam em espanhol e eu não entendia. Outros gritavam comigo em inglês e eu entendia muito bem. Eu estava totalmente despreparado. Perdido. Aí Anthony Bourdain entrou na minha vida, e eu estava… um pouco menos perdido.
Antes do Brennan’s, trabalhei numa padaria nos subúrbios de Houston. O lugar era singelo. Relaxado. Eu fazia bolos de casamento, cookies, tortas e petit fours. Eu fazia um monte de glacê. Eles me deram a chave do lugar depois de alguns meses, e me deixavam escolher as músicas enquanto a gente trabalhava. Quando nosso padeiro-chefe saiu para pegar um emprego num hotel no Havaí, pensei “Talvez essa possa ser minha carreira”. Eu já tinha largado a faculdade algumas vezes. Por que não me matricular no programa de culinária da faculdade comunitária local?
Videos by VICE
E foi o que eu fiz. E nem isso ou a padaria me prepararam para a brutalidade da vida numa cozinha profissional de verdade — os turnos extenuantes, a dedicação à excelência, a humilhação. As drogas. O Brennan’s me jogou no meio de tudo isso, literalmente uma prova de fogo. Nada disso fazia sentido até eu ler Cozinha Confidencial. Nele, minha experiência estava sendo contada para mim em detalhes vívidos. O primeiro emprego temporário de Bourdain num bar, em Provincetown, Massachusetts, era basicamente o Brennan’s sem as toalhas de mesa brancas. As histórias de trabalhar nas trincheiras com degenerados — Bourdain os chamava de piratas – se dedicando ferozmente à labuta na obscuridade e preparando pratos quentes era minha vida.
Cozinha Confidencial descrevia a indústria e as pessoas nela, muitas vezes no seu pior, e era como ver meu próprio DNA num microscópio.
Li o livro em um dia. E imediatamente me tornei um apóstolo. Dei o livro para todos os outros cozinheiros que trabalhavam comigo que estivessem interessados, e para alguns que não estavam nem um pouco. Todo mundo se apaixonava imediatamente. “Quem é esse homem contando nossa história?”, pensávamos. Falávamos sobre ele bebendo depois dos turnos (a gente sempre bebia depois do nosso turno). Às vezes, quando bebíamos demais (sempre bebíamos demais), chorávamos sobre isso e sobre ele. A biografia que Bourdain escreveu das nossas vidas estava lentamente mudando nossa perspectiva sobre o trabalho que fazíamos.
Quando Cozinha Confidencial saiu, muitos foram atraídos por seu horror, chocados em descobrir os atalhos que alguns restaurantes tomavam para cortar gastos. Outros foram atraídos pelas histórias da cultura da cozinha obscena de vida louca que ele expunha, que era celebrada pelo tipo de pessoa que nunca trabalhou nas entranhas de um restaurante. Imagino que os contos de sexo, drogas e outras coisas pareciam divertidos. Mais divertidos que empregos onde você não transa com a noiva recém-casada de um cliente procurando uma despedida memorável atrás de uma caçamba de lixo, acho. Mas ler o livro fez alguns de nós naquela vida olhar para dentro. Por que éramos tão babacas uns com os outros? Era necessário mesmo, no meio de uma noite movimentada de sábado, mandar o estagiário subir as escadas para pegar um balde de vapor ou uma maca de bacon, só para rir quando ele percebesse que estava sendo feito de otário?
Esses trabalhos eram difíceis, e partíamos para ele com humor baixo. Depois de Bourdain, nos vimos partindo para outra direção. Tentamos nos tornar melhores — como cozinheiros, como pessoas — e começamos a reexaminar porque estávamos sempre correndo para bater ponto e sendo escrotos uns com os outros. Para muitos, como Bourdain escreveu em Cozinha Confidencial e disse muitas vezes depois, era porque as cozinhas eram um refúgio de desajustados. Alguns não tinham outro lugar para ir, e preferiam enfiar a cabeça numa panela fervendo que trabalhar num escritório. Outros tinham fichas criminais que não importavam desde que eles acertassem o ponto de 50 bifes na grelha a 200 graus na frente deles.
Alguns anos depois que o livro saiu, Boudain escreveu outro, A Cook’s Tour. Para ele, Bourdain fez uma noite de autógrafos numa Barnes and Noble de um bairro chique de Houston num final de semana sossegado, e alguns dos cozinheiros de linha do novo restaurante onde eu estava terminaram seu trabalho e saíram um pouco mais cedo. Naquela época eu já era sous. Chegamos na livraria tarde, quando Bourdain já estava se preparando para ir embora, passando por mulheres usando vestidos caros, e colocamos as cópias da nossa Bíblia, Cozinha Confidencial, na frente dele.
Fui primeiro, ainda usando meu uniforme. “Você devia ter furado a fila, chef”, ele disse. “O pessoal da cozinha tem passe livre.” A multidão tinha quase se dispersado, e com uma canetinha, ele desenhou uma caveira com um chapéu de chef e uma faca na boca. Em cima ele escreveu “Para o Brian”. Embaixo ele acrescentou “Cooks Rule!” Ainda tenho esse livro.
Mais tarde escrevi uma história de capa sobre a vida na cozinha de um dos melhores restaurantes da cidade, e o que aqueles que ganhavam a vida lá tinham que passar, inspirado totalmente em Bourdain e no Cozinha Confidencial, para uma publicação alternativa local, o Houston Press. “Chefs Rule!” foi o título que demos, alterando um pouco a mensagem de Bourdain no meu livro, sem entender como tínhamos sorte de escrever isso numa época antes do SEO.
Claro, os livros foram só o começo. Os programas impecáveis de Bourdain eram o máximo, primeiro o Sem Reservas e depois Parts Unknown. Ele mudou a própria ideia do que um programa de cozinha e viagem deveria ser. Os dois eram tanto sobre cultura, comunidade e família quanto sobre comida, e Bourdain se certificava que cada hora de TV que ele apresentava e escrevia mostrasse como tudo isso estava conectado. Cozinha Confidencial era só a ponta da faca do profundo poço de conhecimento dele. Sua empatia e compreensão irradiavam através da tela.
Isso nunca foi mais verdade, para mim, do que no episódio de Houston de Parts Unknown, que foi ao ar logo antes da última eleição presidencial nos EUA. Quando foi ao ar e agora, o episódio é um estudo de caso sobre o poder dos imigrantes de tornar nosso país melhor, e não acho que o timing foi coincidência. Houston sempre reclamava que Bourdain aparentemente tinha pulado sua amada cidade por tantas temporadas, e ficou extasiada quando ele finalmente veio. No episódio, ele pinta o retrato mais vivo da cidade onde cresci e aprendi a cozinhar – evitando os lugares badalados, para o desgosto de alguns, em favor da mistura multirracial rica e artística de Houston. Ele mostrou a incrível diversidade da cidade de um jeito que ninguém fez antes. Era uma carta de amor para a Houston que muitos de nós conheciam. De novo, dessa vez em imagens em movimento, ele estava contando minha história para mim.
Vai fazer falta. Descanse em paz, chef.
Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter, Instagram e YouTube.